Terceira Parte
As Irmandades: devoção e solidariedade

Capítulo 7
O surgimento e a finalidade das Irmandades

As irmandades leigas ou confrarias270 em Portugal tiveram suas primeiras aparições no século XIII, propagando-se para as longínquas terras de além-mar, conquistadas pelo império português, a partir do século XVI271. A finalidade primordial desse tipo de associação era dar assistência material e espiritual a seus membros bem como promover o culto ao santo de sua devoção. Nesse sentido, elas se constituíram no intuito de atender as necessidades de seus associados, “não apenas através de uma prática caritativa baseada no amor ao próximo com forma de assegurar a salvação individual, mas também através da orientação doutrinal dos fiéis, do estímulo da procura dos sacramentos, do culto dos mortos e do exercício de outras atividades devocionais e piedosas272”.
As irmandades ainda que revelassem e legitimassem as hierarquias e diferenças sociais não deixaram de exercer papel relevante na construção da identidade dos grupos que elas representavam, do mesmo modo que “reforçaram os processos de integração e coesão comunitária e multiplicaram os tempos, espaços e formas de sociabilidade273, principalmente em torno das festas e celebrações religiosas274”. Paulo Penteado (2000) destaca a dimensão política dessas agremiações pela sua capacidade de criar oportunidades de “exercício do poder local, factor que muito contribuiu para seu sucesso275”. Por fim, junta a essa característica, o seu caráter festivo uma vez que “a maior parte das irmandades tinha responsabilidade de organização ou de participação em várias festividades, facto que garantia maiores oportunidades de exibição e reconhecimento social e de sociabilidade, particularmente entre seus membros, que assim poderiam estabelecer laços mais estreitos entre si276”.
As irmandades em voga no Brasil colonial remontam às confrarias religiosas européias, que por sua vez se distinguem das corporações de ofícios ou das guildas bastante populares no período medieval. O modelo para aqui importado em quase nada se distinguia de suas congêneres portuguesas, pois as características apresentadas àquelas em Portugal são facilmente encontradas nas confrarias brasileiras, destacando-se, sobretudo pelas suas qualidades festivas e devocionais. Em quase todas as freguesias brasileiras encontravam-se as irmandades do Santíssimo Sacramento, de Nossa Senhora do Rosário e das Almas, tendo sido também as primeiras a serem estimuladas na metrópole. Os Negros normalmente se congregavam em torno da virgem do Rosário, seguindo também o padrão português, mas existiam outros santos de sua predileção como São Benedito, Santa Ifigênia.
A irmandade de Nossa Senhora do Rosário apareceu em Lisboa, no mosteiro dominicano, em 1460277. Inicialmente parecia ser de devoção tanto de Pretos como de Brancos, mas a identificação maior dos primeiros com seu culto foi gradativamente afastando os outros, tornando-se o orago quase que exclusivamente das confrarias de Pretos libertos ou escravos, Africanos ou Crioulos. No século XVI, o culto criado por São Domingos de Gusmão, e já quase esquecido, foi restabelecido com os primeiros missionários enviados para a África. De certo modo, isso justificou sua generalização entre os Negros escravizados278.
A metrópole foi a grande difusora do culto no âmbito das irmandades, mas foi também por meio da África, como enfatizou Eduardo Hoornaert (1991) “que o Rosário passou para o Brasil, onde constituía o elo fácil e muito popularizado de contato entre a instituição oficial da igreja e o mundo dos escravos Negros”279. Então, não seriam as irmandades e a devoção à virgem do Rosário uma “reinterpretação do catolicismo africano” em terras brasileiras e ainda a possibilidade de rememoração de práticas culturais católicas adquiridas pelo Africano antes de sua subjugação na África?
