6.4.1 As estratégias e experiências de liberdade

A alforria era praticamente o único meio legal para se obter a liberdade. Consoante C. Moura (2004) era “o ato pelo qual o escravo conseguia sua liberdade, passando à condição de liberto”247. Manumitir se constituía, portanto, em atitude voluntaria do proprietário, podendo revogar sua vontade caso o alforriado viesse a cometer delitos que envolvesse difamação ou violência contra seu ex-senhor. Em última instância, ela parecia mais uma promessa, podendo ser concretizada ou não, a depender da gratidão do requerente à carta liberdade.

Como não existia uma lei que obrigasse o proprietário a conceder a alforria, ela poderia ser negada mesmo se o cativo dispusesse dos meios para adquiri-la. Diz R. Vainfas (2001) que “mesmo tendo o escravo a quantia equivalente ao seu valor, o senhor não estava obrigado a concedê-la. Herança do direito romano presente no direito consuetudinário português, o ato de alforriar era considerado uma concessão senhorial”248. Nesse sentido, não havia dispositivo jurídico que coagisse o senhor a outorgá-la, pois consoante M. Carneiro da Cunha (1987) “o costume de se alforriarem escravos que apresentassem seu valor era largamente praticado, mas à revelia do Estado; não, porém, que o Estado se opusesse, mas porque não lhe era permitido sancioná-la em lei, pela oposição daqueles mesmos que praticavam essa regra costumeira”249. Ainda para M. Carneiro da Cunha (1987) a existência desse direito só começa com a lei do Ventre Livre de 1871, “significativamente, essa Lei, (...) marcava o desmantelamento oficial do escravismo”250.

Como já foi mencionado nenhum direito obrigava o senhor a conceder a alforria e nem mesmo a respeitar uma palavra empenhada. Nesse tocante, merece destaque o caso em que a liberdade foi paga quando o escravo ainda era criança, no ano de 1764, e somente confirmada em cartório, vinte e um anos depois, em 1785, momento em que a declarante reconhece sua negligência e faz justiça ao pedido do requerente, passando o cativo a gozá-la definitivamente.

Entre os mais bens que pussuo de manssa, e pacifica posse sem contradissão de pessoa alguma hé bem assim hum escravo por nome Luis molato filho de minha escrava Antonia o qual logo de pequeno seo pai Antônio da Silva Borges me deu a quantia de trinta mil reis seo presso justo, e licito para sua liberdade que eu sem constrangimento de pessoa alguma mais sim de minha livre vontade recebi para o effeito da dita Liberdade o coal dinheiro Recebi na villa digo para no anno de secenta, e quatro, e como por descuido e nigrigencia minha athé o prezente o não avia feito agora para disencargo de minha conciencia o forro, e liberto de hoje para todo sempre como se forro nascece do ventre de sua Mai (...).

“Para desencargo de consciência” e somente por essa razão o senhor levou a efeito a alforria. Se o cativo dispusesse de meios legais e se tivesse a quem recorrer, decerto não teria passado tanto tempo na condição de escravo, sendo ele liberto. Provavelmente, o beneficiário da alforria não permaneceu voluntariamente na condição de escravo. Este fato parece ter sido omitido dele, cabendo quando quisesse ao proprietário, efetivar o requerimento pago.

A despeito da ausência de direito que protegesse o escravo de situações como essa, havia três formas de um ex-escravo atestar seu estatuto de forro: a carta de alforria ou de liberdade, documento assinado pelo senhor, ou por outro a seu pedido, e registrado em cartório onde se lançava em livros de notas; os testamentos onde o proprietário lançava seus últimos desejos, inclusive o de manumitir alguns de seus escravos e o registro de batismo, atestando a alforria na pia batismal.

