6.3 Escravidão em Quixeramobim pela pena de Oliveira Paiva

Os documentos consultados testemunham a possibilidade de dispersão dos escravos em pequeno número nas fazendas, mas foi a literatura que mais se aproximou de uma descrição dessa realidade. Refiro-me, em especial, ao romance Dona Guidinha do Poço, de Oliveira Paiva, ambientado no final do século XIX, nos sertões de Quixeramobim. O romance constrói a imagem não somente da vila, supostamente Campo Maior, hoje Quixeramobim e sim de vários lugares por onde os personagens transitavam. O lugar central é Poço da Moita, fazenda que Margarida ou Guida teria herdado de seu pai, o Português Venceslau de Oliveira. Logo após a morte do pai, a personagem casa-se com o major Quinquim, um pernambucano que viera ao Ceará comprar cavalos, homem de poucas riquezas. Um terceiro personagem da trama que se desenrola no Poço da Moita é o sobrinho do major, Secundino, por quem Guida nutre afeição, motivo pelo qual desfecha ódio pelo esposo, levando-o à morte. São esses os personagens centrais do romance. É no diálogo deles com os personagens Negros, Luisa, Maria Velha, Corumbá, que intento compreender como eram são narrados e percebidos, ou seja, que imaginário produziam em relação a esses sujeitos Negros. Por outro lado esse romance fornece um retrato da escravidão em Quixeramobim.

O escravo aparece retratado como uma coisa, figurando como bem listado no inventário. Oliveira Paiva constrói essa primeira impressão quando narra, referindo-se a Guida: “Seu pai, o segundo Vesceslau, capitão mor da vila, possuía larga fortuna em gados, terras, ouro, escravos... fora um rico e um mandão”203. Era muito comum esse tipo de tratamento, pois o Negro escravizado era considerado uma “peça”, que podia ser trocada, vendida, hipotecada e dependendo da idade podia custar muito para quem o quisesse adquirir. Ter escravo estava associado ainda a outros tipos de posses como terra e gado. Como fiz referência alhures, a mão-de-obra escrava foi bastante utilizada em Quixeramobim, especialmente na lide com o pastoreio, o que não significa dizer que aí não tenha se desenvolvido a lavoura. É nessa atividade que também se empregavam os escravos de Guida. O romance faz menção tanto a escravos lidando com o gado, no emprego da agricultura e nos serviços domésticos.

Os cativos acompanhavam cotidianamente seus patrões. Nada podia ser feito sem participação deles, não importando as condições em que as tarefas eram realizadas. Além dos maus tratos, por desobediência ou outro motivo qualquer, o Negro labutava muitas vezes como um “animal de carga”, vítima que era da intrepidez dos seus proprietários. “Era domingo aquele dia 26. Quinquim, ao quebrar das barras montara a cavalo para ir à vila, a ouvir sua missa. Levava um crioulo com umas cargas de malas, para fazer feira”204. O autor não faz referência de que modo esse escravo levava essas malas, mas pela descrição se faz supor que não ia montado como seu proprietário. Em outro momento Oliveira Paiva demonstra o tratamento ríspido da Guida para com a escrava Luisa que diz ser de sua estima. “Uma crioula adiantava-se agora do meio das vacas, e apresentava à senhora uma cuia de leite espumoso. – Eu quero é capucho, Luisa. E gritou: - compadre despeje esta cuia no pote, e me mande um capucho”205.

Luisa era vítima constante dos arroubos de sua patroa, pois ela vivia na casa grande para servir a Guida. No seu dia-a-dia é descrita portando uma “carapina bem entrunfada e vistosas pulseiras” e de muito “gingado”206. Provavelmente a fazendeira fosse dona de muitos escravos e utilizasse da violência para levá-los à obediência. Um diálogo de Secundino com o escravo Anselmo, deixa entrever os sentimentos que ela inspirava nos cativos. Pergunta Secundino “- A senhora era boa para os escravos?” Diz Anselmo “– Inhor, sim, mas às vezes usava de barbaridade, às vezes era muito rispe. Gostava muito de guardar rixa. Quando tinha raiva era capais de mata”.Guida tanto perseguia como protegia conforme intervenção do autor, pois certa ocasião ela “mandou cortar a facão os cachos de um cabra de Lavras da Mangabeira, mais aventureiro que retirante, que bulira com uma escravinha de estimação”207.

