6.2 Antecedentes históricos de Quixeramobim

O município de Quixeramobim está localizado na região central do Ceará. Conforme o último Censo Demográfico, a população é de 59.244 habitantes, distribuídos na sua vasta área de 3.275 Km2, subdividida nos distritos de Uruquê, São Miguel, Damião Carneiro, Passagem, Nenelância, Manituba, Lacerda, Encantado, Belém, porção rural onde se concentram 50,33% e no distrito de Quixeramobim, porção urbana onde se encontram 49,69% da população de todo o município190. A sede é de médio porte e ainda conserva traços coloniais em seus sobrados como os que abrigam a administração municipal e a casa paroquial.

Encontra-se no espaço urbano um desenvolvido centro comercial, bancos, hospitais e rodovias, que ligam o município aos seus circunvizinhos como Quixadá, Mombaça, Pedra Branca e Canindé. Existem também escolas púlicas e privadas bem equipadas, dedicadas ao ensino fundamental e médio. Poder-se-ia dizer que aos poucos Quixeramobim vai tomando feições de cidade grande, com supermercados, movimentos de veículos, indústrias, especialmente de calçados. O município possui a segunda melhor posição no estado na produção de leite e isso está diretamente associado ao sistema de médias e grandes propriedades de terra e da prática de criação de gado bovino de longa data.

A memória menos recuada no tempo fala da estação de trem que atestava as passagens do ir e vir aos/dos confins outros do Ceará. A ponte metálica sobre o rio Quixeramobim, construída em 1899, ainda narra essas e outras travessias. Ela é travessia certa para se chegar ao bairro Maravilha que ainda guarda a história da prosperidade nos galpões da ferrovia, hoje transformados em Centros Sociais. Se com a ponte o trem atravessava o rio, interconectando pela via-férrea todo o Ceará, talvez ela ainda traga a inspiração de que o mundo não precisa ser separado, que não precisa existir centro e periferia, bairro Maravilha e Centro.

Mapa 01 : Localização de Quixeramobim
Mapa 01 : Localização de Quixeramobim

Fonte: Fundação Instituto Brasileiro de Geografia Estatística (IBGE).

A propósito, o bairro Maravilha, localizado à margem direita do rio, concentra boa parte da população menos abastada e foi lá que encontrei alguns descendentes dos antigos membros da irmandade de Nossa Senhora do Rosário como Raimundo Barroso, de quem pude aprender pouco, porque a vida já não lhe reservava mais o tempo de ensinar. Malgrado a poluição que grassa no Rio, ele esconde a beleza que inspirou Manuel Bandeira nos versos Saudades de Quixeramobim. Esse poeta esteve em Quixeramobim em 1912 para tratar da saúde com os bons ares que lá sopravam, como fizeram muitos outros. Além de manifestar suas saudades, ao descrever o rio, o poeta imagina a cidade no início do século XX ao narrar que “estive durante uns meses em um sobrado da praça principal da cidade, em frente à velha matriz, e se estou batendo esta crônica de saudades é porque vi no Cruzeiro de umas semanas atrás uma fotografia do templo, não como é agora, desfigurado pela restauração, mas como era ainda em 1908191”.

Figura 02 : Ponte sobre o rio Quixeramobim
Figura 02 : Ponte sobre o rio Quixeramobim

Foto : Analucia S. Bezerra

A imponência do sobrado192 e do grande sino de que fala Manuel Bandeira foi perdendo a visibilidade para o marco geográfico, encravado na praça Antônio Dias Ferreira. O efeito dele lá é apenas para indicar aquilo que se percebe nas cartas topográficas do Estado, ou seja, a centralidade do município no mapa do Ceará. Ele contrasta uma singular solidão moderna com o casario e as igrejas do seu entorno que falam de outras épocas e que narram outras histórias.

Figura 3: Marco geográfico localizado na praça Antônio Dias. Ao fundo vê-se a capela de Nosso Senhor do Bonfim. A foto ilustra ainda a preparação dos festejos do padroeiro da cidade
Figura 3: Marco geográfico localizado na praça Antônio Dias. Ao fundo vê-se a capela de Nosso Senhor do Bonfim. A foto ilustra ainda a preparação dos festejos do padroeiro da cidade

Foto: Analucia S. Bezerra

O aspecto religioso institucional está representado nas três principais igrejas: a matriz de Santo Antônio, padroeiro do lugar, a igreja do Rosário e a igreja do Bonfim. Esses três templos outrora abrigavam três irmandades religiosas. Na matriz, a do Sacramento, se reuniam os “Brancos”; na do Rosário, os “Homens Pretos” e na do Bonfim, os “Pardos”. Essas três irmandades representavam certa estratificação existente à época, revelando assim como o mundo religioso se orientava pela forma como a sociedade estava organizada ou vice-versa. Na verdade, esses dois mundos se confundiam de tão imbricados que estavam pelo padroado. Na base dessa organização estava a escravidão africana, ponto de equilíbrio e de acordo do temporal, o Estado imperial, e do divino, a Igreja Católica.