Para Roger Bastide (1971), o culto aos santos negros ou à virgem do Rosário foi uma etapa da cristianização, sendo utilizado pelos proprietários de escravos no Brasil como um instrumento de controle e submissão do escravo. A parte essa visão meramente negativa relacionada às devoções negras instituídas pelas irmandades, porquanto nem sempre elas foram bem aceitas, não se pode perder de vista que o culto à senhora do Rosário e as festas correlatas, se constituíram para os Negros em linhas de fuga ou alternativas de poder em um contexto onde as possibilidades de inserção eram bastante limitadas. As irmandades pretenderam construir uma alternativa política e social a partir de onde os Negros negociavam um lugar na sociedade e muitas vezes até sua liberdade sem se investir no confronto com os senhores e menos ainda com pretensão de destruir o sistema de escravidão.
É provável que tenha sido a irmandade de Nossa Senhora do Rosário de Pernambuco a primeira a ser instituída em terras brasileiras. Conforme A. J. R. Russell-Wood (2005), “em 1589, dois zelosos missionários jesuítas formaram irmandades de escravos Negros que trabalhavam nas fazendas açucareiras de Pernambuco com o objetivo declarado de melhorar a instrução espiritual”280. Na Bahia, as confrarias negras com devoção a Nossa Senhora do Rosário foram inúmeras e contavam no século XVII com pelo menos duas de maior destaque em Salvador: a do Rosário da Conceição da Praia, 1686 e a do Rosário das Portas do Carmo, 1685. Certamente, para uma dessas duas o padre Antônio Vieira fez um sermão em 1688, antes mesmo de sua ordenação, exaltando a necessidade dos Negros se manterem fiéis ao culto católico. “Dites-moi: vous parents, qui sont nés dans les ténèbres du paganisme, qui y vivent et y finissent leurs jours, privés de la lumière de la foi e de la connaissance de Dieu, où vont-ils après leur mort? »281.
Ao pregar para a confraria negra, o objetivo de Vieira não era o de condenar a escravidão do Africano como fez em relação à escravidão indígena, mas antes convencer os escravos da doçura de sua condição “Il n’y a pas de travail plus sucré que celui de vos engenhos. Mais à qui va toute cette douceur? Vous êtes comme les abeilles, qui fabriquent le miel, mais pas pour elles mêmes»282. Para o pregador o sofrimento dos engenhos seria suplantado pela alegria e pela glória, “suivant l’orde du chapelet”283. Impossível afirmar se as irmandades ao venerarem Nossa Senhora do Rosário faziam essa associação, mas o fato é que foi através dessa devoção que puderam alternar suas desventuras quotidianas com momentos de festa e de encontro.
Assim, seguindo o exemplo das portuguesas, as irmandades do Brasil exerceram importante papel na doutrinação da fé católica da população que se conformava na colônia com o Branco Português e o Negro Africano, escravizado. Como o processo de evangelização do autóctone encaminhava-se no sentido da constituição das aldeias jesuíticas, depois com o estabelecimento das vilas pombalinas, esse tipo de organização quase não prosperou no seu seio. O que não foi bem o caso dos colonos Portugueses e dos Negros, pois não somente possuíam associações distintas como muitas vezes estavam impedidos de freqüentarem umas as outras e até mesmo de cultuar o mesmo patrono. Também não muito diferente da realidade portuguesa, as irmandades no Brasil representavam as hierarquias existentes na sociedade e a sua instalação se deveu em grande parte pela possibilidade de dar assistência social e espiritual aos necessitados e desvalidos, especialmente a população africana e crioula. Nesse sentido, elas foram relevantes no “processo de aculturação da população africana, estimulando-a ao exercício dos ritos católicos e à participação nos sacramentos”284.
