Capítulo 2
Uma etnografia retrospectiva ou uma textualização do passado?

Clifford Geertz (1989) define a etnografia como “também um saber fixar as coisas no papel”. Indo além, ele demonstra na descrição densa, texto que abre a obra na versão brasileira, as “possibilidades e as regras de formação de outros textos e discursos”. Com esse texto, ele ensina a fazer antropologia e a convencer aos outros de que é esse o empreendimento intelectual no qual se engaja o pesquisador, ou seja, o de mergulhar na vida dos outros para interpretar o modo como pensam, sentem e realizam suas experiências. Por outro lado, na descrição densa fornece a trilha e os atalhos teóricos, pois monta as bases epistemológicas que devem orientar o savoir-faire antropológico.

Certamente, é expondo essas idéias que ele vislumbra o projeto de uma antropologia interpretativa com base no entendimento de que o mundo social pode ser visto e percebido como texto e para o qual se abrem inúmeras possibilidades de interpretação. A antropologia se constitui no modo de perceber e interpretar o mundo, isto é, em um modo de conhecimento. Em sendo assim, é ela própria uma forma cultural do lado de outras formas como o senso comum, a ideologia, a arte, a religião. Daí a necessidade de redefinição do conceito de cultura, agora entendido como uma teia de significados tecida pelo homem e na qual ele aparece totalmente emaranhado. A partir dessa compreensão, a antropologia não se revela mais como “ciência experimental em busca de leis, mas como uma ciência interpretativa, à procura do significado”26. Se for assim, ou seja, se a busca do sentido se constitui no que há de mais particular na antropologia, poder-se-ia perguntar de qual sentido estaria falando Geertz: dos interlocutores ou dos próprios antropólogos? Afinal, quem estaria mais implicado na atribuição do sentido, os primeiros ou os segundos? E na impossibilidade dos primeiros serem inquiridos, seria ainda válido buscar o sentido do que realizaram e do modo como organizaram sua existência sócio-cultural?

Paul Ricoeur (1977) toma o "texto" como o produtor por excelência do distanciamento. Assim sendo, ele "muito mais do que um caso particular de comunicação inter-humana é o paradigma do distanciamento na comunicação. Por essa razão, revela um caráter fundamental da própria historicidade da experiência humana, a saber, que ela é uma comunicação na e pela distância"27. O texto é provocador de distanciamento e alguns traços constituem os critérios de textualidade. A efetuação da linguagem como discurso é um desses critérios e acho importante retomá-lo, aqui, pela simples razão de ir ao encontro do entendimento da realidade social como discurso ou linguagem.

O discurso, conforme P. Ricoeur (1976), apresenta um traço primitivo de distanciamento. Este não seria outra senão a dialética do evento e da significação. Já o que caracteriza o evento é o fato de alguém se exprimir exercitando a palavra. Ele está situado temporalmente e no presente, portanto exprime um traço fugidio. O discurso como evento é intermitente e o outro par dialético - o significado é perene, ou seja, o evento passa, mas sua significação permanece28. Nesse sentido, não existiria outro papel para o investigador senão o de apreender a significação dos eventos situados na historicidade da experiência humana, pois “se todo o discurso se actualiza como um evento, todo o discurso é compreendido como significação”29. Daí a importância de fazer jus às experiências vividas pelas famílias negras e pelos narradores mais adiante apresentados, mesmo se distanciando daquilo que foi vivido pelos seus ascendentes quando ligados à irmandade de Nossa Senhora do Rosário.

O recurso à etnografia é que possibilita a textualização e a interpretação das sociabilidades e das identidades da irmandade de Nossa Senhora dos Rosário dos Homens Pretos de Quixeramobim. As sociabilidades dessa irmandade como a festa do Orago, corações dos reis negros, cortejo e sua própria organização administrativa deixaram traços em alguns eventos culturais coevos como maracatus, congadas, mas de fato não é a eles que recorro para construir os dados e sim aos registros em forma de documentos, produzidos diretamente ou indiretamente pelos membros da irmandade. Documentos estritamente ligados à irmandade - as atas, os livros de receitas, os estatutos e outros, como os registros de batizado, as cartas de alforria e os registros de casamento da população negra da época, constituem um corpus na análise cultural interpretativa proposta. Além disso, introduzo discursos de interlocutores Negros que residem contemporaneamente na cidade de Quixeramobim, na tentativa de demonstrar o que teria sido o evento mais importante dessa irmandade, a festa em comemoração à padroeira, em tempos mais recentes para esses interlocutores.

