Capítulo 3
Os contornos da pesquisa de campo

Era final da década de 1990 e ainda não conhecia a cidade de Quixeramobim, localizada no interior do estado do Ceará. Visitei-a por ocasião do 1º. Encontro de Comunidades Negras no Ceará, em 1998, aí realizado. Esse evento, organizado pelo Projeto Agrupamentos Negros, PAN53, tinha por finalidade reunir pessoas das comunidades negras, na tentativa de articulação da população negra que se encontrava dispersa por várias localidades rurais do estado do Ceará. Bastiões, a comunidade que pesquisei no âmbito da graduação em Ciências Sociais e do mestrado em Sociologia, estava representada nas pessoas de Jackon Assis e Maria Zilmar. Já a minha presença estava condicionada ao papel que exercia junto ao grupo, ou seja, a de pesquisadora.

A démarche que dei seguimento sete anos após essa participação teve em um primeiro momento o objetivo de recuperar os contatos lá forjados, especialmente com Francisco das Chagas da Silva Neto, o Camurim. Este historiador desenvolveu uma pesquisa sobre a escravidão, resultando na monografia de graduação intitulada Escravidão e Abolição em Quixeramobim: a liberdade condicional e gradativa imposta pelos senhores proprietários (1850-1884). A leitura de seu trabalho foi importante para estabelecer uma interlocução, mas acima de tudo para adquirir a convicção de que seria possível realizar uma pesquisa sobre a irmandade de Nossa Senhora do Rosário em Quixeramobim. Por meio dele, fui apresentada a José Ailton Brasil, antigo funcionário da paróquia e que hoje assume importante posição no Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra - MST. Foi sob sua orientação que cheguei à casa paroquial e tive acesso ao livro de Receita e Despesas da Confraria de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos, referente ao período de 1883 a 1887. Indubitavelmente esses contatos me propiciaram o levantamento inicial e o posterior recolhimento do material para elaborar um projeto de doutorado.

O projeto A irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos de Quixeramobim: sociabilidades e identidade aprovado no doutorado do Programa de Pós-Graduação em Sociologia na UFC, tinha como finalidade ampliar o conhecimento histórico-antropológico sobre o Negro no Ceará, através do estudo do contexto e das dinâmicas de formação das irmandades dos Homens Pretos. Visava pensar no cotidiano dessas organizações, procurando identificar os esquemas de significação que dava sentido ao modus vivendi dos Negros irmanados no período colonial. Isso levava necessariamente a perguntar pelo tipo de cultura produzida e reproduzida por meio de ações. Enfim, tencionava perceber as interações e as sociabilidades, os tipos de representações identitárias bem como os símbolos que elas evocavam.

Resta dizer, antes de avançar no detalhamento dos procedimentos adotados, que as irmandades eram associações, onde se valorizavam os cultos aos santos e a mútua assistência material e espiritual aos seus integrantes. Empenhavam-se no auxílio aos presos, doentes e desvalidos bem como na construção de capelas; para tanto, tinham a obrigação de constituir um patrimônio. Essas associações eram regidas por estatutos ou compromissos, que dependiam de aprovação do poder régio por meio da Mesa da Consciência e Ordens, estabelecida em Portugal. Nos estatutos estabeleciam-se todas as normas de funcionamento da irmandade desde sua composição, eleições, obrigações da mesa dirigente, festividades, sufrágios e as alfaias ou ornamentação das igrejas. As irmandades do Rosário se difundiram largamente no Brasil nos séculos XVIII e XIX e congregavam em torno de si Homens Pretos escravos ou libertos e seus descendentes. Eram associações dotadas de legitimidade e exerciam, conforme Ronaldo Vainfas (2000) um «papel relevante no processo de aculturação da população africana, estimulando-a ao exercício dos ritos católicos e à participação nos sacramentos»54

Em vista da concretização dos objetivos propostos no projeto, intensifiquei pesquisa em Quixeramobim aonde retornei sucessivas vezes em 2005, 2006, 2007 e 2008, sobretudo para dar seguimento àquele impulso inicial com o levantamento documental. Em 2005 comecei a listar o material pertencente à Irmandade que se encontrava na casa paroquial. José Ailton Brasil, como já assinalado, me abriu as portas, apresentando-me aos padres e lhes revelando o que eu pretendia realizar. A partir daí documentos eclesiásticos me foram confiados, tanto para consulta como para xerografia. Posso atribuir o mérito da facilidade de acesso ao material à confiança que os funcionários e mesmos os padres depositam nesse antigo funcionário da paróquia. Muita dificuldade teria enfrentado se não fosse pela intermediação do Brasil, pois muitas vezes as instituições religiosas se fecham e não têm interesse em facilitar pesquisa em seus documentos, muitas vezes por desconhecimento ou por falta de algo que possa ser identificado como arquivo. Com isso não enfrentei dificuldades em consultar livros ou documentos existentes, salvo àquelas de falta de catalogação e da precariedade de conservação dos mesmos.

