Introdução

‘A história é objeto de uma construção cujo lugar não é o tempo homogêneo e vazio, mas um tempo saturado de agoras.
Walter Benjamin’

Ao se empreender uma pesquisa em ciências sociais sobre as sociabilidades negras no Ceará ou mais especificamente sobre as irmandades ou confrarias negras, algumas dificuldades se interpõem. Saliento duas que têm aparecido com recorrência nas pesquisas. A primeira se caracterizaria pela ausência de estudos sobre o tema e a outra pela quase ou completa inexistência de fontes de dados organizadas e catalogadas, melhor dizendo, arquivos. Excetuando o trabalho de Eduardo Campos (1980) As irmandades no Ceará Provincial e na mesma linha o livro de Oswaldo Barrozo (1996) sobre os Reis Congos, até hoje se contam apenas dois trabalhos acadêmicos voltados para o estudo das irmandades cearenses: a dissertação de mestrado de Carlos Moisés Silva Rodrigues (2005), No tempo das irmandades: cultura, identidade e resistência nas irmandades religiosas do Ceará (1854-1900) e também a pesquisa de conclusão de mestrado de Raimundo Nonato Rodrigues de Souza (2007) cujo título é Irmandade e festa. Rosário dos Pretos de Sobral (1854-1884).

A primeira dificuldade, isto é, a ausência de estudos, não se mostra senão como conseqüência da outra, contudo, as duas são o resultado de um pensamento, cujo baluarte é o Instituto do Ceará, Histórico, Geográfico e Antropológico, que de longa data trabalha o arrazoado de que o Africano e seus descendentes no Ceará pouca contribuição trouxeram à cultura. Seguindo uma abordagem evolucionista, os pensadores dessa instituição defendiam o pressuposto sociológico de que uma vez sendo a estrutura econômica cearense praticamente de pequenas lavouras e criação de gado bovino, o que não exigia o emprego de cativos em grande escala, o Negro pouco legado teria deixado ao Ceará. Consultando os mais de cem periódicos do Instituto do Ceará desde sua criação no final do século XIX verifica-se a existência apenas de um texto intitulado Os Congos de João Nogueira de 1934. Mesmo o seu Tomo Especial de 1984 em comemoração ao centenário da Abolição, uma linha sequer traz sobre as irmandades negras.

De certo modo esse pensamento propugnado pelo Instituto produziu uma invisibilidade do Negro e um esquecimento de que essas associações tiveram importância capital na religiosidade e na vida cultural dos homens cativos e libertos. A tônica dos textos dos intelectuais dessa instituição era mais afirmar a inexistência de escravidão e celebrar o feito heróico de ter o Ceará antecipado em 1884 a emancipação dos poucos mais de vinte mil escravos da Província. Silêncio total sobre a existência de confrarias, congregando cativos e libertos, no século XIX nas mais diversas cidades do interior cearense.

Diante disso tudo ficam alguns questionamentos: Qual a relação dessas associações com a escravidão no Ceará? E para Quixeramobim1, onde situo minha pesquisa: O que representava do ponto de vista da escravidão mesma a existência de uma irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos e de Nosso Senhor do Bonfim dos Homens Pardos? As perguntas mais do que pretenderem uma resposta querem de certo modo dizer da importância que essas instituições tiveram para os Negros no contexto da escravidão e mesmo depois que ela foi abolida, em 1884, no Ceará, uma vez que elas continuaram a ser conduzidas por “famílias negras”. Elas teriam sido uma catalisadora das sociabilidades religiosas e festivas desses sujeitos, deixando alguns traços documentados em livros de receitas, listas de irmãos e nos seus próprios compromissos. Assim como na memória cujos portadores são os descendentes de antigos membros da irmandade de Nossa Senhora do Rosário e pessoas ligadas a eles por parentesco real ou simbólico.