Parece que havia na casa-grande uma divisão para o trabalho escravo, pois Guida era proprietária de cativos que se ocupavam com o gado, com a lavoura e com a fábrica farinha. Ademais, ainda possuía os mais próximos, os domésticos para assim dizer, como Luisa, encarregada do serviço da casa, Corumbá, a lavadeira de roupa e Maria Velha, a quituteira. Todavia, não era afeita a possuir damas de honra, prática muito comum nas casas ricas. Quanto a esse tema O. Paiva faz sua interpretação, descrevendo que

‘no Ceará, não têm propriamente a mucama, (...) e com o serviços já das afilhadas, já das escravas mais ou menos prediletas, e com a própria singeleza extrema dos costumes, vão-se se arranjando bem. Margarida era, pois, uma criatura como ela mesma. Em casa, de branca ela. O mais, preto, inferior, escravo, até o próprio marido, branco é verdade, mas subalterno pela sua índole e por não ter trazido ao monte um vintém de seu208. ’

Essa descrição se não revela as tensões entre Brancos e Negros, dá a idéia de uma clivagem assentada na diferença racial e na posição econômica. Os Brancos na fala dos protagonistas são considerados superiores, os “pretos” percebidos com inferiores. Por outro lado, nota-se que o critério econômico também define a subalternidade da posição de um sujeito, “pois a pobreza faz Preto ao Branco”209. Em outras palavras, poder-se-ia dizer que o status social, nesse contexto, era definido pelo aspecto econômico, mas especialmente pela cor, critério utilizado para diferenciar e tornar desiguais os sujeitos.

Há uma constante tensão entre escravos e os vaqueiros de Guida, em especial entre o Silveira que veio em arribação para Cajazeiras e o velho escravo seu Antônio pai de Néu. Tal tensão era uma demonstração de descontentamento pela predileção que a matrona passou a nutrir pelo retirante que vinha de Goianinha, terra de seu mancebo Secundino. Isso fica bem explícito quando a matrona questiona seu Antônio acerca de um bicho morto. “Eu, cumade? Primita qui lhe diga qui nom meto a mão na seara alheia. (...)”. Diz Guida “- A que vem isso?”. No que seu Antônio responde “- A que vem isso? É que seu Silveira quase pegou co Néu mó da bichera do puldrinho (...)”210. Guida retruca dizendo que certamente o Néu teria feito algum desaforo e duvida do escravo que serve a família desde o seu pai Venceslau. “Eu ainda servi cum o pai de Vossa Mercê. Gente de Antônio Moreira da Silva nunca faltou com respeito nem a nego veio cativo”211.

Antônio Moreira ou seu Antônio supostamente era um escravo mestiço e seu pai já tinha servido para o avô de Guida. No diálogo acima se vê como se produziam as tensões, quase sempre advindas de ciúmes pelo fato da matrona demonstrar afeto ou estima para com alguns dos seus serviçais. Outro aspecto que se pode observar é o sentimento de respeito que o velho Antônio tem, mesmo por “nego veio cativo”. Por isso não admite ser desrespeitado ainda que seja pela sua patroa. “- Vossa Mercê me perdoe, mas eu sou mais veio que Vossa Mercê, lhe carreguei nos braços (...). O seu Silveira é um mau achado que Vancê fez, licença pra li dize. No dia in que ele amanhece ca veia de nego d´Angola atravessada na garganta é capaz de precipitá um cristão...”212.

Nesse trecho percebe-se ainda seu Antônio chamar para si uma identidade angola; isso precede qualquer outra auto-representação, especialmente na circunstância de conflito com sua patroa. Essa identificação tem precedência ainda sobre sua suposta identidade religiosa. Certamente ele era cristão como o eram todos os escravos pela imposição do sistema escravista. Ela desaparece completamente nas situações de conflitos e por essa razão o personagem não teria problema de atirar-se com violência sobre outro cristão.

Por outro lado, esse diálogo traz à tona os desafetos e tensões surgidos no mundo do trabalho escravo. Ainda revela a imagem que era construída em torno do “nego da Angola”. Encontrei uma única referência na obra de O. Paiva, mas ela é muito significativa. Essa denominação aparece com certa freqüência nos registros que passarei a analisar adiante e era utilizada para diferenciar o cativo Africano nascido no Brasil, para o qual se atribuía as denominações Crioulo, Pardo e Mulato. O autor desenha a paisagem de Quixeramobim, situando os personagens, os conflitos e as hierarquias. Embora esteja escrevendo no final do século XIX, mais parece estar falando de um século antes, pois é essa configuração que pressinto nos documentos, objeto de minha análise sobre a escravidão.

Notes
203.

O. Paiva, Dona Guidinha do Poço, Fortaleza: ABC, 2005, p. 22.

204.

O. Paiva, Dona Guidinha do Poço, Fortaleza: ABC, 2005, p. 22.

205.

Ibid, p. 23.

206.

Ibid, p. 38 e 87.

207.

Ibid, p. 38.

208.

O. Paiva, op. cit., p. 142.

209.

Ibid, p. 63.

210.

Ibid, p. 83.

211.

Ibid, p. 84.

212.

O. Paiva, op. cit., p. 84.