O esboço de uma antropologia histórica se justifica então pela interpretação desses corpus ou textos não necessariamente produzidos com base no testemunho forjado a partir de uma experiência direta seja do pesquisador ou dos entrevistados. Esses últimos, identificados como interlocutores, também não testemunharam a contemporaneidade da irmandade quando de seu surgimento no século XVIII e existência no século XIX. Eles narram eventos que foram produzidos em uma época de existência da festa e da devoção a Nossa Senhora do Rosário, mas não participaram diretamente da irmandade do Rosário.

Tampouco se trata de uma interpretação antropológica produzida a partir de acervos organizados por antropólogos quando de sua prática antropológica em campo e que por isso são definidos como arquivos etnográficos. Essa prática antropológica tem se desenvolvido com freqüência no Brasil e dela questionamos apenas a pretensão de se considerar os acervos dos antropólogos como mais etnográficos do que outros, como por exemplo, os conjuntos arquivísticos oficiais, sejam eles estatais ou eclesiásticos. Se o empreendimento antropológico consiste também em uma forma específica de olhar o mundo pela mediação de um interlocutor, esse esforço não é desconsiderado, pois o que pensam as famílias negras contemporâneas de Quixeramobim sobre as festas religiosas de seus antepassados, é contemplado aqui. Por outro lado, procuro tornar a idéia de campo mais abrangente através da introdução dos autores e personagens que integram a documentação e, assim, produzindo com eles um campo imaginário de interlocução30. Conforme Frehse (2005),a possibilidade de imaginar se abre tanto para a pesquisa de campo propriamente dita como para a pesquisa que tem comocampoo arquivo. Essa perspectiva, ainda consoante a autora, já teria sido aberta por Geertz ao credenciar à antropologia uma dimensão autoral “a qual abre espaço para a imaginação”31.

Clifford Geertz, em Vidas e Obras (2002), inscreve o empreendimento antropológico em dois momentos: o estar lá e o estar aqui 32. Os dois estão imbricados de forma tal que o primeiro é condição prévia para o segundo. É no segundo momento, o estar aqui, que o antropólogo atesta o grau de interação em que esteve em campo, apreendendo o texto diretamente daqueles cujo modus vivendi ele quer interpretar. Na verdade, a capacidade do antropólogo de vir a se tornar um criador de discursividade, passaria necessariamente pela maneira virtuosa com que ele convence os outros, seus pares, de que esteve lá, em campo. A crítica de C. Geertz a Malinowski, a Ruth Benedict, a Evans-Pritchard e a Lévi-Strauss33 parece uma procura pela forma como esses antropólogos se “situaram” em campo e o quanto dessa experiência foi engajado na textualização. Com isso, ele insiste em encontrar nos textos desses autores, uma inscrição, uma marca autoral.

As discussões sobre o Diário de Malinowski, objeto de análise de Geertz em Vidas e Obras, já tinham sido encetada em O Saber Local, (2000). Nesse livro o autor defende que o Diário traz menos discussões éticas e mais discussões epistemológicas, muitas vezes obscurecidas pelo debate em torno do caráter e da falta de simpatia do pesquisador para com os “nativos”.

‘A questão que o diário introduz, com uma seriedade que talvez só um etnógrafo da ativa possa apreciar totalmente, não é uma questão ética. (A idealização moral de pesquisadores de campo é, em si mesma, puro sentimentalismo, quando não uma forma de autoparabenizar-se ou uma pretensão exagerada). A questão é epistemológica. Se é que vamos insistir – e, na minha opinião, devemos insistir – que é necessário que antropólogos vejam o mundo do ponto de vista dos nativos, onde ficaremos quando não pudermos mais arrogar-nos alguma forma unicamente nossa de proximidade psicológica, ou algum tipo de identificação transcultural com nossos sujeitos?34

Assumindo as conseqüências do entendimento de que é necessário ver o mundo do ponto de vista dos nativos, ponto de vista revelado através de conceitos de experiência-próxima, outro termo introduzido por C. Geertz, é que intento compreender as sociabilidades negras organizadas pela irmandade de Nossa Senhora do Rosário de Quixeramobim. Na impossibilidade de estabelecer um diálogo com as pessoas que estiveram envolvidas diretamente com essa irmandade, Julião Barrozo, Antônio Matias e outros, é que os documentos se impõem como alternativa para a construção dos meus dados assim como o discurso dos descendentes negros contemporâneos. Com esses últimos a possibilidade de interlocução se alarga, como já assinalado, porque eles guardam uma memória, em especial, sobre a festa de Nossa Senhora do Rosário. Embora não se possa atribuir às narrativas dessas pessoas, a idéia de um corpus, elas me trazem muitas informações e recebem o status de interpretações como as fontes arquivistas. Assim, tanto da memória como das fontes arquivistas, o que me interessa é o conteúdo revelado os quais tomo como textos interpretáveis.