Sobre as quarenta e duas cartas de alforria, referentes aos anos de 1783 a 1785, de 1787 a 1789, de 1801 a 1803 e de 1826 a 1827, reconhecidas em Cartório de Quixeramobim, quero me debruçar agora, não tanto para tratar da procedência dos cativos. Como não ocorrem designações senão aquelas até então apresentadas, penso ser desnecessário analisar os 19% de casos indicando a procedência. O que se pode juntar ao que foi já dito é que também se constatou uma fluidez de identificações do alforriado, Angola e Guiné, juntamente com o emprego das expressões gentio e nação, antecedendo a referência a um porto ou um lugar na África. A título de ilustração apresento dois trechos de cartas de alforria, a primeira outorgada a Anna filha de Maria do gentio de Angola em 1788 e a segunda a Domingos em 1803.

Carta de alforria da mulata Anna, requerendoseme que a lansace em nottas, e lhe tomasse a propria, e sendo por mim reconhecida digo, e sendo por mim ouvido o dito requerimento aceitei a dita carta que ja se axava por mim reconhecida, e aqui a Lancei, e o seo teor de verbo adverbum hé o seguinte // Digo eu abaixo asignado que entre os mais bens que possuo de que estou de mansa, e pacifica posse hé bem assim hũa escrava xamada Anna mulata filha da minha escrava Maria[?] do Gentio de Angolla a qual mulata Anna forro e Liberto, por presso, e quantia de cento, e sinquenta mil reis que receby ao fazer desta em dinheiro de contado moeda corrente do Nosso Reino de Portugal, (...).

No primeiro exemplo, a expressão gentio de Angola é destinada a sua mãe. No trecho da carta a seguir é feita alusão tanto a cor como a procedência e não se trata mais de um gentio e sim um Angola de nação.

Digo eu abaixo asinado que entre os mais bens que possuo de manssa e pacifica posse ê bem asim hum Escravo de nome Domingos de nação Angola que o ouve por compra Pedro Esteves da Silva cujo escravo o forro como de facto forrado tenho de hoje para sempre por presso e quantia de cento e vinte mil reis que recebi ao passar desta ditto dinheiro de contado pella qual e com esta lhe dou que lerão de paga e poderá de hoje em diante gozar de sua liberdade como ce nascera liberto do ventre de sua mai (...).

Conforme Soares (2000), o atributo gentio era referido a povos que “são alvo da catequese missionária”. Essa categoria teria caído em desuso no século XVIII, sendo logo substituída pela de nação. Observo que ela não é abandonada, pois no período de 1783 a 1789, o vocábulo gentio aparece em pelo menos em cinco cartas de liberdade. Em algumas situações figuram o termo nação, acompanhando a classificação fenotípica cabra. Contudo, em geral, nação e gentio vêm acompanhados de nomes de lugares, indicando de onde o escravo supostamente procedia. Assim, esse procedimento revela “dois sistemas de classificação: aquele que nomeia os povos gentios a serem catequizados e aquele que nomeia as diferentes nações com as quais os Portugueses se relacionam no processo de expansão colonial”251. Dando mais complexidade à discussão, a autora ainda acrescenta que essa categoria nação não menos genérica do que gentio atendia melhor ao tráfico que então se diversificava e se expandia.

‘Ao lado das novas relações, construídas nos percursos das caravanas pela África, na travessia do Atlântico, na chegada na América Portuguesa e na ocupação de um dado lugar no sistema produtivo colonial, os colonizadores atribuíram aos Africanos, uma identidade definida pelo porto de embarque e pelas regiões nas quais haviam sido adquiridos. Ao serem nomeados pelo colonizador, as diferentes etnias foram identificadas por caracteres gerais e mais evidentes, comuns a diversos grupos embarcados no mesmo porto252. (Grifos meus).’