Se foram os dominicanos a propagarem o culto de Nossa Senhora do Rosário na África e em Portugal, em terras brasilis vão ser jesuítas e franciscanos a incentivarem-no através da criação das irmandades. Foi por meio dessas duas ordens religiosas que os Negros puderam apreender o ethos católico e a manipulá-lo a seu favor. As associações religiosas leigas brasileiras, não muito diferentes das do reino em relação ao fato de integrar a população respeitando suas diferenciações quer fossem étnicas, de raça ou de cor, “encontraram pleno florescimento no decorrer do século XVIII. Partindo de modelos portugueses, procuram adaptar-se às circunstâncias locais, sem perder, entretanto, as características de seus modelos de origem, que se encontram sobretudo nas regras das Misericórdias e em particular na de Lisboa”285.
As irmandades, espalhadas em todas as latitudes da colônia, foram organizadas e administradas em conformidade a um conjunto de regras intituladas compromissos, não sem antes estes serem submetidos a aprovação real por meio da Mesa de Consciência e Ordens. Nesses compromissos determinavam-se os critérios de elegibilidades da mesa regente, os deveres e as obrigações dos que ocupavam os cargos administrativos. Delimitavam ainda as obrigações e os privilégios que teriam os componentes da agremiação, ou irmãos, se respeitadas e cumpridas as prescrições da agremiação. A administração da irmandade ficava então sob a incumbência de uma mesa, constituída por um ou mais juízes286, posto de maior importância, procuradores, tesoureiros, escrivães e mesários287. Além dos cargos efetivos, havia os cargos figurativos, simbólicos, ou para usar uma expressão comum nos regulamentos, cargos por devoção, que poderiam ter a mesma configuração de juiz, procurador, tesoureiro ou escrivão. As irmandades negras atribuíam essa característica aos postos de rei e rainha.
Em linhas gerais, os compromissos se estruturavam em capítulos, desdobrando-se em artigos e parágrafos. Através deles se expressavam os anseios da organização, mais especificamente o modo como deveria funcionar. Embora fossem os critérios econômico/raciais que diferenciassem as irmandades, na verdade o que lhe caracterizava estava proposto logo no primeiro capítulo do compromisso com uma descrição de sua finalidade não necessariamente fazendo alusão a esses aspectos. Esses critérios vinham a lume quando era definida a sua composição. A seguir, vinha uma descrição dos direitos e obrigações dos membros. Alguns estatutos traziam uma exposição pormenorizada das funções de cada cargo e um cronograma, definindo os momentos de encontro dos irmãos para se proceder à renovação da mesa regedora. No tocante ainda a um calendário, estabeleciam-se a data de comemoração do orago e outros momentos de festividades dos quais os confrades deveriam participar.
A cada ano deveria se proceder à eleição e posse dos novos regedores. A escolha era realizada por meio de eleição e em caso de haver rejeição ao cargo, novo processo eleitoral seria estabelecido. O irmão que recusasse o posto para o qual foi escolhido deveria justificar, e não sendo convincentes os motivos, era-lhe cobrada uma multa. Os compromissos previam critérios de admissão dos associados. Nesse ponto se definiam as condições sociais ou raciais dos membros da irmandade. Em resumo, essas normas além de regular a administração,