Quanto a essa última dificuldade, não diz respeito propriamente à casa paroquial ou à paróquia de Santo Antônio, pois lá sequer existe um arquivo propriamente dito embora o material tenha sido abrigado recentemente em uma biblioteca, construída em 2008. Assim, fui gradativamente nos anos que se seguiram à pesquisa, identificando o material, sempre amparada por uma máquina fotográfica digital para a apreensão dos registros, que me interessariam como dados a serem analisados. Os que primeiro sofreram identificação foram os livros dos séculos XIX e XX intitulados Miscelâneas Religiosas ou apontamentos, 1878 e Circulares e Cartas Pastorais, 1888-1899. Também livros diretamente ligados à Irmandade do Rosário dos Pretos como Lançamento de Receitas e Despesas, 1910-1919 e Registros de Aforamento, 1914-1922.

Em 2007 me concentrei na pesquisa dos documentos do Cartório de 2º Ofício Queiroz Rocha, também em Quixeramobim. No que diz respeito à organização dos arquivos, a situação era similar à da paróquia, com um agravante, a grandiosidade do material sem catalogação. Esse Cartório abriga documentos provindos de outros cartórios e da justiça e se constituem na grande massa de processos civis e penais, inventários, livros de notas. Privilegiei a consulta dos livros de notas do século XVIII em vista das cartas de alforria e dos registros de doação bem como alguns inventários de escravocratas do XVIII e XIX.

Fez parte ainda dessa etapa de pesquisa o reconhecimento do arquivo da Cúria Diocesano de Quixadá55, onde se concentra um vasto acervo de registros de batizados, de casamentos e de óbitos de todas as paróquias que respondem pela sua jurisdição, dentre estas, a de Quixeramobim. De todas as instituições visitadas, a Cúria é que desenvolve melhor o sentido de arquivo, destinando um lugar próprio para o abrigo dos documentos e um funcionário para sua organização e zelo. Contudo, é importante dizer que do ponto de vista da acomodação, o espaço me pareceu pequeno e pouco arejado, o que propicia um rápido desgaste dos documentos, sobretudo os do século XVIII.

Com todas essas inserções e idas ao campo, não me sentia satisfeita com o material recolhido, daí a organização de um retorno ainda em 2007 para uma estadia maior do que as anteriores. Ao longo das três horas de viagem naquele ano fui consumida por muita ansiedade por duas razões: primeiro, as precárias acomodações que deveria retomar e depois, porque sentia que do ponto de vista da pesquisa nada de relevante tinha encontrado, salvo um livro de receitas e despesas da irmandade do Rosário. A apreensão foi superada logo, pela constatação de que não teria alternativa senão me hospedar na mesma pousada, a Antônio Conselheiro, talvez uma das piores do lugar. Não que a cidade não dispusesse de outras mais confortáveis, mas eram os recursos minguados e a proximidade das instituições onde retomaria a pesquisa que determinariam meu destino. Quando lá cheguei, percebi de imediato que acontecia naquela ocasião a festa do padroeiro Santo Antônio e aí teria de experimentar a exacerbação que o evento produz: carros de som ligados durante o dia e bandas de forró durante a noite.

Tudo me impelia a procurar outro lugar, o que não foi o caso. De fato, não poderia me distanciar do centro da cidade porque o meu projeto inicial tinha sofrido algumas modificações e ter acesso às pessoas que me pudessem falar sobre a irmandade seria muito importante para avançar na pesquisa de campo. Então, o fator que mais contribuiu para eu me hospedar nessa mesma pousada foi saber que essas pessoas estavam perto da área central da cidade e essa proximidade me ajudaria na sua identificação para posterior contato.

O interesse em dar voz aos supostos descendentes dos Negros, que estiveram à frente da irmandade de Nossa Senhora do Rosário, foi se construindo através da rica interlocução com os meus orientadores Ismael Pordeus e François Laplantine e da constatação in loco que eles ainda estavam lá. As sugestões dos orientadores, sensíveis às dificuldades da pesquisa documental e percebendo a riqueza que seria a introdução de testemunhos, foram sendo aceitas e com isso abriu-se a possibilidade de alargamento do meu campo de pesquisa, até então adstrito à pesquisa documental. A partir daí novas etapas de pesquisa de campo foram se sucedendo, agora incorporando a memória oral no que os testemunhos vivos pudessem reconstruir através de suas lembranças.