Ainda existem no município resquícios da estrutura fundiária de outrora com seus latifúndios, base de sustentação da pecuária. Associado a isso, um grande número de pequenas propriedades, resultado do movimento de reforma agrária, crescente no país nos últimos 10 anos, que já assentou mais de mil famílias em todo o município. Para além dessa estrutura fundiária, o criatório bovino desenvolveu a cultura da vaqueirice ainda que hoje ela venha sofrendo transformações, pois facilmente lá se vêem as motos substituírem os cavalos e, por conseguinte o gibão e o aboio. Decerto, esses elementos falam de outro tempo, mas ainda são ritualizados193, porquanto estão presentes no cotidiano dos quixeramobienses.

A extensão territorial, que o coloca entre um dos maiores municípios do estado, parece apenas ser um reflexo de outrora quando o patrimônio da então Villa de Campo Maior circunscrevia Quixadá, Boa Viagem, Mombaça, Madalena e parte de Canindé (Vide mapa Situação em 1823 e em 1872). O povoamento da região começou com as primeiras distribuições de datas e sesmarias nas margens do rio Ibú, nome que o indígena dava ao curso d água que, posteriormente, foi chamado de Quixeramobim. Afirma Marum Simão (1996) que “a rota de penetração para o sertão central, mais precisamente para o Boqueirão de Santo Antônio, seguiu o curso dos Rios Jaguaribe, Banabuiú e Quixeramobim, procedente do litoral, principalmente de Aracati”194.

Mapa 02 : O território de Quixeramobim em 1823
Mapa 02 : O território de Quixeramobim em 1823

Fonte: Fundação Instituto Brasileiro de Geografia Estatística (IBGE).

Mapa 03 : Município de Quixeramobim em 1872 depois do desmembramento
Mapa 03 : Município de Quixeramobim em 1872 depois do desmembramento

Fonte: Fundação Instituto Brasileiro de Geografia Estatística (IBGE).

Quixeramobim viveu dinâmica econômica similar às outras vilas coloniais, destacando-se no criatório bovino e fazendo pouco uso da mão-de-obra escrava. Em tese, deveria assim ter ocorrido, mas o que se observa nas fontes documentais é que nessa vila, em meados do século XVIII, muitos Africanos foram introduzidos na pecuária. Obviamente, não se pode falar de concentração de escravaria em plantéis e sim de uma expressiva distribuição de escravos nas mais de quarenta fazendas que perfaziam o seu território, conforme dado obtido nos registros de casamentos e batizados.

Nesse sentido, foi a criação de gado vacum que impulsionou a história econômica de Quixeramobim, despertando no século XVIII e XIX o desejo de muitos Portugueses pelas datas e sesmarias195. O interesse cresceu quanto foi instituída a vila de Campo Maior por Ordem Régia, visando conter a desordem e o vandalismo que colocava em perigo a segurança dos então grandes proprietários de terra e de escravos.

A referência mais antiga sobre escravos em Quixeramobim vem do testamento de Antônio Dias Ferreira196. Esse documento, de 1753, encontra-se transcrito na Revista do Instituto do Ceará por Ismael Pordeus, e será tomado como referência em vários momentos desse texto. O primeiro elemento a se reter dele é o arrolamento que faz o inventariante de seus escravos, atribuindo nomes acompanhados do epíteto angola. Os escravos não estavam concentrados apenas na fazenda Santo Antônio do Boqueirão, pois o Português adquiriu muitas propriedades, chegando a possuir várias léguas de terra “a começar do lugar Espírito Santo, além de Boa Viagem, até a barra do Sitiá, onde detinha grande fazenda de cavalar e muar com feitorias de escravo de Angola”197.

Outro aspecto importante do documento, que será retomado, é a menção à imagem de Nossa Senhora do Rosário, localizando o momento e os agentes que aí estiveram relacionados com a introdução ao culto dessa virgem.

‘Declaro mais que possuo no bonaboyu, o sítio chamado Santa Crus, ocoal he meu e dotente Vicente Alz´ da Fonca. que custou tresentos e trinta e dois mil rs´como consta da escritura, easim mais hua data, das ilhargas pelo Riacho chamado Cachoeira, adonde tenho gado ebestas asituada da minha marca ehú escravo do gentio de angola por nome Antônio que tera dezoito annos poucos maisoumenos. (...) declaro mais hú escravo pornome Chrisptovo do gentio deangola que tera deidade pouco mais oumenos trinta annos easim mais hú deangola pornome Mel. que tera deidade de pouco mais oumenos sincoenta annos, eassim mais outro de Angola pornome Joao Barozo198, que tera deidade sincoenta e oito pouco mais oumenos (...)199. (Grifos meus).’

