5.1.2 A extinção da escravidão no Ceará e o movimento abolicionista

Com a proibição do tráfico atlântico, em 1850, o Ceará passou a exercer papel relevante no tráfico interno de mão-de-obra escrava, atendendo à demanda dos centros da produção econômica do país, notadamente das regiões sul-sudeste. Trata-se aqui do tráfico interprovincial.

‘Na realidade, o Ceará, ainda era, em 1880, um empório do comércio nordestino de escravos (entre 1871 e 1881, mais de 7.000 cativos, mais do que o quinto de toda população escrava, haviam sido vendidos pelos proprietários da província empobrecida, e, sem dúvida, muito mais foram transacionados ilegalmente), embora o mercado do sul fosse diretamente atingido pelas leis provinciais do Rio de Janeiro, São Paulo e Minas Gerais, que reduziam, drasticamente, os bens monetários dos fazendeiros175. ’

A venda sistemática de cativos para as demais províncias brasileiras e a Lei do Ventre Livre de 1871 foram fatores que contribuíram grandemente para a extinção da escravidão no Ceará. A esses fatores se juntam ainda a seca de 1877 e o movimento abolicionista, surgido nos setores médios da sociedade cearense.

‘O tráfico provincial foi o primeiro grande golpe contra o escravismo no Ceará. Os altos preços pagos por um trabalhador escravo nas províncias cafeicultoras do sul, veio ao encontro das necessidades financeiras sentidas pelos proprietários cearenses que de imediato passaram a vender seus cativos para aquela região176. ’

Foi nesse contexto e movidos por ares liberais soprados da Europa que surgiram os movimentos em prol da abolição da escravidão. Espalhados por todo país e longe de ser uma manifestação homogênea, o movimento abolicionista tomou no Ceará feições bem peculiares com a Sociedade Libertadora Cearense sob a presidência de João Cordeiro. Essa associação e o jornal O Libertador adquiriram grande notoriedade nacional, quando por meio de sua ação, a província cearense decretou extinta a escravidão em 1884, antecipando-se em quatro anos ao decreto da princesa Isabel. Clóvis Moura (2004) ao se reportar ao abolicionismo no Ceará diz que

‘De todas as províncias do Império, a do Ceará foi aquela que mais dinamismo e eficiência insuflou no movimento abolicionista. Na cidade de Fortaleza, já em 1880, fundava-se a Cearense Libertadora por iniciativa de João Cordeiro, (...) e outros. Uma presença que celebrizou a campanha no Ceará foi a dos jangadeiros dirigidos por Francisco José do Nascimento [alcunhado Dragão do Mar]sob a inspiração de João Cordeiro e de José Correa do Amaral. No Ceará a jangada era usada no transporte dos escravos do Norte para o Sul. Movidos pelos propagandistas, os jangadeiros resolveram dificultar o transporte de Negros nas suas embarcações. Ainda ajudavam na fuga de escravos, escondendo-os no meio do seu pessoal177.’

Decerto, a escravidão já estava inviabilizada economicamente e com as investidas contra as transferências de escravos para o sul-sudeste do país, outra saída não restava senão a sua extinção imediata. Isso, contudo, em nada tira o mérito da ação eficaz da Sociedade Libertadora Cearense, pois conforme “As estatísticas do Ministério da Agricultura, Comércio e Obras Públicas indicam a eficácia da campanha de dezesseis meses de libertação no Ceará. Dos 31.975 escravos registrados depois de 1871, na província, 2.211 já tinham morrido até 1884 e um total de 7.104 haviam sido enviados para fora. Existia, por tanto, um saldo de 22.660 cativos”178. O reconhecimento da eficácia da ação do movimento abolicionista cearense veio de todos os lados e de outras formas, e adquiriu seu ápice na emancipação dos poucos mais de 20 mil cativos. Talvez o reconhecimento mais prestigioso, o de José do Patrocínio, não deva ser esquecido, pois quando em visita à Sociedade Libertadora e “encantado com os rumos que a campanha havia assumido” deu o título ao Ceará de “Terra da Luz”. Luz que inspirou Dragão do Mar e o próprio José do Patrocínio, filhos de escrava, a transformar condições adversas em sonhos de liberdade.

Para contrastar com o feito heróico reconhecido nacionalmente, gostaria de destacar o depoimento de Fátima Alexandre, interlocutora desse trabalho de pesquisa, no qual ela dá sua própria versão do que foi a “libertação do Negro”.

‘Não houve, na minha opinião não houve, assim, uma libertação como as pessoas comemoram no dia 13 de maio, considerado o dia da libertação negra. Eu acho que foi mais assim, uma utopia. Eu particularmente não acho que houve essa libertação, porque eu ainda vejo o Negro muito preso ao preconceito. As pessoas têm muito preconceito com os Negros. Eu acho que os Negros, assim, de certa forma, ainda, sofrem violência, sofrem injustiça social. Sabe, eu vejo aqui em Quixeramobim, assim, as pessoas tratam, as pessoas negras de um modo que eu não gosto. Eu fico muito revoltada179. ’
Figura 01: Casa Grande com senzala no subsolo
Figura 01: Casa Grande com senzala no subsolo

Foto: Analucia S. Bezerra.

Notes
175.

J. M. de Alcântara Pinto, A extinção da escravatura na província do Ceará, Fortaleza, Revista do Instituto do Ceará, 1984, p. 122.

176.

. P. A de O. Silva, op. cit., 1987, p. 148

177.

C. Moura, Ceará Movimento Abolicionista, in, Dicionário da Escravidão Negra no Brasil, São Paulo, Edusp, 2004, p. 96.

178.

P. A de O. Silva, op. cit., 1987, p. 148

179.

Fátima Alexandre, Quixeramobim, 2007.