‘estabeleciam a condição social ou racial exigida dos sócios, seus deveres, e direitos. Entre os deveres estavam o bom comportamento e a devoção católica, o pagamento das anuidades, a participação em cerimônias civis e religiosas da irmandade. Em troca, os irmãos tinham o direito à assistência médica e jurídica, ao socorro em momento de crise financeira, em alguns casos ajuda para a compra de alforria, e muito especialmente, direito a enterro decente para si e membros da família, com acompanhamento de irmãos e irmãs de confraria, e sepultura na capela da irmandade288. ’

Para o santo de sua veneração deviam os irmãos se empenhar para construir uma capela ou uma igreja. Mesmo havendo explícitas diferenças entre as confrarias de Brancos e Pretos, estas poderiam se albergar no mesmo espaço sagrado, por certo período de tempo, mas a obrigação que incidia sobre cada uma delas era a construção de um templo próprio para o culto do orago de sua devoção. Para tanto, essas associações deveriam conformar um patrimônio em bens de raiz e móveis através de doações fossem de seus próprios componentes ou de outros fiéis. Elas procuravam por todos os meios o auto-gerenciamento e a auto-sustentação, não recusando contudo o dom de quem quer que fosse. Embora não fosse a realidade de todas as irmandades negras, o fato é que muitas delas possuíam bens em propriedade de terra, casas, animais e outros. Diante de semelhante situação, isto é, em que fossem muitos os recursos a gerir, maiores responsabilidades pesavam sobre os administradores, em especial sobre o tesoureiro, que tão logo finalizasse seu mandato deveria prestar contas das rendas à nova diretoria. Em caso de discrepâncias entre as receitas e despesas, o tesoureiro tinha obrigação de fazer as cobranças necessárias ao devedor “para que pague o principal, e as custas, o que fará dentro de um mês, e não cumprindo assim, o Escrivão lhe carregará a dívida como se já estivesse recebida”289. Daí se verifica a importância que tinham os livros de receitas e despesas.
No sistema de padroado as irmandades seculares também deviam obediência à Igreja Católica. Para manter a vigilância sobre elas, As Constituições primeiras do Arcebispado da Bahia (1707) dedicaram algumas instruções para a sua conformação e administração, não necessariamente para as confrarias negras, incidindo sobretudo na forma como deveriam proceder com seus estatutos ou compromissos “porque tendo na sobredita forma alguns abusos ou obrigações menos decentes, e pouco convenientes ao serviço de Deos, e dos Santos, as fação emendar”290. Coibir os abusos “que os Confrades, ou irmão põem em seus Estatutos ou Compromissos, obrigando com elles a pensões onerosas, e talvez indecentes, de que Deos nosso Senhor, e os Santos não são servidos291”.
As festas em homenagem ao patrono eram estimuladas e os compromissos dedicavam especial atenção a elas. A ação da confraria muitas vezes se voltava à obtenção de receitas que seriam empregadas nos momentos festivos. As festas favoreciam a visibilidade da associação e por isso elas eram realizadas com esmero e pompa. Eram também os gastos exorbitantes aí empregados o vetor dos conflitos entre confrades e os vigários. Daí se justificar que as Constituições primeiras versassem sobre as despesas a serem consideradas pelos visitadores. “E encomendamos aos ditos Visitadores, não levem em conta gastos demasiados, e excessivos, feitos em comer, e beber, danças, comedias, e cousas semelhantes, mas antes do que crescer dos gastos ordinários, e lícitos, ordenarão que se comprem ornamentos, e peças para as Confrarias”292.
Embora os estatutos não fossem de encontro ao que determinavam as Constituições primeiras, é fato que elas procuram construir uma autonomia em relação ao que deveria ser despendido com as folias em homenagem ao santo venerado, porquanto esses momentos eram de demonstração da grande devoção dos fiéis. A pompa, as danças e as comédias, tolhidas pelas autoridades eclesiásticas e insistentemente engajadas pelas confrarias, poderiam revelar ainda o desejo de marcar com júbilo o encontro da comunidade negra. Encontro no qual as alianças e solidariedades eram reafirmadas e redefinidas e, como em todo jogo de interação, os conflitos também eram reacendidos. A ação das confrarias, de certo modo, era regulada pela religião católica, como se destacou há pouco, contudo não se pode atribuir a elas ausência de negociação. Mais do que um “simulacro de liberdade política293”, pretendido por Nina Rodrigues (1945), elas poderiam ser percebidas “como meios de integração dos Negros na sociedade local e de humanização dos escravos que ali podiam se reunir e se divertir, sem, entretanto, contestar o sistema escravista, como espaço físico e político que dava a seus membros um sentimento de identidade e orgulho”294.
