3.4 Os interlocutores

Se não é o dado que define a perspectiva teórica a ser adotada, tampouco ele se confunde com a teoria. O pesquisador, sem saber que informação vai encontrar no trabalho de pesquisa, define a priori a abordagem que norteará sua análise e quando muito define como obterá seus dados, isto é, define os aspectos metodológicos. A natureza do dado é ser construído e é a partir desse entendimento que o campo de pesquisa pode ser definido. Por isso, a decisão de dar privilégio aos arquivos não poria em cheque a possibilidade de fazer uma pesquisa antropológica, mesmo ela tomando como objeto uma realidade não mais existente, passada, à luz dos testemunhos deixados nos documentos. O questionamento da viabilidade dessa pesquisa me levou a incorporar os testemunhos das famílias negras ainda residentes em Quixeramobim, procedimento que me permitiu perceber a existência de uma memória sobre a festa de Nossa Senhora do Rosário. Com esse alargamento do que compreenderia o campo de pesquisa, a perspectiva teórica foi mantida, uma antropologia histórica, agora confirmada pela utilização de dados construídos em uma operação vis-à-vis, em um quadro de interação do pesquisador com interlocutores.

A introdução do diálogo com pessoas das famílias negras, descendentes de antigos membros da irmandade de Nossa Senhora do Rosário tinha como intuito construir um entendimento sobre essa instituição, a partir do que eles pudessem narrar de sua história. Essa operação se tornou impossível porque as pessoas entrevistadas não vivenciaram a contemporaneidade da irmandade. No entanto, passaram a recuperar os eventos que foram protagonizados por seus antepassados Negros, que estiveram ligados a ela, assim como os eventos que eles mesmos tinham participado como a festa de Nossa Senhora do Rosário.

Ao constatar a existência dessas pessoas, organizei outra etapa de pesquisa cuja identificação de membros de tais famílias me pareceu imprescindível. Sem saber ao certo onde elas se encontravam, saí à procura dessas pessoas ora auxiliada por moto-taxistas ora pelo padre Alexandre. Graças à paciente ajuda desse último, identifiquei oito pessoas, estabeleci um primeiro contato quando ainda fazia o levantamento documental e entrevistei-as em 2007. No quadro a seguir, apresento os nomes das pessoas identificadas e entrevistadas, utilizando uma identificação auto-atribuída.

Quadro 05: Os interlocutores em Quixeramobim
Mulher Identificação Idade Homem Identificação Idade
Dora Monteiro Parda 99 Raimundo Barroso Negro 90
Vitória Barroso Negra 85 Julião Barroso Negro 82
Tereza Alves Negra/raça
de Angola
78 José Borges do Nascimento Índio 78
Fátima Alexandre Negra 50 Raimundo Borges do Nascimento Índio 76

Fonte: Os interlocutores

Com esses interlocutores tive que considerar sua vinculação à devoção à Nossa Senhora do Rosário ao longo do tempo, mesmo com descontinuidade e a capacidade de elaborar um discurso sobre os momentos em que estiveram também envolvidos com a festa dessa Santa, uma vez que da história propriamente das irmandade religiosa que começou essa manifestação cultural não tomaram conhecimento. O material resultante desse diálogo me levou a perceber a forte vinculação entre devoção e família, em especial com aquelas pessoas entrevistadas identificadas como negras. Ainda me sugeriu a relação de parentesco simbólico entre eles via a devoção comum à Virgem do Rosário. Esse aspecto já tinha sido observado em Bastiões, com as famílias negras que mesmo não possuindo um parentesco de fato, diziam-se todas serem de uma mesma família pelas narrativas que elaboravam em torno da devoção a Nossa Senhora do Carmo, começada com os seus antepassados Negros, fundadores da povoação.