A categoria grupo de procedência me parece adequada para o estudo em questão conquanto para isso tenha que reforçar o argumento defendido por O. Riedel (1987) e P. A Oliveira Silva (1979) de que o Ceará jamais importou ou comerciou diretamente com portos africanos e ao mesmo tempo me distanciar do corolário desse pressuposto, também assumido por eles, de que “nessa terra os híbridos dentre os escravos do Ceará, raríssimos Africanos, em geral de terceira e início da quarta década do século XIX, raros crioulos, mas numerosíssimos (sic) mestiços”253.

A idéia aqui não é desconsiderar a intensa mestiçagem de que falam os autores, pelo contrário, é antes pô-la em evidência sem esquecer os variegados arranjos que possibilitaram a existência dos sujeitos. Com o fim da escravidão, a procedência, certamente foi cedendo lugar para uma categoria genérica como negro, em referência à pertença a um coletivo. Daí se depreende que com a emancipação, a expressão negro vai paulatinamente sendo introduzida em referência ao fenótipo, mas provavelmente como categoria de diferenciação do Negroem relação aos demais componentes da sociedade nacional, Brancos, Índios, Pardos.

Quanto à cor o padrão se repete para preto, crioulo, cabra e mulato. Contrariamente aos registros de casamento, nas cartas de alforria o termo mulato era mais incidente. A explicação poderia ser a pouca familiaridade do pároco com essa identificação embora fosse de domínio das outras esferas institucionais como do Cartório. Também sem voltar à problemática da cor, vale registrar que das 42 manumissões concedidas, os Mulatos perfaziam 52,38%; os Pretos, incluindo os negro-Pretos 19,05%; os Cabras 16,67% e os Preto-Crioulos 11,90%.

Em linhas gerais, o que se destaca das cartas de manumissão é a iniciativa dos cativos, eles próprios, em registrar em cartório sua carta de liberdade ora por iniciativa própria, ou a mando do proprietário. Ademais, salta aos olhos, a ausência de informação quanto à idade em mais de 50% das manumissões. Ainda que o escravo de meia idade (25-35) fosse o mais valorizado, verifica-se que foi nesse grupo onde ocorreu maior número de requerimentos. As alforrias por gênero e fase de vida ficam assim distribuídas.

Quadro 15: Alforrias por gênero e fase de vida
Homem Mulher
Período 1783
1785
1787
1789
1802
1803
1826
1827
Total 1783
1785
1787
1789
1802
1803
1826
1827
Total
Criança 1 1     2   2 1   3
Adulto 1   1 3 5   1 1 2 4
Idoso   1     1 1   1 2 4
S.I 4 3 3 2 12 3 3 2 3 11
Total 6 5 4 5 20 4 6 5 7 22

Fonte: Livros de Notas, compreendendo os anos 1783-1789, 1802-1803, 1826-1827. Cartório de 2º. Ofício Queiroz Rocha. Quixeramobim, Ceará.

Como no jogo de classificação a pertença a um grupo também era contemplada, considero relevante tratar desse aspecto, aprofundando o quarto nível de diferenciação. A existência de relações exógenas, envolvendo Índios, escravos ou forros permitem perceber a vinculação ao grupo de pertença, pois as instituições civis e religiosas costumavam enquadrá-los, respeitando essas diferenciações. Revelam, outrossim, a possibilidade de parentesco entre Negros, Índios e Brancos, pois as uniões matrimoniais entre esses grupos (pelo menos dezvínculos foram levantados nos registros de casamento entre Índio e escravos) revelam a flexibilidade do cativo para ampliar a rede de parentesco.
Por outro lado, demonstra em que medida insistia-se nas diferenciações pela pertença ao grupo (Negro e Índio). Em alguns casos as alforrias eram justificadas pelo grau de parentesco que envolvia proprietário e cativo254, e ainda situações em que uma preta requeria liberdade para sua neta, filha de uma índia tapuia. Tanto no primeiro como no segundo exemplos, consideram-se as possibilidades de vínculos parentais e a solidariedade investida para se ter um membro da família alforriado. Recupero dois trechos de cartas de liberdade de 1785 e 1827 para visualizar a primeira situação.