É pouco provável que as irmandades, em especial as confrarias negras no Ceará, tenham se distinguido das demais do Brasil porque aí teria sido inexpressiva a escravidão. Sem pretender um retorno a esse debate, importa dizer que não foram as particularidades da escravidão cearense que condicionaram o florescimento dessas agremiações no seu seio, pois onde quer que existisse uma freguesia instalada, os leigos aí se arregimentavam em confrarias. Por outro lado, a escravidão tampouco determinou características peculiares que porventura lhes diferenciassem das outras associações leigas espalhas pelo território brasileiro. Pelo contrário, as associações leigas cearenses se organizavam conforme os cânones do catolicismo tridentino, baseado no culto aos santos e na participação dos sacramentos295.
Outrossim, foi por meio delas que na Capitania e depois na Província a fé católica se propagou e adquiriu hegemonia. A existência de irmandade no século XVII foi registrada pelo bispo de Pernambuco ao relatar ao rei D. Pedro II, as soluções tomadas para resolver o desamparo espiritual que encontrou naquela capitania do Siará em 1698. “Logo que tive notícia do desamparo, em que estava crescerão os moradores, e aumentou se a povoação de sorte que se instituhio Parochia dando se lhe por Matriz a mesma capella de fortaleza”296. Assim, ao se instituir uma paróquia em Fortaleza, foram fundadas também “entre os moradores e soldados três irmandades: a da S. como padroeira, e de S. Antônio, e a das Almas”. Eis aí um forte indício de sua existência nos primórdios da ocupação do Ceará, mas pouco se sabe se elas prosperaram e se as que registraram seus estatutos no século XIX remontam em tão longínquo tempo seu aparecimento. Das associações leigas de Fortaleza nada posso afirmar, já de Quixeramobim, seguramente posso supor que a irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos data do século XVIII, mais precisamente de 1755, conforme pude atestar através de indicações de um compromisso de 1899 e a do Santíssimo Sacramento foi fundada em 1813.
As notícias sobre as confrarias leigas nos séculos que precedem os oitocentos são imprecisas. Essa realidade se modificará no século seguinte conforme o levantamento feito por Eduardo Campos em 1980, tomando como referência os compromissos das agremiações que pretenderam um reconhecimento no século XIX. Conforme atesta esse arrolamento, pelo menos oitenta e seis dessas instituições, espalhadas nas mais de quarenta freguesias, aprovaram seus estatutos entre os anos 1850 e 1877. É reconhecida a importância desse trabalho no estudo das confrarias cearenses, porém através dele pouco se apreende do processo de constituição das irmandades que lhe era imanente e do momento em que essas de fato surgiram. A crítica aqui não é tanto à pesquisa de Eduardo Campos, e sim à uniformização que estes adquiriram, impedindo o conhecimento dos meandros das instituições. Se existe uma crítica ao autor é mais pelo fato dele ter se restringido a essas fontes, isto é, aos compromissos já impressos. Os estatutos manuscritos com suas emendas e correções revelam de algum modo o processo e os agentes envolvidos na sua elaboração, podendo até indicar datas de surgimento da associação. Mesmo assim permanece uma fonte restrita à descrição das normas de funcionamento.
Através da análise dos documentos referentes à irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos de Quixeramobim, pude perceber que a história da constituição das confrarias negras no Ceará não começava com o reconhecimento civil dos estatutos, ela é bem anterior a esse evento uma vez que muitas confrarias funcionaram em determinado tempo sem a anuência régia ou eclesiástica. De fato, foram outros documentos que me permitiram recuar nos primórdios dessa instituição, atestando que sua fundação remonta ao período setecentista, aspecto que será mais bem descrito adiante. Quiçá o mesmo tenha ocorrido com outras espalhadas pelos sertões cearenses que só se tomou conhecimento de sua existência através dos compromissos reconhecidos no século XIX.
De qualquer modo essas irmandades não passaram despercebidas na cidade de Quixeramobim, encontrando-se aí pessoas que ainda falam do empenho de alguns de seus membros em realizar, em tempos mais recentes, a festa de Nossa Senhora do Rosário. Tampouco estava longe do olhar severo do pároco, influenciado pelas idéias liberais, surgidas da Europa, que foram grandemente responsáveis pela superação do regime de padroado. Conquanto no Brasil a separação da Igreja do Estado só tenha ocorrido no final do século XIX, “pois o padroado foi mantido até a proclamação da República, em 1889”297, ela não tardou em produzir seus efeitos antes dessa data nas mais recônditas paróquias, influenciando as atitudes e as práticas dos vigários, mormente em relação às organizações leigas.
Ilustra essa influência um texto manuscrito, de autor desconhecido, intitulado As irmandades. Esse documento, datado de 1878, faz parte de um conjunto de apontamentos ou miscelâneas religiosas, organizados em um livro que se encontra na paróquia de Quixeramobim. Além de uma crítica ao estado em que se encontravam as irmandades, o manuscrito destaca a necessidade de se restabelecer essa instituição em função do momento histórico de reestruturação da Igreja com a romanização. O texto apresenta em linhas gerais o novo papel das irmandades frente à superação do padroado. É com essa constatação que o autor abre a discussão ao dizer que

