4. 1 Os estudos sobre as irmandades no Brasil: um breve panorama teórico

Existe um consenso em torno da idéia de que são restritos os estudos históricos sobre irmandades para se entender a problemática do Negro no Brasil. Se isso se constitui em uma verdade, esse quadro vem se modificando e pesquisas muito significativas têm sido publicadas sobre as irmandades negras nos últimos anos. Representativo disso é o trabalho de Mariza de Carvalho Soares, intitulado Devotos da Cor. Identidade étnica, religiosidade e escravidão no Rio de Janeiro, século XVII (2000), que privilegia uma discussão sobre a irmandade de Santo Elesbão e Santa Efigênia; Marina de Melo e Souza, Reis Negros no Brasil Escravistas, História da festa de Coroação de Rei Congo (2002) e Antônia Aparecida Quintão com dois livros, um sobre irmandades negras em São Paulo e outro sobre irmandades de Pretos e Pardos no Rio de Janeiro e Pernambuco, intitulados Lá vem o meu parente (2002) e Irmandades negras: outro espaço de luta e resistência (2002). A particularidade desses estudos é trazerem uma abordagem histórica apoiada em documentação do período da escravidão para entender as sociabilidades negras gestadas nesse contexto.

Mariza de Carvalho Soares (2000) a partir da leitura do compromisso da irmandade acima referida, propõe uma interpretação histórica acerca da identidade étnica, desvinculando-a da compreensão que faz supor «nexos entre as culturas africanas e suas perpetuações no Novo Mundo»108. Sua crítica tem uma direção certa: os autores culturalistas. Tais autores sustentam a tese de que os grupos étnicos são definidos em função dos traços culturais que são imanentes ao conjunto da sociedade. Esses traços «são como entidades que podem ser subtraídas ou acrescidas sem com isso afetar o conjunto das relações que forma a unidade do grupo»109.

A cultura resulta da organização do grupo, por conseguinte, a identidade é ela mesma uma construção social. Perseguindo esse entendimento, Soares focaliza sua atenção no ponto de chegada, o Novo Mundo, e não no ponto de partida, a África e vai buscar na noção grupos de procedência a chave para interpretar a irmandade por ela investigada. Sua análise, portanto, «distancia-se da idéia de busca de uma cultura original, pura e auto-regeneradora, para destacar os arranjos resultantes de configurações profundamente marcadas pela violência das novas condições culturais a que estão submetidos os grupos étnicos africanos no cativeiro»110.

No que respeita à noção de grupo de procedência, Soares deixa entender que muitas classificações étnicas não correspondiam a grupos étnicos na África. Por exemplo, a denominação gentio de angola não representava um povo, ou uma etnia, e sim o porto de embarque. No entanto, esse lugar de embarque acabava sendo adotado como um ponto de referência identitária para aqueles que chegavam ao Novo Mundo. Conforme a autora, essa era uma identificação atribuída que o grupo internalizava, passando a se organizar segundo esse modelo111. Essa discussão me leva a pensar na forma como foram identificados os homens cativos de Quixeramobim, pois muitos eram designados pelo termo nação de Angola. O questionamento que faço é: essa atribuição era adotada por esses sujeitos, os Pretos da irmandade? Organizavam suas sociabilidades utilizando essa denominação? Elaboraram uma representação de si por meio dessa classificação?