Dizemos nos Roza Maria Barboza, e minha filha roza Maria Barboza, que entre os mais bens que pussuimos de manssa, e pacifica posse he bem assim huma escrava mulatinha por nome Felizarda, filha de huma escrava nossa de nassão cabra por nome Florencia, a qual houve por meassão de meu defunto marido Joze Nunes de Abreu / isto he / hum tanto na dita cabra, e o mais de seo valor tocou a minha filha dita asima por Ligitima de seu Pay do qual nascera a mulatinha Felizarda asima expresada, a qual mulatinha a forramos, como com, efeito forrado temos de hoje para todo sempre pello muito amor que lhe temos, e ser criada em nossos brassos como tão bem por se dizer ser minha neta, e sobrinha da dita minha filha, motivos que são bastantes para a libertarmos (...).

Digo eu Francisco Ferreira Sandis abaixo asignado que entre os bens que possuo de que estou de mança e pacifica posse, he bem assim huma molata de nome Anna com idade de dizaceis annos mais ou menos a qual me cobe em legitima de minha mai Jozefa Maria de Souza, cuja molata forro muito de minha vontade e gratuitamente por ser minha filha e de hoje em diante poderá gozar de sua liberdade como se forra nacesse, e contra esta liberdade jamais me oporei, e menos os meus erdeiros (...).

Já a carta de alforria requerida pela avó preta Isabel no ano de 1787 para sua neta Angélica de apenas oito dias de nascida revela os termos dos cruzamentos raciais. A neta para quem solicitava a liberdade era uma mulatinha filha de uma escrava chamada Merenciana Tapuia, parda. O trecho da carta de liberdade da Angélica, solicitada e aceita em 1787 põe em evidência os arranjos inter-raciais no século XVIII.

Carta de alforria da mulatinha Angelica Lanssada em notas a requerimento davó a preta Izabel
(...)
Digo eu Donna viuva Caetana Filicia da Paz abaixo asinada que entre os mais bens que pusuo de que estou de mansa, e pacifica posse hé bem asim huma mulatinha de idade de oito dias xamada Angelica
filha de minha escrava Merenciana Tapuia[?] parda a qual molatinha forro como de facto forrado a tenho de hoje para todo o sempre por presso e quantia de vinte mil reis em moeda corrente do nosso Reino, e Senhorio de Portugal a qual Recebi da mão de Sua Main no que da baptisterio, a qual molatinha poderá gozar de sua liberdade e izençoens as quais gozão os forros, e hirse para onde muito quizer como se do ventre forra nascesse (...).

O parentesco nessas situações parecia ser o vetor da alforria. No primeiro caso é a consangüinidade que faz o proprietário/pai conceder a alforria à sua própria filha e no segundo é a mãe que compra a liberdade da filha. Feito realizado com a intervenção da avó que apresenta o requerimento em cartório. Assim, o leque de experiências dos cativos para conquistar a liberdade vai se ampliando, revelando as circunstâncias do reconhecimento em cartório bem como as condições impostas e negociadas para torná-la realidade. No tocante ao registro em Cartório, em Quixeramobim, era o escravo, beneficiário da alforria, que muitas vezes se apresentava perante às autoridades, ocasião na qual ele passava o requerimento manuscrito e assinado pelo proprietário. Se ocorresse ainda de ser um forro a se apresentar, visando beneficiar um parente escravo, especialmente criança, ele assumia, outrossim, o papel de agente pagador. Em outras situações era o proprietário, ou outra pessoa de sua confiança, que solicitava pessoalmente o reconhecimento em cartório. Enfim, por trás de todo pedido de registro estava sempre a vontade do proprietário e os termos em que essa deveria ser respeitada.
É importante dizer que nos requerimentos enviados aos tabeliães, à época Simão Lopes da Paz e Jose Joaquim da Silva Lobo, constavam, ademais, os motivos objetivos ou subjetivos da liberdade, o seu valor ou a sua gratuidade. Além desses aspectos, outras características eram mencionadas como a procedência, a cor e a idade. Quando se tratava de crianças, às vezes a descrição remontava até a geração da avó, como nos exemplos já analisados. Um trecho da carta de alforria concedida ao escravo Manoel em 1788 elucida melhor o que aqui estou apresentando.

