2.1 Todos os nomes: a busca dos índices ou a construção dos dados

O título faz alusão à obra de José Saramago, Todos os Nomes e de algum modo recupera uma postura metodológica encontrada em Carlo Ginzburg com seu método indiciário. Essa aproximação só foi possível quando dei início à pesquisa nos arquivos paroquiais e diocesanos, cartório de 2º. Ofício Queiroz Rocha43. Nessa ocasião, de fato, as imagens do romance ganharam relevo na minha mente e já não podia deixar de pensar nas figuras de José Saramago: um funcionário de arquivo, que investigava a vida de uma desconhecida, supostamente morta, e um pastor que vivia com suas ovelhas em um cemitério e que muitas vezes trocava os nomes dos jazigos, talvez para embaralhar a vida e a morte e deixar os mortos no anonimato. A pergunta é como essas imagens me auxiliam na produção de uma proposta metodológica? A primeira imagem, a do funcionário de arquivo, corresponde àquela intuição do pesquisador de querer investigar o desconhecido44, o que não se revela imediatamente, propondo a construção de um sentido para ele, por conseguinte dando-lhe existência social. A segunda imagem, a do pastor, assemelha-se à sensação de que o pesquisador, embora proponha dar coerência aos fatos, nada mais faz do que embaralhar as coisas de modo a abrir outras possibilidades de investigação. Esse sentimento de mistura, de baralhamento me causou por vezes o desconforto de que os objetivos da pesquisa não estavam sendo alcançados, ou melhor, que o ordenamento do mundo não estava sendo produzido.

Carlos Ginzburg (2003) propõe o paradigma indiciário ou semiótico. Esse modelo que para ele é interpretativo se concentra nos resíduos, nos dados marginais, que possuem uma aura de revelação. A emergência desse método toma como ponto de partida a prática do caçador, com a decifração de pistas. O caçador teria sido o primeiro a «narrar uma história porque era o único capaz de ler, nas pistas mudas (se não imperceptíveis) deixadas pela presa, uma série coerente de eventos»45. Então, o que caracteriza esse saber, conforme o autor,

‘é a capacidade de, a partir de dados aparentemente negligenciáveis, remontar a uma realidade complexa não experimentável diretamente. Pode-se acrescentar que esses dados são sempre dispostos pelo observador de modo tal a dar lugar a uma seqüência narrativa, cuja formulação mais simples poderia ser ‘alguém passou por lá’46.’

Para C. Ginzburg (2003) outra analogia é possível para o método indiciário, agora não mais o da decifração de pistas do caçador, mas o paradigma divinatório ou implícito realizado quando da interpretação dos textos mesopotâmicos, datados a partir do terceiro milênio antes de Cristo. Para o autor, os dois, o paradigma venatório e o paradigma implícito «pressupõem o minucioso reconhecimento de uma realidade talvez ínfima, para descobrir pistas de eventos não diretamente experimentáveis pelo observador47». Haveria, no entanto, entre esses modelos divergência de ordem numérica, pois enquanto o primeiro fazia uso de uma série limitada de indícios ou sinais; o outro disporia de uma infinidade ilimitada de objetos de adivinhação. Outro aspecto divergente é que a decifração se volta para o passado e a adivinhação para o futuro.

‘De um lado, esterco, pegadas, pêlos, plumas; de outro, entranhas de animais, gotas de óleo na água, astros, movimentos involuntários do corpo e assim por diante. É verdade que a segunda série, à diferença da primeira, é praticamente ilimitada, no sentido de que tudo, ou quase tudo, podia tornar-se objeto de adivinhação para os adivinhos mesopotâmicos. Mas a principal divergência aos nossos olhos é outra; o fato de que a adivinhação se voltava para o futuro, e a decifração, para o passado, (talvez um passado de segundos). Porém a atitude cognoscitiva era, nos dois casos, muito parecida; as operações intelectuais envolvidas – análises, comparações, classificações -, formalmente idênticas. É certo que apenas formalmente: o contexto social era totalmente diferente48. ’

Esses modelos resultaram no método indiciário ou semiótico e partem ambos da formulação de que alguém passou por lá. Dito isto, entendo que a perspectiva semiótica de C. Ginzburg é outra que aquela exposta por Clifford Geertz (1989; 2002), o qualatribui ao estar lá uma centralidade no fazer antropológico. C. Ginzburg (2003) salienta a descrição meticulosa dos indícios e sintomas, prescindindo do vivido e da experiência direta do observador. Já C. Geertz atribui importância maior à experiência de campo, pois é dela que os pesquisadores retiram os argumentos narrativos para justificar e convencer os outros, seus pares, de que estiveram lá, vivendo e partilhando outra cultura ou outra realidade. Ele põe em perspectiva o coabitar com um grupo, uma sociedade, uma cultura outra que a do pesquisador. Esse ato se constituiu na condição de possibilidade para narrar, textualizar, dentro de certo limite, as vidas alheias que foram confiadas e dadas a conhecer ao autor-cognocente.