Os pesquisadores, ensejando conhecer essas associações no estado através do que elas produziram como seus livros de atas, livros de despesas e compromissos manuscritos, regularmente são levados a redefinir suas pesquisas em virtude das dificuldades para localizar tal material. Ao constatar isso chego ao segundo obstáculo que é a ausência de levantamento e de organização, se porventura existem, dos documentos referentes às irmandades. Deparou-se com esse problema Carlos Moisés Silva Rodrigues (2005) ao pretender estudar a irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos de Fortaleza. Diz o mestre em história que “apesar de constarem em seus compromissos a existência dos livros de atas, livros de assentamentos de irmãos, de receitas e despesas, fomos informado na Arquidiocese de Fortaleza e no Seminário Diocesano da Prainha (principais locais de pesquisa de documentos eclesiásticos no Ceará), que nada havia, “nunca existiu” qualquer tipo de referência a tais fontes. Tendo em vista este “estranho silêncio” tivemos de reordenar os objetivos2”. O desconhecimento, nesse sentido, produz o desinteresse na organização de uma memória documental sobre o Negro irmanado, dificultando o conhecimento dessas associações de caráter leigo cuja finalidade era dar assistência espiritual e material aos seus membros.

Apesar da invisibilidade sabe-se de sua existência no Ceará através dos códigos e posturas municipais que de certo modo controlavam seu movimento nos centros urbanos. Sabe-se que elas existiram através de seus próprios estatutos, que, uma vez reconhecidos, foram assentados em leis provinciais. Destacam suas atividades os jornais de época ao noticiar as festas em comemoração do orago da confraria; efemérides retomadas por memorialistas e historiadores como Eduardo Campos e Ismael Pordeus. Esses testemunhos aguçam o interesse do pesquisador, ou são ponto de partida do investigador, que ao prosseguir no empreendimento muitas vezes se depara com a constatação de que quase nada dos arquivos propriamente das irmandades foram conservados. De certo modo este foi o percurso que trilhei. Se não fosse pela “idéia persistente” de que por esse caminho poderia descortinar facetas da história do Negro, teria desistido da investigação ao verificar logo nas primeiras idas à paróquia de Quixeramobim que não contaria com os livros de atas onde a irmandade regularmente descrevia suas ações.

Como se verá adiante, outros documentos vieram preencher a ausência das atas. Os compromissos levantados no Seminário da Prainha de Fortaleza, negados na primeira busca, simplesmente por não saberem de sua existência, favoreceram a compreensão de um momento particular da irmandade de Nossa Senhora do Rosário no século XIX. Esse material possibilitou um encadeamento com a memória dos interlocutores de modo a revelar a complexidade da associação, principalmente no que dizia respeito à sua principal sociabilidade, a festa de Nossa Senhora do Rosário.

Com efeito, com essa pesquisa meu interesse foi ampliar o conhecimento histórico-antropológico sobre o Negro no estado do Ceará (Brasil), através da compreensão do contexto e das dinâmicas de formação sócio-culturais das irmandades negras, em especial a do Rosário dos Pretos de Quixeramobim. Entender a construção de práticas e representações sociais e a cultura compartilhada no seio dessa confraria. Por último perceber, por meio das interações e dos códigos de sociabilidade, a criação e a existência de um grupo diferenciado em um contexto colonial. Em razão desses objetivos, atenção foi dada ao contexto de organização econômica da época, procurando conhecer a escravidão do período em que as irmandades negras surgiram, olhando, sobretudo como ela se configurava em Quixeramobim.

Como hipótese de análise, argumentei que a irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos de Quixeramobim, com suas sociabilidades como a festa, a coroação dos reis e cortejo, ou seja, com suas interações, criava alternativas de solidariedade e de organizações para além daquelas impostas pela escravidão. Ao recuperar essa assertiva dos estudiosos do tema no Brasil, problematizo o entendimento de que as irmandades de “Pretos” eram vistas como concessões controladas pela Igreja Católica para impedir o crescimento de cultos religiosos africanos3. A despeito dessa tentativa, as irmandades, além de agregar Negros (escravos e livres), com a finalidade de organizar o culto católico e construírem igrejas, como salienta J. J. Reis (1997), “elas teceram solidariedades entre grupos etnicamente diferentes e criaram espaços de sociabilidade”4.

Esse estudo além de oportunizar uma reflexão sobre o Negro no Ceará5 privilegiou os sentidos e as práticas elaborados, mais como alternativas de uma conjuntura histórica determinada do que como resistência à escravidão. Talvez seja aí que se encontra sua importância, isto é, seu caráter interdisciplinar uma vez que introduzi um debate entre antropologia e história, tendência que tem encontrado fundamentos na antropologia interpretativa de Clifford Geertz e na perspectiva histórico-cultural de Marshal Sahlins. Essa interdisciplinaridade ainda foi proposta no cruzamento dos dados documentais, que a priori seriam da seara do historiador, com os fragmentos de memória que ainda teimam em significar o passado.