Quixeramobim termo da villa de Aquiras Comarca do Siará grande no meu escriptorio appareseu prezente Joze Antônio Mauricio como Testamenteiro da Tersa do defunto Pedro da Cunha Lima morador nesta dita Povoasão pessoa que reconhesso pella propria de que se trata de que dou fe, e maior de vinte e sinco annos, e por elle me foi dito em prezença das testemunhas abaixo nomeadas e asignadas, que elle entre os mais bens que esta de posse como Testamenteiro da Tersa do dito defunto hera bem assim hũ escravo preto do gentio de Guiné chamado Manoel de idade de pouco mais ou menos de setenta annos o qual, por haver dado o seu valor por que fora avaliado a quantia de dezaceis mil reis em prassa publica (...)255.

Muitas poderiam ser as condições impostas e/ou negociadas para se conceder a liberdade. De um lado estava o escravo que outro desejo não teria senão o de ser livre e do outro, o proprietário com poder absoluto para conceder ou negar esse sonho ao cativo. Daí que com base no direito consuetudinário, a alforria poderia ser absoluta ou dependente de condições256, esta última acontecendo quase sempre quando não se exigia pagamento à concessão. A promessa de liberdade sob condições determinava que o alforriado continuaria servindo ao seu senhor, ou a um parente próximo, até sua morte. “Digo eu abaixo asinado João Guerreiro de Brito que entre os mais bens que possuo o estaa de mansa e pacifica posse ê asim huma escrava cabra de nome Maria Jozé cuja escrava me acompanhará enquanto eu vivo for e por minha morte fica forra em sua liberdade como se nascesse”257.

Quadro 16: Condição das alforrias
Período Incondicionais Condicionais a serviço Número
de compras
Valores médios
(Réis)
1783-1785 4 1 5 73$000
1787-1789 2   9 77$000
1802-1803 4 1 4 106$000
1826-1827 4 1 7 134$000
Total 14 3 25 -

Fonte: Livros de Notas, compreendendo os anos 1783-1789, 1802-1803, 1826-1827. Cartório de 2º. Ofício Queiroz Rocha. Quixeramobim, Ceará.

A gratuidade sob condição “constituía-se muito mais em estratégia de controle do que em demonstração de generosidade por parte dos senhores”258, generosidade que era manifesta nas palavras de motivações que levaram o proprietário a manumitir como “por que dita mulata me foi sempre muito fiel e sempre me acompanhou fielmente” e “pello muito amor que lhe tenho”. S. Challoub (1990) lembra que “As restrições dessas cartas expõem as ambigüidades da alforria condicional na sociedade escravista. Servem mais à dissimulação dos interesses senhoriais e à manutenção de suas prerrogativas de mando e posse do que efetivamente a vontade de cessão da liberdade”259. Portanto, continuar prestando serviço e obedecer eram as imposições mais recorrentes quando se concedia gratuitamente a alforria. Por outro lado, não podendo argumentar em contrário e vendo a possibilidade de poder viver livremente, o alforriado “aceitava” toda sorte de manipulação do senhor para mantê-lo submisso. Se o contrário acontecesse, isto é, se lhe fosse negado o direito de alforria, ele se rebelava, fugindo.
Como o móvel das alforrias gratuitas não era, absolutamente, a generosidade, é importante revelar as razões que levavam os senhores a manumitir. A decrepitude marcada pela incapacidade do escravo continuar prestando serviços era um dos motivos mais alegados nas concessões a pessoas senis. A liberdade outorgada a escravos velhos era estimulada pela possibilidade que se abria para adquirir escravo jovem no vigor de suas forças. Eis aí a razão porque muitos deles eram avaliados em alto valor. Embora não tenha sido verificada nenhuma situação dessas em Quixeramobim, isso não significa inexistência dessa prática no Nordeste e no Brasil.
A liberdade sofria restrições se parte do pagamento da concessão fosse tomada em terça pelo senhor. Essa situação foi verificada em Quixeramobim quando da falência do proprietário, por viuvez, não restando outra saída senão abdicar de seu patrimônio para sobreviver, incluindo aí a propriedade dos escravos. Foi o caso do requerimento de D. Maria Fonseca que alforriou o mulato João Pedro por 80$000, tomando, “na minha terça os trinta restantes e lhe perdeo com a obrigação porem de me acompanhar, e servir o dito escravo como me tem servido athé agora athé dia de hoje por deante poderá gozar da sua Liberdade”260. (Vale a pena conferir as cartas de alforria no anexo cinco).
Esse fenômeno foi estudado por F. das C. da Silva Neto (1998) em sua monografia de graduação em História – Escravidão e Abolição em Quixeramobim: liberdade condicional e gradativa imposta pelos senhores proprietário (1850-1884). Sobre as liberdades condicionadas ele enfatiza,