Diante disso, assumo também o risco em dizer que a interpretação se constrói a partir das fontes escritas assinaladas há pouco. Esses documentos são inscrições, que adquirem existência e atualidade para outras interpretações e para outras análises. Conforme C. Geertz (1989), «o etnógrafo inscreve o discurso social: ele o anota. Ao fazê-lo ele transforma de acontecimento passado, que existe apenas em seu próprio momento de ocorrência, em um relato, que existe em sua inscrição e que pode ser consultado novamente35». Onde estaria a incoerência em se perceber o texto de um documento, ou outro texto qualquer, como discurso social já elaborado, mas que ainda não sofreu uma análise antropológica?

Para C. Geertz o discurso social jamais é apreendido em sua totalidade. O pesquisador tem acesso apenas a «aquela pequena parte dele que os nossos informantes nos podem levar a compreender36». Em qualquer uma das situações, seja na pesquisa de campo no próprio campo, seja na pesquisa de campo no arquivo, o que é revelado, dá acesso ao mundo social que queremos compreender37. Assim, sem desconsiderar o contexto de produção dos documentos e os autores envolvidos na sua elaboração, meu interesse está direcionado ao conteúdo desses documentos quando me permitem um diálogo com outros sujeitos, os que são reportados nos textos, especialmente os Negros escravos ou libertos. Em razão disso, esse esforço intelectual não poderia ser definido senão como etnográfico, posto que, coloca em relevo a idéia de que é possível apreender o fluxo ou as seqüências desconexas do discurso social, reinscrevendo-o em formas pesquisáveis, como diria Geertz.

Essa possibilidade de realizar uma análise cultural ou uma antropologia interpretativa a partir de suportes documentais, fixados no passado, não é tão evidente. Geertz, embora tendo utilizado tais suportes na construção de seus próprios dados (dois exemplos são as obras Le Souk de Sefrou e Negara), não desenvolve uma discussão sobre a produção do sentido a partir desses suportes fixados, ou inscritos, das coletividades que já não existem mais. Essa constatação talvez me distancie das proposições metodológico-epistemológicas de Geertz ao pretender buscar o sentido das ações, das experiências, tendo como base esses textos que não foram produzidos por meio da interação do antropólogo com o outro. A primeira dificuldade talvez se apresente quando intento atribuir a esses suportes documentais o estatuto de texto e a segunda quando afirmo que a partir dessas inscrições pretendo realizar uma etnografia.

Com efeito, a pesquisa demonstra relevância maior na sua natureza de caráter interdisciplinar, introduzindo um debate entre antropologia e história. Essa perspectiva não é justificada pelo uso das fontes documentais, mas antes pela tentativa de explorar o fluxo do discurso que foi produzido sobre as irmandades negras. Ela se justifica ainda pela busca do excedente de significados atribuídos a essa organização e que revela a compreensão dos próprios sujeitos participantes. Por conseguinte, procuro como Geertz construir uma interpretação envolvida um projeto de salvar «o dito num tal discurso da sua possibilidade de extinguir-se e fixá-lo em formas pesquisáveis38».

Certamente, tais discursos estão situados no passado, mas o que tem me impulsionado para o empreendimento de querer compreender esse tipo de organização é a permanência de certo tipo de discurso que adquire toda uma atualidade nas organizações negras do presente. As irmandades negras se fragilizaram depois de abolida a escravidão e com o processo de romanização que se instaurou no seio do catolicismo brasileiro elas foram reestruturadas e transformadas de modo a desaparecer o sentido de ser uma organização que congregava apenas Negros escravos ou libertos A irmandade não tem mais uma existência material, o que não significa dizer que os símbolos que ela evocava (como a devoção a Nossa Senhora do Rosário e a coroação de seus reis negros) não sejam reatualizados em muitas práticas culturais, adquirindo novos sentidos no presente dos Negros de Quixeramobim.

Decerto, Clifford Geertz inclui uma diversidade de material em suas descrições etnográficas e talvez seja isso o que leva Daniel Cefaï (2003) a conclusão de que Geertz constrói “obras de antropologia histórica”, tomando como exemplo Negara (1989) e Le Souk de Sefrou (2003). Essa constatação se não bem compreendida pode sugerir que a antropologia histórica se define mais pelo esforço de incorporação dessas fontes e menos pela introdução da complementaridade entre sincronia e diacronia que os fenômenos culturais podem apresentar. Afinal, a utilização de dados estatísticos, ou mesmo a utilização de dados cartográficos faz da antropologia de Geertz o quê? Quero insistir aqui que não são as fontes com as quais são construídos os dados que definem um projeto como antropologia histórica. A diversidade de dados torna apenas possível uma descrição mais densa das várias dimensões de um determinado fenômeno cultural. Nesse sentido, o que define uma antropologia histórica, e agora concordando com Cefaï é «restituer em synchoronie des contextes temporels du passé, de saisir la viscosité de formes de vie qui se trans-forment, de montrer la consistance des configurations de pratiques sensées et de significations encarnées» 39 .