À semelhança de Antônio Dias Ferreira muitos outros povoadores, vindos de Pernambuco, adquiriram terras para instalar suas fazendas, em Quixeramobim. A grande maioria delas desenvolvia o criatório de gado vacum e cavalar com o auxílio de escravos. Em 1766, conforme informação obtida de J. Brígido (1890), a freguesia200 de Quixeramobim possuía cento e dezessete fazendas, dado que confirmei parcialmente analisando os registros de batismo e casamento de escravos. A partir dessas duas fontes, levantei cerca de cinqüenta fazendas com pelo menos dois escravos cada uma. É escusado elencar todas elas, visto que o mais importante é salientar que boa parte dos escravos se encontrava longe do núcleo urbano, ou da vila. Conquanto para o período colonial, as fronteiras entre o urbano e o rural estivessem investidas de uma névoa de imprecisão, é possível conjeturar que grande parte da escravaria quixeramobiense estava dispersa nos núcleos rurais, caracterizados pelas fazendas. Os plantéis, certamente, se caracterizam pelo pequeno número de escravos, conjugando o criatório com pequenas lavouras. Sem pretender fazer um levantamento dos mais de duzentos proprietários que figuram nos registros de casamento e batizado, apresento os principais senhores por número de cativos.

Quadro 07: Número de escravos por proprietário
Proprietário Quantidade de Escravos
Antônio Ferreira Sanders 3
Antônio José Mauricio 9
Capitam Manoel Álvares Ferreira 10
Custódio Ramos Mendes 11
Dona Maria do Ô 11
José Lobo 5
Leonor de Barros 7
Tenente General Vicente Alvares 4
Total 49

Fonte: Livro de Registro de Batizados, 1755-1799, Cúria Diocesana de Quixadá

A média de cativos por proprietário nesse caso é de pouco mais de sete. Contudo esse não é o quadro geral do restante dos proprietários, que não chegam a possuir mais de dois escravos. O reduzido número por proprietário não é indicativo de inexistência desse sujeito em Quixeramobim. Pelo contrário, encontrava-se aí, nos idos de 1765 a 1810, mais de mil e cem cativos Africanos, Crioulos, Mulatos, Cabras e outros. Os dados apresentados, com base nos registros de casamento e assentos de batismo não podem ser indicativos da população escrava, pois como o recorte temporal é relativamente longo, uma pessoa que aparece recebendo o sacramento do batismo em determinado ano, após vinte anos ela pode reaparecer casando. Ela pode ainda ter mudado sua condição social escrava para a de forra. Tudo isso para dizer que as informações apresentadas revelam a participação dos escravos em Quixeramobim e de certo modo demonstram como eles se movimentavam no mundo pautado por relações escravistas.

A contagem foi feita individualmente, significa dizer que foram listados todos os indivíduos de um registro. Por exemplo, dos registros de batismo selecionei todos que foram batizados, todas as mães, todos os pais e todos os padrinhos. O procedimento de seleção pareceu mais difícil com os pais uma vez que eles se repetiam no decorrer dos anos. Não foi verificada nenhuma repetição em relação aos padrinhos. Para evitar que um indivíduo fosse considerado mais de uma vez, comparei todos os atributos constantes no documento, atentando para as informações que diferenciavam os vários Luís, as várias Maria e outros sujeitos que reapareciam ao longo dos anos. Então, o nome do proprietário, o estado civil e a procedência foram levados em conta para fazer a seleção. Já as informações dos registros de casamento, considerei apenas os nubentes uma vez que em pouco deles figuram os pais e dificilmente as testemunhas foram escolhidas no grupo de escravos, como verifiquei no caso dos padrinhos de batismo, com vinte e nove madrinhas e trinta e três padrinhos. Ademais, considerei que a pessoa que portava uma procedência Angola, Mina ou outra, seria africana, aqui pouco importando se ela foi desembarcada em Pernambuco ou Maranhão ou se foi importada da África diretamente para o Ceará.

Quadro 08: Distribuição dos escravos por sexo

Escravos
Registro de Batismo
1755-1799
Registro de Casamento
1766-180

Total

%
Homem Mulher Homem Mulher
Africano 16 50 55 37 158 13,76
Não-Africano 283 581 59 67 990 86,24
Total 299 631 114 104 1148 100

Fonte: Livro de Registro de Casamento, 1766-1810 e de Batismo, 1755-1799. Cúria de Quixadá.