‘Não era interesse dos proprietários passarem carta de alforria ao seu escravo em sua totalidade. Mas lhe dar apenas metade, estimulando para que pudessem num futuro próximo, quem sabe, ser livre. Tal questão deixa transparecer que subordinar o escravo através da metade da liberdade que falta, aos seus proprietários ou herdeiro, poderia naquele período significar um bom investimento para os mesmos261. ’

Parece que as liberdades condicionais foram praticadas durante todo o período de vigência da escravidão. Isso se constituía em imposição da sociedade escravista, sem possibilidade de recurso contrário por parte do pretendente à liberdade. Ainda conforme Silva Neto (1998) esse tipo de liberdade se coadunava com a situação política e sócio-econômica de Quixeramobim. Para o caso da alforria do mulato João Pedro, a declarante descreve seu estado de penúria e pobreza para justificar a manutenção da posse bem como o apreço que nutre pelo escravo por causa dos bons serviços prestados, razão pela qual lhe perdoava parte do pagamento da alforria, tomando-a em terça.
A incondicionalidade da liberdade poderia advir tanto da compra como da gratuidade da concessão. Para muitos cativos a liberdade tinha o sentido da plenitude, daí eles mesmos juntaram um pecúlio, com horas extras de trabalho, para efetuar o pagamento. Esse pecúlio poderia ser reunido não somente em moeda corrente, mas em bens como gado. Embora ele tenha sido legalizado apenas com a lei do Ventre Livre, é factível que o pecúlio era praticado em anos precedentes, sendo recorrente a utilização desses bens para o pagamento das cartas de liberdade, pois “diante das condições mais modestas dos senhores do sertão, as formas de pagamento das cartas revelam que parte deles se valia de pertences muitos simples de seus escravos”262. Por exemplo, o mulato João Pedro de quem já fiz referência, teve sua liberdade comprada pela sua mãe Maria do Rozario, já liberta por “oitenta mil reis em cujo valor o forro, e como de facto forrado tenho… recebendo ao fazer desta sinquenta mil reis, a saber onze mil reis em dinheiro e trinta e nove em animais, os quais recebi (…)”263.
De certo modo, as cartas compradas revelam o engajamento do escravo na economia local, dinamizando-a, pois os cativos se dedicavam a vários misteres, como comércio ambulante, artesanato, lavoura dentre outros, para reunir o valor exigido para sua auto-alforria ou manumissão de um parente. Por outro lado, a carta de liberdade foi sempre resultado de negociação, de acordos e de estratégias entre proprietário e propriedade. Por conseguinte, os mecanismos empregados para reunir pecúlio respondiam “aos arranjos cotidianos, constituídos nas redes de vizinhança e parentesco, que ampliaram as margens de negociações”264.
À guisa de últimas considerações, retomo as classificações constantes nos documentos analisados. A denominação gentio de Angola não representava um povo, ou uma etnia como já foi aludido. O termo nação indicava um porto de embarque. No entanto, o lugar de embarque acabou sendo adotado como um ponto de referência identitária para aqueles que chegavam ao Novo Mundo. A nação possui uma componente cultural, mas é um termo atribuído pelos agentes colonizadores (Estado, comerciantes, Igreja) e definido pelo império português, e, só em seguida apropriado pelos Negros265. O questionamento que faço é: essas atribuições eram adotadas pelos Negros irmanados na confraria do Rosário dos Pretos de Quixeramobim? Organizavam suas sociabilidades utilizando essa denominação? Elaboraram uma representação de si por meio dessa classificação?