‘Com o decreto da separação da Igreja do Estado é obvio que todos os negócios referentes ao culto, máxime os assuntos espirituais, ficarão subordinados immediatamente à administração exclusiva dos Senres Bispos. Dizemos immediatamente porque não tem mais razão de ser a interferência do poder civil, à titulo de padroado e seos consectarios, abolidos pelo citado decreto. As irmandades que forão erectas como corporações mixtas e estavão sujeitas à dupla inspecção do poder civil e da autoridade eclesiástica ficarão em virtude da separação única e exclusivamente dependentes dos bispos, à quem d´ora em diante prestão obediência, como institutos eclesiásticos.298.’

Sob essa nova orientação, as irmandades perderam a autonomia que as caracterizavam, ficando doravante subordinada quase exclusivamente ao poder do Bispo. Como o caráter festivo era o que mais caracterizava a ação das confrarias leigas, sobressaindo-se aí as irmandades negras, com a eleição de reis negros e os cortejos por ocasião da festa do orago, esse passou a ser minimizado nos compromissos e até combatido pelas autoridades religiosas. Em nome do zelo da fé, o aspecto dos templos e as aparições públicas das irmandades passaram a ser censurados e é nisso que o autor anônimo é mais enfático

‘Profuzas luzes inundão o santuário; custosos ornamentos ostentão a opulência das confrarias, que então exibem suas alfaias de preço, seos lustres galvanizados, suas opas de cores rutilantes, seos hábitos e balandraios variegados. (…).Tudo se limita ao exterior. Os irmãos se agarram a epiderme do culto e desprezão o âmago da crença. Com suas opas e tochas, seo papoca cenciado e ritmado, com seo garbo estufado e orgulhoso ouvem os sermões e esquecem a pratica da doutrina. Assemelhão-se aos crentes, de que falava nosso Santo Antônio Vieira: “são catholicos do credo e hereges dos mandamentos”. Não basta esse exterior do theatro, ceremonial de scenário, em que desempenhão papéis como comparsas de ocassião299