Em razão dos contratempos das primeiras idas a campo (deslocamento dos documentos, falta de catalogação, estado precário de conservação), delimitei alguns procedimentos sem os quais não poderia ter finalizado a pesquisa. Como o material chegava aos meus olhos sem qualquer organização, achei prudente adotar como primeira atitude de campo, listar o material existente no município tanto sobre escravidão como sobre as irmandades, contemplando o que existia no Cartório de 2º. Oficio e na paróquia de Quixeramobim. Dei importância também aos documentos que só aparentemente possuíam uma relação indireta com minha investigação. Por mais que as fontes não estivessem catalogadas foi possível encontrar livros, registros e inventários com o auxílio de um funcionário dos arquivos, por exemplo, a Hilda no Cartório, que embora às vezes não viesse a perceber a importância desses documentos para a história local, demonstrava todo interesse em ver o material organizado e conservado.

Os dois eixos (escravidão, irmandade) se constituíam em uma orientação geral, mas foi a leitura prévia dos documentos que me forneceu pistas a serem perseguidas. Esse procedimento me fez retornar várias vezes aos mesmos lugares para verificar se algo novo tinha surgido que viesse dar alguma coerência a realidade que pretendia compreender. Essa atitude muito próxima do método indiciário foi adotada especialmente com a correspondência mantida entre Julião Barrozo, antigo Juiz da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário, e o arcebispo de Fortaleza Dom Manoel da Silva Gomes, no princípio do século XX, que foi levantada na paróquia de Quixeramobim. O ofício do juiz dirigido ao bispo declarava estarem reconhecidos os estatutos da irmandade em Cartório e como prova disso encaminhava-os a autoridade episcopal de Fortaleza. Foi essa comunicação que me levou novamente ao Seminário da Prainha, na Sala de Estudos Eclesiásticos, em 2008, em uma tentativa de localizar esses compromissos.

Na primeira ida a Biblioteca do Seminário, em 2005, nada encontrei sobre a Irmandade de Nossa Senhora do Rosário em questão. Na segunda tentativa, qual não foi minha surpresa, ao verificar a existência de um conjunto de compromissos das irmandades que estiveram ativas em Quixeramobim no final do século XIX e princípio do XX, dentre eles os estatutos da irmandade do Rosário de 1896, 1899 e 1923, os compromissos da Irmandade do Santíssimo Sacramento, 1885 e os do Senhor do Bonfim, 1870, 1899. A descoberta desse material só foi possível devido a organização que os documentos eclesiásticos aí mantidos sofreram no último ano. Recolhido todo o material pertinente, passei a organizá-lo seguindo também os critérios (escravidão e irmandade) utilizados no levantamento dos outros documentos. Então o corpus se apresenta conforme o quadro a seguir.

Quadro 01: Documentos por eixos

Local
Eixos
Escravidão Irmandade

Cartório 2o. Ofício
Cartas de Alforria
Inventários
Doações





Paróquia de Quixeramobim






Licenças de casamento
Circulares
Cartas Pastorais
Apontamentos
Contratos de aforamento
Livros de receitas
Lista de matriculas dos membros da confraria
Provisão para Ereção da Capela
Oferecimento dos estatutos

Cúria Diocesana de Quixadá

Registros de Casamento
Registros de batizado
Registros de Óbitos
Seminário da Prainha de Fortaleza


Compromissos da Irmandade do Rosário
Compromissos da Irmandade do Santíssimo Sacramento
Compromissos da Irmandade do Senhor do Bonfim
Compromisso da Irmandade das Almas
Arquivo Público do Ceará
Fortaleza
Lista de escravos libertados
Relatórios das juntas de classificação de Quixeramobim
Quadro demonstrativo de escravos em Quixeramobim

Fonte: Arquivos pesquisados

Diante dessa apresentação, imperativa é uma breve descrição dos documentos levantados sem deixar de mencionar as condições materiais em que se encontravam. Igualmente importante é retomar todos os nomes dos testemunhos que tentaram construir comigo uma interpretação sobre a irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos de Quixeramobim. Essas vozes, nem sempre uníssonas, me sinalizaram novos olhares para os documentos e confesso que elas me ensinaram o sentido de colocar em diálogo as memórias, sem pretender atribuir maior fiabilidade a uma ou a outra.

Notes
53.

Essa associação foi uma tentativa realizada por alguns estudiosos da temática negra que intercalavam essa prática com uma atuação política no Movimento Negro. Um dos principais idealizadores desse encontro foi Alecsandro Ratts, antropólogo formado pela USP, que realizou pesquisa em Conceição dos Caetanos no estado do Ceará.

54.

R. Vainfas, Dicionário do Brasil Colonial,Rio de Janeiro, Objetiva, 2000, p. 317.

55.

O arquivo diocesano de Quixadá está situado à rua Eudásio Barroso em Quixadá.