O problema que vejo com a noção de grupo de procedência proposto por M. de C. Soares (2000) e retomada anteriormente, é que ela cola essa noção ao “pressuposto de que os grupos étnicos chegados às Américas em condições de cativeiro têm a sua frente uma infinidade de possibilidades de reorganização”266. Penso que os Negros em condições de cativeiro tinham alternativas concedidas, daí não serem ilimitadas. As irmandades são exemplos disso, pois eram atreladas ao poder da Igreja e muitas vezes aos interesses de um proprietário de escravo. No compromisso da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário de Quixeramobim o capítulo, Da Presidência, previa que “qualquer reunião da irmandade será presidida pelo Parocho, e em sua falta pelo thesoureiro, excepto porem quando este prestar conta porque o substitua um dos juízes por devoção mais antigo”267. Conforme se verifica no estatuto, o padre representa o poder da Igreja e o tesoureiro não é um “Preto”.
Ademais, as alternativas criadas possuíam os limites do estoque cultural de cada grupo étnico que no Novo Mundo sofreu dispersão. Uma vez reunidos através de organizações sociais como as irmandades, os Negros procedentes de vários grupos étnicos, partilhando uma experiência comum, diáspora e escravidão, vão traduzir, com base nessas experiências suas várias tradições, dando origem a algo novo, ou seja, uma cultura híbrida. Então, a categoria grupo de procedência é uma categoria viável para se perceber o fenômeno mais pelo fato dos Negros recriarem a partir dessas classificações um sentido de ser e existir no mundo ainda que fosse de forma regulada do que pelas possibilidades inesgotáveis como requer Soares (2000). Esses espaços conquistados, a confraria é um desses exemplos, não são irrestritos, pelo contrário são poucos e dispersos e como diz S. Hall (2003), policiados e regulados268. Ao afirmar isso, S. Hall está pensando nas identidades e culturas negras no contexto contemporâneo de afirmação de diferenças. Por outro lado, se fosse possível fazer um deslocamento para o entendimento de fenômenos pretéritos de afirmação da diferença, muito teria sentido o seu reconhecimento de que

‘Os espaços ‘conquistados para a diferença são poucos e dispersos, e cuidadosamente policiados e regulados. Acredito que sejam limitados. Sei que eles são absurdamente sub-financiados, que existe sempre um preço de cooptação a ser pago quando o lado cortante da diferença e da transgressão perde o fio da espetacularização. Eu sei que o que substitui a invisibilidade é uma espécie de visibilidade cuidadosamente regulada269.’

Em relação às definições gentílicas e nacionais recorrentes nos documentos analisados se não me possibilitaram maiores pistas sobre a irmandade do Rosário dos Pretos, pelo menos me indicaram como os Negros eram reconhecidos, dando complexidade à categoria grupo de procedência. Deram-me, outrossim, uma compreensão do contexto de inserção do Negro em Quixeramobim e o reconhecimento de alternativas e espaços sociais criados em resposta às condições impostas.