Conforme o autor das Miscelâneas Religiosas, os irmãos deveriam deixar de se preocupar com a exterioridade da fé e mostrar-se mais “zelosos no cumprimento dos deveres da religião”, especialmente na participação dos sacramentos. “A confissão, a comunhão, a abstinência, o jejum de quarenta dias, a oração a ementa da vida, a restituição, a contrição; eis o que pelos estatutos ou compromissos das irmandades, cada um dos seus membros deve fazer empreendendo com todo heroísmo a obra da própria regeneração espiritual300”.
O controle pesaria igualmente sobre os “negócios temporais” das irmandades, isto é, sobre o patrimônio, constituído pelos bens móveis e imóveis e outras rendas, e “pagarão por força do decreto para a inspecção e fiscalização dos Bispos, por si ou por seo vigário geral, ou por outro qualquer delegado do Bispo. Voltarão, portanto as irmandades ao primitivo regimento do direito canônico”301. Diante dessa nova realidade, o que se observa que é a irmandade de Nossa Senhora do Rosário, embora tenha passado a sofrer intervenções na maneira de gerir o patrimônio da virgem do Rosário, continuava a ter, no princípio do século XX, o controle dos bens, em especial das propriedades de terra, conseguidas ao longo dos tempos através de doações. E o que talvez surpreenda mais é saber que eram as famílias negras Barrozo e Matias que mantinham a irmandade em funcionamento, por conseguinte sendo as responsáveis pelos seus bens. Assim, a confraria de Nossa Senhora do Rosário não perdeu mesmo no limiar dos novecentos a característica de ser uma associação onde os Negros exerciam um papel de poder importante em Quixeramobim.
Além das festas da padroeira, organizadas e animadas pelos Barrozo, fato que é lembrado e narrado hodiernamente por alguns membros dessas famílias, a administração do patrimônio esteve também por muito tempo sob a responsabilidade dos Negros, mesmo tendo a irmandade se enfraquecido consideravelmente com as mudanças de que falei há pouco. Conquanto não se podendo falar em continuidade, pois a irmandade nasceu, transformou-se e deixou de existir, a verdade é que, insisto, ela permaneceu com o sentido de ser um lugar onde os Negros eram protagonistas e de um espaço de sociabilidade onde esses sujeitos construíam uma identidade. Esse ponto será retomado adiante.

Notes
270.

Irmandade, confraria e ordem terceira eram associações leigas com a finalidade de desenvolver o culto a um santo e prestar serviços caritativos a seus membros. Embora com objetivos comuns, na sua forma de funcionamento e estruturação comportavam diferenças. Assim, conforme Célia Maia Borges (2005) “as pias uniões eram associações de fieis eretas com o objetivo de exercer obras de piedade ou caridade. Quando constituídas em organismos, reguladas por um estatuto, chamavam-se irmandades. As que se erigiam para promover tão somente o culto público (procissões, rezas e representações de várias naturezas) denominavam-se confrarias”. In: Escravos e libertos nas irmandades do Rosário, Juiz de Fora, Editora UFJF, 2005, p. 52. Para os envolvidos com as associações leigas no Ceará não parecia haver muita diferença entre elas dado ser comum o emprego de ambos os termos para se referir ao fenômeno. Em razão disso, faço uso recorrente dessas duas expressões como se fossem sinônimas.

271.

Conforme A. J. R. Russell-Wood “A Península Ibérica não ficou imune a este sentimento corporativo que varreu a Europa do Mediterrâneo Báltico” Op. cit., 2005, p. 191. Diz ainda o autor que “As primeiras irmandades de Portugal sobre as quais há detalhes são a Ordem Terceira de São Francisco (1289), a Confraria dos Homens-Bons (Beja, 1297) e a Irmandade da Imaculada Conceição (Sintra, 1346). Além disso, as sociedades de Espanha e Portugal incluíam diversas religiões, raças e idiomas e propiciavam oportunidades de contato intercultural freqüente. No século XV, existiam nas cidades de Espanha e de Portugal irmandades católicas que contavam, entre seus membros, com Negros trazidos da África como escravos, além de Brancos de origem Ibérica.” O p. cit.,2005, p. 191. Contudo, para P. Penteado, “A maioria das confrarias portuguesas medievais foram criadas a partir do século XIV e localizavam-se em igrejas paroquiais e capelas próprias”. Op. cit. 2000, p. 461. Já no Brasil somente no século XVII e XVIII essas irmandades aparecem no cenário urbano das principais freguesias. Portanto, “No século XVII, seria verdadeiro dizer que para cada pessoa, negra ou mulata, homem ou mulher, escrava ou livre, e para cada origem tribal e local de nascimento (Crioulo, ou seja, nascida no Brasil, ou vinda da África) existia uma irmandade na qual poderia encontrar seus iguais”. A. J. R. Russell-Wood,Escravos e Libertos no Brasil Colonial, Rio de Janeiro, 2005, p. 199.