Diante disso, arriscaria afirmar que a devoção a um santo tem sido em algumas configurações (como as duas estudadas por mim) fator aglutinador do sujeito Negro e tem sido elemento marcante na definição de uma identidade e da pertença a um grupo determinado ou coletividade. Não se trata aqui de afirmar que a cultura define a identidade, mas antes dizer que alguns sinais diacríticos são trabalhados e ressignificados pelas coletividades quando elaboram uma representação de si e alimentam o sentimento de pertença comum. No caso das pessoas que entrevistei em Quixeramobim, mesmo estando dispersas hoje, nas histórias que narram sobre seu passado, recuperam os momentos em que estavam juntas em um mesmo espaço, como se fossem uma grande família em torno de um projeto comum: a preparação e a realização da festa de Nossa Senhora do Rosário no mês de outubro.

Com eles, percebi que a festa e a devoção à Nossa Senhora do Rosário eram uma coisa dos Negros. Isso me facilitou perguntar algo que me parecida indispensável: como eles se identificavam? Cinco dos entrevistados se identificaram como Negros; dois como Índios e um como Parda. Dedim e Safira que se apresentaram como sendo indígenas, não desconsideram o parentesco real que têm com a família Barroso; Dora Monteiro, Tereza Alves e Fátima Alexandre não possuem afinidade com “os Barroso”. Nesse exercício de auto-identificação, o que mais me impressionou foi o depoimento de Tereza Alves, pois quando lhe perguntei como se considerava nessa configuração de “ser índio” ou “ser negro”, ela respondeu-me prontamente “sou negra, porque minha mãe me dizia que eu era de “raça de Angola”. Ela narrou-me que sua avó, Jantaria de Paula, teria vindo da África e sido vendida para o Ceará. Igual destino tinha sido reservado aos seus irmãos José Alves de Paula, Luzia, Zequinha, Maria, Francisca e Manduca. Falou-me de tantos outros Negros que povoam suas lembranças de menina, a vendedora de bolo e empregada de cozinha Antonia Horácio e outros como Francisco do Monte e José Galdino.

O discurso de Tereza Alves se apóia nas narrativas de sua mãe e de sua avó porque ambas lhe passaram o sentimento de terem vindo da África e carregar consigo, especialmente sua avó, a experiência da escravidão. Ela toma para si a expressão “raça de Angola” atribuída pela sua avó e talvez aí eu tenha uma chave de compreensão das formas de classificação utilizadas pelos escravocratas e pela própria Igreja Católica ao tentar “inserir” o Negro no sistema de escravidão.

Do aspecto religioso Tereza Alves narrou que no seu tempo de menina participou da Cruzadinha e da Liga Católica. Conforme padre Alexandre, cuja companhia não foi possível dispensar na visita à interlocutora, essas eram manifestações ou expressões de uma igreja renovada pelo processo de romanização. Essa redefinição das práticas religiosas foi responsável pela desorganização das irmandades e de tudo que fosse manifestação de um catolicismo tridentino. As ligas e os apostolados da oração, consoante ainda seu entendimento, abrigaram tudo aquilo que, com os novos tempos parecia ultrapassado, mormente as devoções de santos medievais como o era o culto a Nossa Senhora do Rosário.

Raimundo Barroso, 90 anos, com o qual tive uma conversa que não foi possível gravar, pois este se encontrava doente, veio a falecer no período em que estive em campo, o que tive conhecimento somente quando o procurei pela segunda vez. Fica aqui, no entanto, o registro de nosso primeiro e único contato. Para encontrar-lhe tive que me embrenhar pelo bairro Maravilha, onde se concentra a população pobre da cidade. Era o membro mais velho das famílias negras que durante anos exerceram importante papel na realização da devoção a Nossa Senhora do Rosário. Raimundo Barroso vivia sozinho em sua pequena casa de tijolo descoberto. Quando o visitei, ele ficou o tempo todo deitado em uma rede, dizendo-se muito fraco e com uma saúde debilitada. Lamentou naquela ocasião não poder me conceder uma entrevista, mas aceitou prontamente meu convite para a foto e para um próximo encontro. Infelizmente não pude realizar mais do que uma conversa informal e poucos elementos da sua participação e da família na festa me foram fornecidos.