Notes
247.

C. Moura, Alforria, in Dicionário da Escravidão Negra no Brasil, São Paulo: Edusp, 2004, p. 157.

248.

R. Vainfas, op. cit., 2001, p. 30.

249.

M. Carnerio da Cunha, Sobre os silêncios da lei: lei costumeira e positiva nas alforrias de escravos no Brasil do século XIX, In, Antropologia do Brasil, São Paulo: Brasiliense, 1987, p. 124.

250.

Ibid, p. 125.

251.

M. de C. Soares, Os devotos da cor , Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000.

252.

M. de M. e Souza, História, mito e identidade nas festas de reis negros no Brasil – séculos XVII e XIX, In Jancsó & Kantor. Festa cultura e sociabilidade na América Portuguesa , São Paulo: Hucitec, v. 1.

253.

O. Riedel, Oswaldo,Escravo no Ceará, In, Revista do Instituto do Ceará , Fortaleza: 1987.

254.

Estou ciente de que não posso atribuir qualquer generalização uma vez que o número de ocorrência é pouco expressivo.

255.

Livro de Notas, 1802-1803, Cartório de 2º. Ofício Queiroz Rocha, Quixeramobim.

256.

A esse tipo chama-se de alforria condicionada. Para Clóvis Moura “era uma das formas de alforria gratuita, dada pelo senhor, mas sob a condição de que o escravo prestasse durante determinado prazo serviços a serem cumpridos, ou servisse a determinada pessoa que podia ser o próprio senhor, sua viúva ou algum herdeiro, por vezes até a morte deste”. C. Moura, Alforria Condicionada, in Dicionário da Escravidão Negra no Brasil, São Paulo: Edusp, 2004, p. 24.

257.

Concessão condicionada outorgada, em 1802, à escrava cabra Maria José. Livro de Notas, 1802-1803, Cartório de 2º. Ofício Queiroz Rocha, Quixeramobim.

258.

M. de F. N. Pires, Cartas de Alforria: “para não ter o desgosto de ficar em cativeiro” in Revista Brasileira de História, São Paulo, v. 26, n. 52, 2006, p. 146.

259.

S. Challoub (1990) apud M. de F. N. Pires, Cartas de Alforria: “para não ter o desgosto de ficar em cativeiro” in Revista Brasileira de História, São Paulo, v. 26, n. 52, 2006, p. 151.

260.

Livro de Notas, 1783 a 1786. Cartório de 2º. Ofício Queiroz Rocha, Quixeramobim.

261.

F. das C. Silva Neto, Escravidão e Abolição em Quixeramobim: liberdade condicional e gradativa imposta pelos senhores proprietário (1850-1884).Quixadá: Faculdade de Educação, 1998. Inédito.

262.

M. de F. N. Pires, Cartas de Alforria: “para não ter o desgosto de ficar em cativeiro” in Revista Brasileira de História, São Paulo, v. 26, n. 52, 2006, p. 158.

263.

Livro de Notas, 1783 a 1786. Cartório de 2º. Ofício Queiroz Rocha, Quixeramobim.

264.

M. de F. N. Pires, Cartas de Alforria: “para não ter o desgosto de ficar em cativeiro” in Revista Brasileira de História, São Paulo, v. 26, n. 52, 2006, p. 156.

265.

M. de C. Soares, Os devotos da cor , Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000, p. 116.

266.

M. de C. Soares, 2000, op. cit, p. 116.

267.

COMPROMISSO da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos da Villa de Quixeramobim, In, Leis Provinciais do Ceará 1835-1861, Fortaleza: Biblioteca Pública Menezes Pimentel, Microfilme.

268.

S. Hall, Que “Negro” é esse na cultura negra? In, Da Diáspora, identidades e mediações culturais , Belo Horizonte: Humanitas, 2003, p. 339.

269.

Ibid, p 339.