272.

P. Penteado, Confrarias, in Dicionário de História Religiosa de Portugal. Carlos Moreira Azevedo (Dir). Lisboa, Círculo de Leitores, 2000, p. 460.

273.

A sociabilidade não parece se distinguir dos esquemas de interação seja entre iguais ou diferentes para Georg Simmel (2006). Para além de um caráter “superficial” e de um mundo artificial que lhe possa ser conferido, para ele “toda sociabilidade é um símbolo da vida quando esta surge no fluxo de um jogo prazeroso e fácil. Porém, é justamente um símbolo da vida cuja imagem se modifica até o ponto em que a distância em relação à vida o exige” (Grifos do autor). In: Questões fundamentais da sociologia, Rio de Janeiro: Zahar, 2006, p. 80.

274.

P. Penteado, op. cit., 2000, p. 460.

275.

Ibid.

276.

P. Penteado, História Religiosa de Portugal, Carlos Moreira Azevedo (Dir), Rio de Janeiro, Círculo de Leitores, v. 2, 2000, p. 327-328.

277.

A. J. R. Russell-Wood, op. cit., 2005, p. 221.

278.

R. Bastide, As religiões africanas no Brasil, São Paulo: Livraria Pioneira, 1971, 163.

279.

E. Hoornaert, O cristianismo moreno do Brasil, Petrópolis: Vozes, 1991.

280.

A. J. R. Russell-Wood, op. cit., 2005, p. 199.

281.

A. Vieira apud A. José-Saraiva, Le Père Antônio Vieira S.J et la question de l’esclavage dês Noirs au XVIIe siècle, Annales, 1967, nº 6, p. 1291.

282.

Ibid, p. 1292.

283.

Ibid.

284.

R. Vainfas, op. cit., 2001, p. 317.

285.

J. Scarano, Devoção e Escravidão, São Paulo: Brasiliana, 1978, p. 27.

286.

O juiz poderia ser chamado de presidente, administrador, prior ou provedor.

287.

Normalmente eram doze, os mesários.

288.

J. J. Reis, A morte é uma festa, São Paulo: Companhia da Letras, 2009, p. 50.

289.

S. M. da Vide, Das Confrarias, Capellas, e Hospitais; e da forma, que devem ter os compromissos das confrarias sugeitas à nossa Jurisdição Eclessiástica, in, Constituições primeiras do Arcebispado da Bahia/feitas, e ordenadas pelo ilustríssimo D. Sebastião Monteiro da Vide, 1707, Brasília: Senado Federal, 2007, p. 306.

290.

Ibid, p. 304.

291.

Ibid, p. 304.

292.

Ibid, p. 306.

293.

N. Rodrigues, Os Africanos no Brasil, São Paulo: Companhia das Letras, 1945.

294.

M. de M e Souza, Reis negros no Brasil escravista. História da festa de coroação de Rei de Congo. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002, p. 205. Cit., p. 189.

295.

Os estudos mais recentes tendem a atribuir a ausência de confrarias profissionais à falta de uma classe de trabalhadores especializados, englobando escravos e livres. Havia sim um ou outro ofício, mas nada que formasse um contingente expressivo com capacidade de organização.

296.

Carta do Bispo de Pernambuco ao rei D. Pedro II sobre o estado material e espiritual em que se encontra a Capitania do Ceará, 1698. Projeto Resgate, Arquivo Público de Fortaleza, microfilme digitalizado.

297.

R. Vainfas, op. cit., 2001, p. 467.

298.

As irmandades, in Apontamentos, 1878, p. 99-100, manuscrito.

299.

As irmandades, in Apontamentos, 1878, p. 99-100, manuscrito.

300.

Ibid.

301.

Ibid.