Decifrar pegadas pode se tornar um incômodo aos que não têm o dom de farejar e aos que não possuem a astúcia intelectual de um Sherlock Holmes, figura também recuperada por C. Ginzburg em Sinais: raízes de um paradigma indiciário, dessa feita ao aproximar Freud da leitura de Conan Doyle. Por vezes experimentei o desconforto de não saber o que buscar e o como buscar. Diante disso, encontrei significado nas palavras de Saramago ao afirmar: «o que dá o verdadeiro sentido ao encontro é a busca e é preciso andar muito para alcançar o que está perto».49 No caso dos arquivos visitados, mais do que andar, foi preciso perseguir, ir ao encalço da pista, do indício tentando vencer o desalento que chegava quando diante dos olhos não se via nada além de pilhas e pilhas de documentos empoeiradas, sem tratamento e sem catalogação50.

A pesquisa de caráter qualitativo não perde de vista o pressuposto de que é necessário compreender o contexto de relações no qual o ‘objeto’ se inscreve, para apreender os significados que lhes são atribuídos pelos agentes sociais. Portanto, investigar o contexto é uma exigência que o próprio dado requer, pois a fonte documental carrega em si uma dupla subjetividade, como enfatiza Queiroz ao tratar das técnicas de investigação:

‘O emprego destes documentos sejam eles oriundos ou não da atividade do pesquisador, requer uma crítica rigorosa para que sejam aplicados com segurança. No caso de já existirem, padecem de dupla influência da subjetividade: a de quem fez o documento e a de quem vai empregá-lo. Urge, pois, saber quando, como e com que intuito foi fabricado; a melhor crítica está em sua comparação com documentos provenientes de outras fontes e versando sobre o mesmo dado51.’

Quanto às fontes analisadas (inventários, registros eclesiásticos, listas de matrículas, registros de casamento, cartas de alforria, registro de batizados e outros), devo acrescentar que foi necessário manter cuidado redobrado tanto em relação ao manuseio desses documentos quanto de sua análise ou interpretação dos dados ali contidos. Bacellar (2005) lista uma série de cuidados que deve o historiador principiante adotar quando em contato com fontes documentais (tanto cuidados com o material físico como com o teor ou o conteúdo). Tais cuidados não servem apenas para o historiador, mas para todos aqueles que se aventuram nos labirintos dos arquivos para entender modos de organização social que já não existem mais. As fontes documentais podem levar o pesquisador a interpretações errôneas se os dados forem tomados ao pé da letra e se não for buscada uma reconstituição histórica mínima daquele documento, pois

‘Documento algum é neutro, e sempre carrega consigo a opinião da pessoa e/ou do órgão que o escreveu. Uma carta pastoral de um bispo, por exemplo, é a opinião do próprio autor, mas profundamente inserido em um panorama ideológico da igreja daquele momento e daquele local52. ’

Mantive vigilância em relação às fontes para que falsas interpretações não fossem produzidas, ainda que esse perigo pudesse persistir. Os documentos sejam os que foram construídos oficialmente pelas instituições de poder colonial sejam aqueles elaborados a partir de um diálogo intenso com um interlocutor podem levar o pesquisador a caminhos equivocados. Diante disso, fica o princípio de que se tudo é interpretação da interpretação como propõe C. Geertz (1989), talvez o papel do investigador não seja outro senão o de desvelar as camadas de interpretação, até chegar a uma que possa ser mais significativa. E porque não fazer como o arquivista do romance Todos os Nomes, recolocar o nome dos mortos no livro dos vivos.

Notes
43.

Conforme F. das C. da Silva Neto (1998) esse cartório é o antigo cartório de Câmara de Quixeramobim, cujo nome foi modificado pelo tabelião Tadeu Queiroz Rocha em 1997.

44.

Desconhecido no sentido de que não foi investigado, sistematizado conforme critérios científicos. Tratar as irmandades como algo desconhecido implica dizer que não fora alvo de investigação.

45.

C. Ginzburg, Mitos, emblemas e sinais, São Paulo, Companhia das Letras, 2003, p. 152.

46.

Ibid, p. 152.

47.

Ibid, p 152.

48.

C. Ginzburg, op. cit., p. 153.

49.

J. Saramago, Todos os Nomes, São Paulo, Companhia das Letras, 1998.

50.

Nesse estado se encontravam os documentos, inventários, livros de notas e outros, do cartório de 2º. Ofício Queiroz Rocha.

51.

M. I. P. de Queiroz, O pesquisador, o problema da pesquisa. A escolha das técnicas: algumas reflexões, in Reflexões sobre pesquisas sociológicas,1992, n. 3, s. 2a.

52.

C. Bacellar, “Fontes documentais, uso e mau uso dos arquivos”, in C. B. Pinsky (org), Fontes Históricas, São Paulo, Contexto, 2005, p. 23-79.