A memória, que toma contornos individuais e coletivos, ancora-se precisamente na rememoração das festas de Nossa Senhora do Rosário quando as famílias negras Barrozo e Matias estavam à frente na sua condução e realização e da coroação dos reis Congos. Esta última era realizada como parte dos festejos do Rosário no mês de outubro quando a irmandade elegia ainda seus reis e rainhas e mesmo depois quando já não tinha mais o suporte da irmandade continuou sendo encenada pela iniciativa de alguns membros da família Barrozo, como se verá na quarta parte desse texto.

Mesmo tendo sido a irmandade de Nossa Senhora do Rosário fundada por cativos de “nação angola”, a coroação dos reis Congos em Quixeramobim não parece ter tido as implicações étnicas tão recorrentes nos reinados dos Congos de outras confrarias do Nordeste, como os observados na confraria de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos de Recife pelo pesquisador Marcelo Mac Cord (2003). Conforme o autor, essa confraria em 1758 “deveria ter como soberano um membro da nação angola – ou seja, um bantu. Esse grupo étnico devia ter, portanto, a precedência dentro e fora da igreja do Rosário. Desta forma, os angola comandariam as referidas hierarquias, com seus braços políticos e profissionais, além de provavelmente ocuparem os principais cargos da Mesa Regedora do Rosário – sua instância deliberativa6”.

Essa dimensão, um tanto quanto obscurecida nos compromissos e nos documentos da irmandade do Rosário de Quixeramobim, foi considerada a partir dos nomes atribuídos aos escravos e libertos nos registros de casamento e assentos de batismo. A discussão encetada pretendeu não tanto supor conflitos entre os diferentes grupos étnicos, mas dizer que mesmo nessa situação, como na do Ceará, de “pouco emprego” da mão-de-obra cativa, não se pode atribuir aos cativos aí introduzidos uma procedência única, pois vários grupos estavam ali representados, decerto, negociando espaços de inserções com os Brancos e com seus pares de condição social.

Em linhas gerais o trabalho contempla dois grandes momentos, perpassando todo o corpo da tese. O primeiro, o dos documentos, deixando sobressair o contexto, a constituição e o funcionamento da irmandade de Nossa Senhora do Rosário de Quixeramobim. O segundo momento é o da fala dos interlocutores que ao narrarem os eventos relacionados às festas do Rosário e à coroação dos reis Congos não o fazem sem atribuir aos antigos membros da irmandade como Julião Barrozo e Antônio Matias grande responsabilidade pelo seu esplendor e animação. Então, é no cruzamento mesmo desses momentos que descrevo a organização confrarial cujos indícios apontam que foi criada no século XVIII por iniciativa dos escravos “de nação angola” de Antônio Dias Ferreira, um dos primeiros colonizadores Portugueses a fundar fazenda de gado em Quixeramobim. Essa organização seria já conhecida nessa época como a “a irmandade dos irmãos Pretos”. No século seguinte como “irmandade ou confraria de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos”, aparecendo no final do século XIX e princípios do XX apenas como “irmandade de Nossa Senhora do Rosário”.

A tese estrutura-se em quatro partes, desdobrando-se em vários capítulos. A primeira parte, de caráter mais metodológico, enceta uma discussão sobre as possibilidades de construção de fronteiras entre a antropologia e história diante do fato de propor uma interpretação que prescinde da “co-temporalidade” e da “co-espacialidade” do pesquisador e dos pesquisados. Nela também discuto como os dados foram construídos e descrevo os percursos trilhados em busca das fontes documentais. Essas fontes auxiliaram sobremaneira na compreensão dos contornos da escravidão em Quixeramobim assim como possibilitaram compreender a complexidade das instituições confrariais, em especial a irmandade de Nossa Senhora do Rosário. Ademais apresento os narradores que me acompanharam na tentativa de entender as práticas rituais envolvidas na realização da festa em comemoração à Nossa Senhora do Rosário, sociabilidade devocional e festiva atribuída aos Negros.