A entrevista com Julião Barroso, 82 anos, irmão de Raimundo Barroso, foi marcada por contratempos, sendo o primeiro deles a dificuldade de encontrá-lo. Estava localizado longe do centro da cidade também em bairro periférico, coabitando uma família que não era a sua primeira. Chegando a casa dele me identifiquei e coloquei-o a par dos meus propósitos. A sua timidez tinha ares de desconfiança, o que não o impediu de aceitar meu convite para em uma outra ocasião realizar uma entrevista. Estive novamente na sua residência, no dia e hora combinados, mas as circunstâncias não me pareciam favoráveis: barulho de crianças que se agitavam nos pequenos cômodos da casa, entra e sai de adultos e música de rádio. Percebendo o seu constrangimento, sugeri-lhe um próximo encontro que se concretizou uma semana depois. Naquela ocasião, encontrei um ambiente mais favorável e quando de minha chegada os adultos de pronto colocaram as crianças nos braços e saíram a passear com elas. A música de rádio era escutada ao longe. Agora outra sonoridade se impunha: o latido do cachorro do vizinho sobre o qual nada podíamos fazer. De todo modo, aí já se encontrava melhores condições de trabalho e me pus a entrevistá-lo com base em roteiro semi-dirigido

Esse recurso me pareceu pouco eficaz com Julião Barroso, porque ele optou por me narrar sua trajetória individual, em especial como tinha logrado na vida como oficial de justiça, vocação que tinha sido também a de seu pai, Julião Barroso. Além de oficial de justiça, seu pai teria sido membro da mesa regedora, na função de juiz, da irmandade de Nossa Senhora do Rosário no final do século XIX e no início dos anos de 1920, como se encontra documentado em registros encontrados na paróquia. Sem desrespeitá-lo, procurava dirigi-lo para uma narração sobre o engajamento de sua família na irmandade “dos Pretos” do Rosário e na festa de sua padroeira. Ao cabo de uma tarde de conversa, me forneceu alguns elementos sempre voltando para suas experiências individuais sobre o que falava com muita desenvoltura.

Vitória Barroso, 85 anos, reside no bairro Vila Betânia, parte periférica da cidade, em casa modesta, com seu esposo. Orgulhosa dos seus filhos e dos netos que eles lhes deram, me fez conhecer um a um pelas fotografias, espalhadas na parede no corredor da casa. No primeiro encontro Vitória demorou a reagir às minhas perguntas, demonstrando desconhecimento dos eventos que teria participado seu pai e seus parentes. Essa situação foi contornada com espontaneidade para responder “não”, simplesmente quando não sabia ou não se lembrava do engajamento deles com a irmandade de Nossa Senhora do Rosário. Malgrado sua timidez e o barulho que emanava da rodovia perto da qual reside, dificultando em parte o registro da entrevista, nossas conversas foram longas e agradáveis, sobretudo quando era estimulada a falar de suas experiências pessoais.

Dora Monteiro, 99 anos, solteira, vive em uma casa com um pomar que cuida com muito esmero. O seu prazer, antes de me falar sobre as histórias que conhecia dos Negros de Quixeramobim, foi me fazer visitar suas fruteiras e me oferecer a beleza e o doce levemente acre de suas cajás. O prazer por essa atividade teria adquirido com a mãe, pois toda vida ela possuiu planta, canteiro, sentencia Dora. Além do gosto pelo cultivo, teria exercido a função de professora durante 15 anos na cidade. Com ela também não foi possível seguir um roteiro semi-estruturado. Por essa razão, a entrevista se transformou em diálogo descontínuo, como são suas lembranças, fluindo sempre quando eu introduzia perguntas estimuladas pelas pistas fornecidas por ela. Ela chegou a participar da festa do Rosário organizada pelos Barrosos. Na verdade, ela é uma das que mais fatos narra do tempo da hegemonia dos Barrosos na condução da festa de Nossa Senhora do Rosário, tempo dos Barrosos, que ela foi contemporânea.