Outro importante trabalho, publicado dois anos depois da pesquisa de Soares, é o livro de Marina de Mello e Souza, cujo título é Reis Negros no Brasil Escravista. História da festa de coroação de Rei de Congo. A autora focaliza suas reflexões na coroação dos Reis de Congo no sudeste dos séculos XVIII e XIX, propondo certas continuidades de práticas rituais do culto de Nossa Senhora do Rosário com religiosidades africanas. Diz a autora,

‘Essa capacidade de unir o devoto diretamente ao alvo de sua prece, remete a outra explicação para o êxito do culto a Nossa Senhora do Rosário entre os Negros, que seria a possível identificação do rosário com objetos mágicos constituintes da religiosidade africana entre eles os já mencionados minkisi, rebatizados de fetiches pelos Portugueses. Com relação a esse assunto, José Ramos Tinhorão, que entende que o catolicismo foi sempre integrado às comunidades negras por meio das ‘exterioridades do culto’ e não pela ‘assimilação dos conceitos teóricos da fé’, conclui que os Negros elegeram Nossa Senhora do Rosário para objeto de culto por terem estabelecido uma relação direta entre seu rosário e o ‘rosário de Ifá’, usado por sacerdotes Africanos112. ’

Ainda que a citação possa insinuar que a autora acentua a permanência de traços culturais africanos nas irmandades dos Homens Pretos, ela vai ratificar todo o argumento de Soares no que diz respeito à cultura e a identidade. Para tanto ela retoma a noção de grupo de procedência, não sem antes priorizar o caráter tensional que envolvia as relações sociais «dos Homens Pretos», tanto no interior das irmandades, nas disputas pelos cargos, quanto nas relações com autoridades eclesiásticas e membros de outros grupos.

Esses argumentos me levaram à constatação de que ao se pensar a identidade é necessário olhar para o contexto situacional113, tentando perceber o lugar a partir de onde esses sujeitos organizam suas interações e sociabilidades. Pensar também como essas interações e sociabilidades estavam entrecortadas por fatores étnicos seja para produzir uma diferenciação entre Negros ou entre Negros e não-Negros. Essas diferenciações acabam por produzir hierarquias no interior das irmandades, hierarquias legitimadas pelo cumprimento das normas que institui tal organização. Observo esse aspecto no compromisso da irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos de Quixeramobim, pois nem todos podiam assumir os cargos, e existiam regras a serem cumpridas e que garantiam a permanência no grupo de irmãos. Em razão disso, penso não ser possível prescindir da análise das relações de poder que constituem essa irmandade.

É importante notar que as irmandades eram estimuladas e aceitas pelo poder da igreja católica. A sua ação, de certo modo, era regulada pela religião católica. Nina Rodrigues (1945) entende que desse modo se «controlavam as comunidades negras africanas e garantiam a ordem concedendo um simulacro de liberdade política». Porém, outros autores percebiam-nas «como meio de integração dos Negros na sociedade local e de humanização dos escravos que ali podiam se reunir e divertir, sem, entretanto, contestar o sistema escravista, como espaço físico e político que dava a seus membros um sentimento de identidade e orgulho114». Desse entendimento não posso me afastar para compreender a irmandade de Nossa Senhora do Rosário de Quixeramobim, uma vez que os compromissos ao tratarem da composição da mesma, restringiam aos ‘Pretos’ a administração, excluindo Brancos e Pardos em determinados momentos. Poder-se-ia ainda questionar se as irmandades não se constituíam para os Negros, e depois também para os Pardos, em espaço político de negociação de identidades e diferenciações.

Notes
108.

M. de C. Soares, Os devotos da cor, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2000, p. 114.

109.

M. de C. Soares, Os devotos da cor, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2000, p. 114.

110.

Ibid, p. 118.

111.

Ibid, p. 111.

112.

M. de M. e Souza, Reis Negros no Brasil Escravistas, História da festa de Coroação de Rei Congo, Belo Horizonte, Humanitas, 2002, p. 161.

113.

M. C. da Cunha lembra que o ganho que se teve com os estudos de etnicidade «foi a noção clara de que a identidade é construída de foram situacional e contrastiva, ou seja, que ela constitui resposta política a uma conjuntura, resposta articulada com as outras identidades em jogo, com as quais forma um sistema». In Antropologia do Brasil. Mito, história e etnicidade, São Paulo, Brasiliense, 1987.

114.

Randles apud M. de M. e Souza, op. cit., p. 136.