A proporcionalidade do cativo de procedência africana era de um para seis não-Africanos. Então, 86,24% eram indivíduos nascidos em Quixeramobim ou que já teriam nascido no Nordeste ou em outra região do Brasil. 13,76% era proveniente da África e foi na sua grande maioria embarcado nos portos de Angola, daí vir indicada, no documento de casamento ou de batismo, a procedência gentio ou nação de Angola. Nota-se ainda a superioridade do número de mulheres em comparação à parcela de homens. Esse dado pode ser indicativo de escravaria doméstica, destinada aos serviços de cozinheira, lavadeira e arrumadeira, profissões que vão compor o leque de trabalhos exercidos pelas escravas.

Dados talvez mais seguros sobre a população escrava de Quixeramobim foram registrados justamente nos Censos realizados no século XIX. Sem estabelecer comparação com os demais grupos da população, demonstro sem maiores caracterizações um panorama de sua população cativa.

Quadro 09: Demonstrativo da população escrava de Quixeramobim, século XIX
Ano Quantidade de escravos
1804 1270
1813 1306
1860 1661
1872 1237
1873 2187
1883 201 488
Total 8149

Fonte : Revista do Instituto do Ceará202.

A sempre crescente população escrava sofre um declínio considerável em 1883, em Quixeramobim. Esse dado foi extraído dos relatórios das juntas de classificação, responsáveis pela aplicação da quota do fundo de emancipação para alforriar os escravos. Além das informações sobre profissão e idade, a comissão depois de uma série de redução no total de escravos de 1873 chegou ao número quatrocentos e oitenta e oito escravos, quando pelo fundo apenas sessenta e sete pessoas tinham sido libertadas. Por essa razão, cautela em se considerar esse dado, pois seu efeito de propaganda abolicionista é patente. Em 1880 foram lançadas em Livros de Notas quatro escrituras de compra e venda de escravos na vila de Campo Maior (verificar anexo CD). Como o comércio de escravo poderia estar ativo se o movimento abolicionista se inflamava a passos largos na Província? Compra e venda de escravos, provavelmente crianças, dada à ocorrência de diminutivos como mulatinha, cabrinha, nove anos após a Lei do Ventre Livre e quatro antes da abolição da escravidão no Ceará, em 1884.

Fontes que subsidiem um estudo comparativo sobre a escravidão em Quixeramobim são escassas. Ainda que não seja o propósito desse texto apresentar uma análise refinada, visando representar essa realidade estatisticamente, ensejei, com esse enquadramento, representar a população escrava, mesmo desconfiando das séries estatísticas que por anos a fio são repetidas pelos historiadores sem questionar a forma como foram organizadas. Contudo, essa é outra história. E para sair por um momento da rigidez do número, recorro à literatura para compreender a vida escrava nas fazendas de Quixeramobim.

Notes
191.

M. Bandeira. Poesia completa e prosa, p, 503-504.

192.

Trata-se da casa paróquia hoje.

193.

É costume se celebrar a missa do vaqueiro durante o período da novena do padroeiro da Cidade Santo Antônio, comemorado no mês de junho. Nessa ocasião, um padre com vestes de vaqueiro e aboio conclama os vaqueiros que vieram das fazendas para celebrar o Santo. É nesse sentido que falo de ritualização.

194.

M. Simão, Quixeramobim, recompondo a história, Fortaleza, 1996, p. 31.

195.

As sesmarias eram porções de terra concedidas pelos reis de Portugal para quem se dispusesse a cultivá-las.

196.

O registro manuscrito encontra-se no Cartório de 2º Ofício de Quixeramobim em boas condições de leitura. Fotografei-o quando pesquisava outros documentos, mas preferi não transcrevê-lo uma vez que já se encontra transcrito com cópia na Revista do Instituto do Ceara..

197.

J. Brígido apud M. Simão, Quixeramobim, recompondo a história, Fortaleza, 1996, p. 37.

198.

Marum Simão, um historiador de Quixeramobim afirma que “a colônia de Negros em Quixeramobim, cujos ancestrais são originários do continente africano, é representada pelas famílias Barroso, Matias, Idalino e França que têm prestado relevante serviço à comunidade local”. In: Quixeramobim recompondo a história. Fortaleza: 1996.

199.

DOCUMENTÁRIO. In: Revista do Instituto do Ceará. Fortaleza, t. LXXVI, 1962.

200.

Era a menor área de influência eclesiástica do período colonial.

201.

Esse número foi quadro demonstrativo da população escrava no município de Quixeramobim e Boa Viagem e se refere à população escrava matriculada até 1873. O procedimento de classificação dos escravos era realizado pela junta de classificação e antecedia a libertação pela quota do fundo de emancipação destinada aos municípios. Para maiores informações conferir anexo cinco.

202.

E. A. Funes, Negros no Ceará, In Uma nova história do Ceará, Fortaleza, Edições Demócrito Rocha, 2000, p. 112-114.