3.1 Os documentos da biblioteca da paróquia

Considerar o que encontrei na casa paroquial como arquivo pode ser otimismo de minha parte, uma vez que os livros lá pesquisados não foram ainda catalogados e não sofreram nenhum tipo de organização56. São livros antigos, esquecidos e empoeirados dentro de estantes e baús de madeira, como dizem os secretários da paróquia. Na casa paroquial, existem livros do século XIX e princípio do XX, alguns em estado precário de conservação e outros em condições melhores. As fontes de dados mais importantes, que dizem respeito à irmandade de Nossa Senhora do Rosário são registros de aforamento, livro de matrícula dos irmãos, lista de devedores, livro de receitas, escritura de doações para a constituição do patrimônio edocumentos que os intitulo de avulsos.

Os registros de aforamento, que não se constituem propriamente um livro, perfazem um número de quarenta e nove registros e encerram os anos de 1914 a 1922. Esse material, mesmo com as duas primeiras páginas danificadas, o que não impediu uma boa leitura, é um documento importante para se perceber que a irmandade no início do século XX esteve em funcionamento, derrubando a tese defendida por alguns historiadores de que as irmandades teriam desaparecido logo depois de abolida a escravidão, em 1888. Já os livros de matrícula e a lista dos irmãos com anuidades atrasadas são organizados em ordem alfabética e datam de 1918 e 1922, respectivamente. Esses livros não só confirmam que a irmandade operou ainda na década de 1920 como revela que a família Matias esteve matriculada, assim como a família Barroso, embora em menor proporção. Pelo menos dez membros das famílias negras Mathias (seis) e Barroso (quatro) foram presença constante na irmandade no decorrer dessa década, efetuando o pagamento de suas anuidades. Os dois livros de receitas e despesas compreendendo os anos 1833-1887 e 1911-1918, o primeiro de duzentas páginas e o segundo de setenta páginas, respectivamente, fornecem um detalhamento dos bens e das despesas da Confraria e é apresentado em cartório pelo provedor da Capela de Nossa Senhora do Rosário. As duas escrituras de doações de bens para constituição do patrimônio da confraria, datadas de 1770 e 1787, pelas descrições que trazem, se constituem em fontes preciosas para o entendimento do engajamento dos membros frente às necessidades materiais da organização.

De todos os registros encontrados, a provisão de 177257 para a ereção da capela de Nossa Senhora do Rosário, do visitador Veríssimo Rodrigues Rangel, é a referência mais recuada no tempo e é a que mais revela pistas para uma compreensão dos primórdios da constituição da confraria. A cópia transcrita, de treze páginas, certamente baseado em documento original, foi encontrada na paróquia de Santo Antônio depois que o material lá existente sofreu uma intervenção e foi deslocado para uma pequena biblioteca, construída com a finalidade de abrigar os documentos antigos. Essa pequena organização trouxe-me outros registros primorosos como proclamas de casamentos, licenças e certidões de assentos. Dentre estes se destaca o registro de casamento de Julião Barroso de Oliveira de 1883.

Quadro 02: Documentos da irmandade de Rosário dos Pretos de Quixeramobim
Natureza do documento Data Quant.
Termo de aforamento 1899/1914-1922 50
Livro de matrícula dos irmãos 1918 1
Lista dos irmãos em dívida com a irmandade 1922 1
Livro de receitas e despesas 1833-1887/1911-1918 2
Provisão para ereção da Capela de Nossa Senhora do Rosário 1772 1
Escritura de doação de terras à capela de Nossa Senhora do Rosário 1787 1
Total............................................................................................................................56

Fonte: Paróquia de Quixeramobim

Dos documentos avulsos, dois são significativamente esclarecedores a respeito do período em que a irmandade esteve funcionando e das mudanças que sofreria para continuar operando. Aqui me refiro especialmente ao pedido de certificação dos estatutos da irmandade em 1918 ao oficial de Registro Geral de Hipotecas e o documento que encaminha os estatutos e o registro da irmandade ao arcebispo de Fortaleza Dom Manoel da Silva Gomes, em 1922, correspondência já referida. Este documento, encaminhado à arquidiocese de Fortaleza, foi assinado por vinte e seis membros da mesa regedora, assumindo Julião Barroso o papel de juiz e Antônio Mathias do Carmo, o de procurador da irmandade.

O oferecimento dos estatutos foi uma resposta ao pedido feito pela arquidiocese em 1919 à irmandade, tendo em vista a sua reformulação. Ao apresentar os estatutos, conforme o pedido, o juiz esclarece que a associação estava moldada pelos ensinamentos da Igreja Católica Apostólica Romana. Certamente tal pedido tem a ver com as exigências e reorientações da Igreja Católica, inaugurando novas políticas na condução da fé e dos preceitos cristãos, centrada em Roma. Esse tema é destacado para se compreender como o processo de romanização oportunizou a reestruturação das irmandades, não necessariamente as negras, incidindo muitas vezes no seu desaparecimento.

Além dos documentos de interesse direto da irmandade (lista de matrícula, escritura de doação, prestações de contas etc.) tive acesso a vários outros registros que se tornaram fontes complementares àquelas, por exemplo, o livro intitulado miscelâneas 58 ou apontamentos, datado de1878. O que salta aos olhos nas suas duzentas páginas em bom estado de conservação é a diversidade de temas discutidos como seu próprio nome sugere. O livro de tombo, compreendendo os anos 1888-1904, se constitui de circulares e cartas pastorais que tratam de assuntos mais gerais como o debate em torno da encíclica A liberdade humana de Leão XIII, tema que abre o livro em 1888, e até discussão sobre as chamadas doutrinas modernistas 59 . Ainda são debatidos assuntos mais específicos como o processo inquisitório empreendido por Roma contra as supostas heresias de Juazeiro ou contra o padre Cícero. O livro é de autoria do bispo de Fortaleza dom Joaquim José Vieira e me pergunto se esse documento não deveria estar no arquivo diocesano ou se existia uma prática de cada paróquia ter uma cópia já que os temas abordados são de orientação geral para os católicos.

Ademais, incluo nesse conjunto ainda outras fontes como proclamas de casamentos, licenças e certidão de assento dos anos de 1872 a 1886. Esses registros encontram-se empilhados na biblioteca recém construída na casa paroquial e o único critério de organização utilizado foi o de separação por ano. Foi graças a esse pequeno ordenamento que pude identificar os registros envolvendo escravos e a confirmação do casamento de Julião Barroso de Oliveira, antigo procurador da irmandade de Nossa Senhora do Rosário, referido há pouco.

Notes
56.

Gostaria de esclarecer que não se trata aqui dos arquivos de registros de batismo e de casamento. Como a Cúria a paróquia mantém um acervo dos anos mais recentes. Meu foco em Quixeramobim não eram esses registros.

57.

Essa provisão recupera vários outros documentos e o mais antigo deles é o registro da doação de terras que fez o pardo Manoel Gomes de Freitas em 1760 para a conformação do patrimônio da capela de Nossa Senhora do Rosário de Quixeramobim.

58.

Conforme dicionário Soares Amora miscelânea é uma «mistura de escritos sobre diversos assuntos no mesmo volume». São Paulo: Saraiva, 1998.

59.

Esse livro não será objeto de análise.