A textualização ou o fixar as coisas no papel dá privilégio a uma pluralidade de vozes, a dos documentos, a dos interlocutores, a dos historiadores locais e à minha própria voz na versão dos fatos. Ao sugerir que o texto que ora apresento é “uma estratégia textual alternativa”, busco dar sentido a «uma polifonia mais radical que representaria os nativos e etnógrafos com vozes diferentes»40. Isso é possível porque a colaboração dos meus interlocutores é reconhecida e sua voz é totalmente engajada no esforço de fazer saltar o excedente de sentidos 41. Dito isto, meu compromisso aqui é mais com uma etnografia do que com a história, mesmo interrogando o passado. Assim, não considero absurdo propor uma etnografia retrospectiva42, porque além de levar os vários interlocutores a contextualizar e a textualizar a historicidade da irmandade de Nossa Senhora do Rosário, ela também busca os significados construídos sobre esse passado e o contexto atual em que são enunciados esses significados.

Notes
26.

C. Geertz, A interpretação das culturas, Rio de Janeiro, LTC, 1989, p. 15.

27.

P. Ricoeur, “A função hermenêutica do distanciamento”, in Interpretação e Ideologia , Editora: Francisco Alves, 1977.

28.

P. Ricoeur, Teoria da interpretação, Lisboa, Edições 70, 1976, p. 23.

29.

Ibid. p. 23.

30.

F. Frehse, “Os informantes que jornais e fotografias revelam: para uma etnografia da civilidade nas ruas do passado”, in Estudos Históricos, Rio de Janeiro, nº 36, 2005, p. 1-26.

31.

C. Geertz apud F. Frehse, “Os informantes que jornais e fotografias revelam: para uma etnografia da civilidade nas ruas do passado”, in Estudos Históricos, Rio de Janeiro, nº 36, 2005, p. 1-26.

32.

C. Geertz, Vidas e Obras, Rio de Janeiro, UFRJ, 2002, p.p. 11-39.

33.

M. G. S. Peirano considera essa crítica até certo ponto pouco prestigiosa, pois Geertz faz considerações a trabalhos desconhecidos de autores consagrados e condena trabalhos e autores considerados clássicos.In “Só para iniciados”, Estudos Históricos , Rio de Janeiro, v. 3, n. 5, 1990, p. 94.

34.

C. Geertz, O Saber Local, Petrópolis, Vozes, 2000, p. 86.

35.

C. Geertz, A interpretação das culturas, Rio de Janeiro, LTC, 1989, p. 29.

36.

Ibid, p. 30.

37.

Geertz em interessante nota de rodapé no livro Interpretação das culturas sobre a «inscrição» enfatiza que «a maior parte da etnografia é encontrada em livros e artigos, em vez de filmes, discos, exposições de museus, etc. Mesmo neles há, certamente, fotografia, desenhos, diagramas, tabelas e assim por diante. Tem feito falta a antropologia uma autoconsciência sobre modos de representação (para não falar de experimentos com elas)». Penso que, também, os modos de representação dos documentos devem ser considerados inscrições passíveis de interpretação.

38.

C. Geertz, A interpretação das culturas, Rio de Janeiro, LTC, 1989, p. 31.

39.

D. Cefaï, Lê Souk de Sefrou. Sur l’économie de Bazar , Saint Denis, Editions Bouchene, 2003.

40.

J. Clifford, A experiência etnográfica, Rio de Janeiro, UFRJ, 1998, pp. 17-62.

41.

Expressão atribuída a Paul Ricoeur por Roberto Cardoso de Oliveira, op. cit., p. 105.

42.

Essa noção não é totalmente desconhecida da antropologia. James Clifford (1998) em entrevista publicada em A experiência etnográfica, reportando-se à contribuição teórica de H. Stuart Hughes à antropologia americana diz que «ele distinguia a história intelectual de algo que chamava de ‘antropologia cultural retrospectiva’, um estranho e curioso termo que, agora, depois da história social e da história cultural, depois dos estudos de antropologia associados à história social, soa anacrônico». J. Clifford, A experiência etnográfica, Rio de Janeiro, UFRJ, 1998, p. 254.