A calorosa recepção que tive na casa do senhor José Borges do Nascimento (Dedim), 78 anos, se deve em parte ao fato de ter sido apresentada pelo padre Alexandre. O que pretendia ser um contato inicial se transformou logo em diálogo porque ele se colocou prontamente à disposição para falar comigo naquele instante mesmo. Como nunca gravava entrevista na primeira visita, reservada apenas para um reconhecimento, não estava equipada. O que não foi um problema porque o padre Alexandre me ofereceu seu gravador. Dedim demonstrou verve para narrar e por isso não foi necessária a utilização de perguntas semi-dirigidas. Os temas lhes eram sugeridos, no que ele desenvolvia-os, recuperando lembranças dos eventos que teria experimentado e dos que sabia ter acontecido por ter ouvido falar. Quando sua memória lhe pregava algumas peças, esquecendo um nome ou uma data, pedia auxilio para a esposa que acompanhou toda a entrevista. Deteve-se a falar longamente dos Barrosos e a lhes atribuir importância no lugar porque sempre, diria ele, “cuidaram do terreno de Nossa Senhora do Rosário”, uma porção de terra, localizada na Serra de Santa Maria, que fazia parte do patrimônio da virgem do Rosário. O momento da foto para ele foi de grande satisfação e fez questão de ser fotografado com o padre, registro que achou indispensável, pois nunca tinha recebido visita de um em sua casa.

O senhor Raimundo Borges do Nascimento (Safira), 76 anos, como todos os outros também nasceu em Quixeramobim. É proprietário de uma casa de um compartimento, também na periferia da cidade. Entre o parco mobiliário, encontra-se uma televisão que manteve ligada durante nossa curta conversa. É irmão de Dedim e se apresenta como parente de Julião Barroso. Dispensei com ele o uso do roteiro, introduzindo o tema da irmandade. A vinculação de Julião Barroso com esta foi imediata, pois só essa família negra, para ele teve importância em Quixeramobim. A pequena entrevista também traz uma demonstração de partes do auto de coroação de reis congos, sociabilidade atribuída às irmandades de Nossa Senhora do Rosário.

Fátima Alexandre, 50 anos, solteira, vive nas proximidades do centro da cidade, em residência própria. Divide seu tempo com a profissão de professora e animadora pastoral. Participa de todas as festividades religiosas da paróquia, dentre elas a festa de Santo Antônio, padroeiro do lugar. Em todas as atividades de que participa, seja profissional ou religiosa, procura dar um sentido étnico. Diz-se mesmo responsável na escola, por dar um sentimento de negritude aos seus alunos. O envolvimento dela é tal com esse sentimento, que as lágrimas lhe correm quando fala da discriminação dos Negros na atualidade e do sofrimento dos escravos no passado. Na longa entrevista que realizamos, ela fez questão de me dar a impressão de uma pessoa que assume sua negritude. A memória de Fátima Alexandre, forçosamente construída com a ajuda de leituras, recupera a história da irmandade de Nossa Senhora do Rosário, assim como a origem da devoção do senhor do Bomfim, que também para ela teria começado com os Negros.

Esses interlocutores constroem uma interpretação do engajamento desses sujeitos na festa de Nossa Senhora do Rosário. Mesmo não organizando mais esse evento na atualidade, para eles é importante narrar às vinculações de outrora com essa sociabilidade. Eis aí a importância de introduzir o diálogo desses interlocutores com quem construo essa etnografia, cuja voz individual, a do pesquisador, «ne peut se faire entendre qu’en s’intégrant au chœur complexe des autres voix déjà presentes»61.

Notes
61.

T. Todorov, Mikhaïl Bakhtine, le principe dialogique. Paris, Seuil, 1981, p. 8.