Na segunda parte introduzo o debate sobre o Negro e a escravidão no Brasil, propondo em seguida um breve panorama teórico das reflexões sobre as irmandades. A escolha de não aprofundar o debate nessa ocasião se justifica pelo fato das discussões serem constantemente retomadas no decorrer do desenvolvimento dos outros capítulos. Partindo do contexto do Ceará, ademais propondo uma compreensão da escravidão em Quixeramobim, tentando de certo modo “compor” o cenário ou o contexto de inserção do Negro e da própria irmandade de Nossa Senhora do Rosário. É nesse momento que apoiada nas fontes documentais, notadamente os registros de casamento, assentos de batismo e cartas de alforria, proponho entender o jogo de classificação do Negro cativo ou liberto que se apóia ora na procedência africana ora nos traços fenotípicos.

De forma ampla apresento no início da terceira parte algumas características das irmandades, recortando alguns aspectos que singularizam as irmandades ou confrarias negras. Isso não é feito senão pondo em evidência, através de uma comparação entre as irmandades negras e não-negras, o papel das normas no cumprimento da finalidade precípua das irmandades, qual seja, a de assistir na vida e na morte os irmãos. É aqui também que tento perceber como eram construídas as hierarquias no interior delas através dos cargos da mesa administrava ou órgão deliberativo. No segundo momento dessa parte, procuro descrever a irmandade de Nossa Senhora do Rosário de Quixeramobim, atentando para o seu surgimento e funcionamento. Por fim, recorto algumas sociabilidades (entendidas como canais de visibilidade do Negro) como a festa em comemoração à padroeira e à coração dos reis, tentando inscrevê-las em formas mais complexas de inserção.

É com este raciocínio que na quarta parte, auxiliada pela memória, vou baralhar os tempos para compreender a festa de Nossa Senhora do Rosário e a coroação dos reis Congos. Estes eventos são comumente atribuídos às famílias negras Barrozo e Matias, o que leva a pressupor uma “continuidade” do que elas realizavam com a irmandade de Nossa Senhora do Rosário no que respeita à característica étnica de suas inserções e ações. Isso incorreria na afirmação de que as sociabilidades não sofreram interrupções, que elas não se alteraram e sequer se transformaram. Pelo contrário, o intuito aqui é justamente falar de descontinuidades, pois o contexto e as motivações são diferentes. Contudo, há uma tentativa por parte dos narradores de recuperar um significado quando reconhecem que a festa de Nossa Senhora do Rosário era “dos Pretos”, dos “parentes” e com isso constroem uma imagem de si em uma relação de identificação com os protagonistas da confraria de outrora. Essa identificação é mais flagrante ao insistirem em uma representação também para Branco no âmbito dessas mesmas sociabilidades.

Uma última observação se faz necessária: As imagens que abrem cada parte são superposições intentadas por mim cuja finalidade era mostrar com que material essa tese foi escrita: a voz dos interlocutores e dos documentos. Conquanto os interlocutores apareçam desvinculados de um cenário social mais amplo, com as imagens quis revelar o instante em que foi possível o encontro da memória com a história, sem desconsiderar outros momentos dessa aproximação, construídos neste texto.

Notes
1.

Localizada na parte central do Ceará, distando cerca de 200km da capital Fortaleza.

2.

C. M. S Rodrigues, No tempo das irmandades: cultura, identidade e resistência nas irmandades religiosas do Ceará (1854-1900), São Paulo, 2005, p. 25.

3.

R. Bastide, As religiões africanas no Brasil, São Paulo, Editora Pioneira, 1971.

4.

J. J Reis, Identidade e diversidade étnicas nas irmandades negras no tempo da escravidão, in Tempo, Rio de Janeiro, v. 2, n. 3, jun. 1997, p. 7-33.

5.

O Negro no Ceará já tinha sido “objeto” de minhas reflexões no mestrado em Sociologia pela UFC. No estudo sobre a comunidade negra de Bastiões, dei preferência à discussão da memória e da identidade construídas pelas famílias negras através das narrativas de fundação do grupo e da devoção a N. Senhora do Carmo.

6.

M. Mac Cord, “Identidades étnicas, irmandades do Rosário e Rei do Congo: sociabilidades cotidianas recifenses – século XIX” in Campos, Curitiba, 2003, pp. 51-66.