5.1.1 As condições de vida escrava

Tendo ou não tido uma população escrava considerável, o fato é que a escravidão não vai aí fugir à regra no que diz respeito aos maus tratos e à crueldade dos seus senhores para com o cativo. A forma como os escravos eram tratados ficou muito bem registrada nos anúncios de fugas quando se apelava para as marcas físicas para identificar o fugitivo, certamente adquirida pelos castigos sofridos. O anúncio de fuga recuperado por Guarino Alves (1984) ilustra essa realidade vivenciada pelos Negros em condição cativa.

‘Com cicatriz pequena em uma das faces, José, mulato de 24 anos, alto e seco ganhou o bredo; um Caetano angolês, magro, pouca barba, nariz chato e pés pequenos, com marcas de chitcote nas costas escapou, também desapareceu o Fortunato, de cor retinta, 28 anos, rosto e cabeça compridos, pernas finas, com as pontas dos pés bem abertas para os lados, além de sinais de relho no lombo; fugiu Gertrudes, crioula de 40 ou 50 anos de idade, baixa, seca de corpo, sem o olho esquerdo; ganhou o mato José, 30 anos, com cicatriz no lábio posterior e marcas de chicote nas costas; fugiu Paulo, 15 anos, mulatinho de cor clara, sinais de talho visível, e nas ilhargas grande marca de queimadura; Cândido, com talho em um dos dedos do pé produzido por machado desapareceu sem deixar rastro; e Severino, cabra alto, arrogante no falar, tinha um talho na face171. ’

Não somente a imprensa registrou no Ceará os casos de tortura. O imaginário cearense está repleto de lembranças de tortura e maus tratos contra escravos. Marum Simão (1996), apoiando-se nos relatos orais descreve a violência com que os escravos eram tratados pelos seus senhores.

‘Embora a situação dos escravos, em Quixeramobim, fosse menos penosa, não faltaram, aqui e ali, alguns atos desumanos. Conta a tradição que certa senhora da sociedade chegou a introduzir uma ponta de pau na concavidade bucal de uma sua escrava, sendo necessário socorro médico. (...) Em outra oportunidade essa mesma senhora querendo castigar suas escravinhas, obrigou-as a sentarem-se no chão, com as pernas estendidas, e, calçada com tamancos, andou por cima das canelas das crianças172.’

Outrossim, pude constatar, em Quixeramobim, como esse imaginário se manifesta nas lembranças e devoções dos moradores da localidade serra de Santa Maria em torno de um cemitério de escravos. Esse cemitério nada mais é do que uma tumba, com pedras no entorno onde os moradores depositam suas ofertas à proporção que pedem e recebem graças. Relatam ainda os moradores desse lugar que lá existia uma moenda de cana-de-açúcar que muitas vezes foi utilizada para torturar escravos, levando-os à morte sob suplício. A tradição oral recupera a experiência de sofrimento dos escravos, mortos em circunstâncias brutais e desumanas, atribuindo a eles poderes milagrosos. Assim recorrem à prática de pedir graça aos mortos sob castigos e se alguns o fazem é porque acreditam que o sofrimento vivido por eles santificaram-nos. Na serra de Santa Maria, quando o pedinte ou devoto é aliviado de suas aflições, por doença ou angústia qualquer, as promessas são pagas com velas e flores colocadas na tumba tida como cemitério dos escravos. Relato de tortura contra escravo também ouvi de Dora Monteiro, entrevistada em 2007, em Quixeramobim. Ao se reportar ao tempo da violência contra os cativos, a interlocutora salienta que lá existia um dono de escravos, chamado Miguel Pinto “ruim como o diabo. Ele era tão miserável, tão, tão malvado que deu com uma cadeira numa neguinha escrava, que furou, rompeu, o olho dela”173.

O escravo, além de ter cerceada sua liberdade, podia ser trocado, vendido, alugado, submetido a maus tratos, que muitas vezes o levavam a morte. Era um ser submetido à vontade e muitas vezes aos caprichos dos senhores. Nesse sentido, ele era propriedade de outrem e em assim sendo, não poderia dispor de sua vida da forma que lhe conviesse. A utilização do relho ou de outros instrumentos de tortura como correntes em pés e pescoço, mordaças de ferro tinha um caráter disciplinador, recorrendo-se a estes expedientes sempre que o escravo infringisse à vontade do seu proprietário. Além da tortura, recorria-se à pena de morte se o escravo viesse a cometer delitos graves, como agredir fisicamente ou matar o seu senhor. Os castigos normalmente eram aplicados publicamente como a finalidade de incutir o medo nos outros. Nos núcleos urbanos se utilizava o pelourinho para a aplicação da pena, tanto pelo senhor como pela Justiça. Já nas fazendas, alheio a outra autoridade que não fosse a do senhor, o escravo era mandado ao tronco174 e ali era surrado com o relho.

Notes
171.

G. Alves, Elementos para o estudo da escravidão no Ceará, in Revista do Instituto do Ceará, Fortaleza, tomo especial, 1984, p.p 73-99.

172.

M. Simão. Quixeramobim, Recompondo a história, Fortaleza, 1996, p. 44.

173.

Trecho do diálogo com Dora Monteiro, Quixeramobim, 1997.

174.

Conforme C. Moura (2004) o tronco era um “Instrumento de castigo muito usado no Brasil, tanto quanto em outras partes onde existiu a escravidão moderna. Era um castigo que não dependia de julgamento da justiça, mas da simples decisão do senhor ou do feitor. Na área rural, praticamente todas as fazendas tinham um tronco para disciplinar o escravo desobediente ou fujão”. In, Dicionário da Escravidão Negra no Brasil, São Paulo, Edusp, 2004, p. 405.