9.1 A irmandade de Nossa Senhora do Rosário

A irmandade de Nossa Senhora do Rosário foi fundada em 1755 conforme o compromisso de 1899, o qual atesta que “Esta irmandade instituída na capella de Nossa Senhora do Rosário, desta freguesia, há cento e quarenta e quatro annos, continua a existir na mesma capella350”. Difícil é afirmar se no século XVIII a associação recebeu beneplácito do Rei através da Mesa de Consciência e Ordens para funcionar. Assim mesmo, sua existência não era desconhecida das autoridades religiosas, pois recebeu provisão do visitador Veríssimo Rodrigues Rangel, com anuência de Dom Francisco Xavier Aranha, bispo de Pernambuco, para erigir sua capela, em 1772, dando também a autorização aos confrades para conformarem o patrimônio da mesma351.
Ora, se somente naquele ano os “irmãos pretos” pediram autorização para construir a capela de Nossa Senhora do Rosário, não é verdade que ela foi instituída inicialmente aí como afirma o compromisso referido. A irmandade sim já estava constituída e era como instituição dos “irmãos pretos” que solicitavam despacho favorável para levar adiante o projeto de ter um lugar próprio onde pudessem realizar o culto a sua protetora. Portanto, é provável que a irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos tenha funcionado inicialmente na igreja de Santo Antônio em meados do século XVIII, então matriz de Quixeramobim, passando depois para sua capela quando a construíram definitivamente em 1783.
Os acontecimentos primevos relacionados à irmandade não tiveram como palco a capela de Nossa Senhora do Rosário, mas todos os movimentos estavam direcionados para o projeto de sua construção. Decerto, foi isso que deu impulso à própria constituição da irmandade que remonta a tempos tão distantes, isto é, aos anos de 1755. Nenhuma irmandade no Ceará foi tão antiga, salvo aquelas de Fortaleza de que falava o bispo de Pernambuco a D. Pedro II, então rei de Portugal em 1698. Ademais, nenhuma teve vida tão duradoura, chegando ao limiar dos anos de 1920 a solicitar ao bispo metropolitano de Fortaleza, a confirmação de seus estatutos.
A despeito de todas as transformações exigidas pelo avançar dos séculos, como a presença mais constante dos párocos, as intervenções dos bispos e a aceitação dos Pardos nos cargos da mesa regedora, não deixou de ser uma associação em que os Negros eram protagonistas. Chegou ao século XX ainda sendo conduzida por famílias negras (os Barrozos e os Matias) e teria continuado se seu caráter de solidariedade tivesse sido cultivado pelas gerações seguintes e se as investidas das autoridades religiosas contra suas festas não tivessem tido efeitos. Os estatutos à medida que eram renovados, fixavam essas transformações, e graças a eles pode-se compreender como a irmandade se organizava e os possíveis sentidos atribuídos por aqueles que dela participavam.
O procedimento a ser utilizado nesse momento será o mesmo adotado para as outras irmandades, isto é, analisar os compromissos, tentando extrair deles elementos que permitam entender o jogo de interação entre os membros e não-membros. Ademais, pontos que possibilitem compreender as relações de poder implicadas no funcionamento da associação e nas ações engajadas pelos confrades na realização das festas bem como em outras manifestações religioso-culturais das quais a irmandade era agente.
Dos quatro compromissos que passarei a analisar, três foram reconhecidos no século XIX e um nos anos vinte do século seguinte. O primeiro data de 1854 e dista quase um século do momento em que foi criada a irmandade; o segundo refere-se ao ano de 1896; o terceiro, aprovado três anos após este, ou seja, em 1899, aparece intitulado de Novo Compromisso e finalmente o quarto de 1923. Como dito anteriormente, é provável que a irmandade do Rosário tenha atravessado pelo menos um século de sua existência sem os compromissos, pois os documentos que levantei em nenhum momento aludem movimento nesse sentido e tampouco mencionam alguma formalização quer civil quer religiosa de suas ações. Por outro lado, havia exigências expressas nas Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia “que das Confrarias deste nosso Arcebispado, que em sua creação forão erigidas por autoridade nossa ou daqui em diante quizerem erigir com a mesma autoridade, que as faz Eclesiásticas, (2) se remettão a Nós os estatutos, e compromissos, que quizerem de novo fazer, ou já estiverem feitos, para se emendarem alguns abusos, (3) se nelles os houver, e se passar licença (4) in scriptis, para poderem usar delles”352. Diante dessa exigência, há de considerar-se também a hipótese de que os primeiros compromissos da irmandade de Nossa Senhora do Rosário tenham sido perdidos, pois prova de que a irmandade já estava instituída bem antes de 1854 é o livro de Receita e Despesa, iniciado em 1833.
Em linhas gerais, os documentos ou os compromissos aqui referidos tratam de pelo menos sessenta anos de história da irmandade e com eles foi possível observar não somente a ação da irmandade, mas como ela se acomodava às circunstâncias históricas globais em que se operavam mudanças tanto no catolicismo como na sociedade brasileira. Nesse sentido, ela não estava isolada ou perdida nos rincões do sertão cearense, mas integrada a um contexto de amplas transformações no âmbito da fé católica.
O compromisso da irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos de Quixeramobim foi sancionado pelo presidente da província Vicente Pires da Motta, em 1854, compondo-se de vinte e três artigos. Nesse regulamento ela se afirma como uma associação congregadora de indefinido número de pessoas “de ambos os sexos, cores e condições que por devoção quiserem nela ter ingresso”353. Nada impedia que Brancos, Pardos, ricos ou pobres ingressassem na irmandade. As restrições recaíam em assumir funções administrativas, salvo o cargo de tesoureiro. Malgrado essas restrições, as reuniões da irmandade deveriam ser presididas pelo pároco, e quando na sua impossibilidade, pelo tesoureiro. Então, pelo menos dois cargos eram facultados aos Brancos, o de juiz e o de tesoureiro. O cargo de juiz parecia estar subordinado ao de presidente, o que significa dizer que era o padre que assumia essa condição. Juízes aparecem apenas como cargo figurativo em número de quatro (dois juízes e duas juízas), assim como os escrivães (dois escrivães e duas escrivãs). Os postos de mesários, também dobrados, davam oportunidade igual a homens e mulheres, vinte e quatro para cada sexo.
Diferentemente dos outros três estatutos, não há uma descrição pormenorizada dos cargos administrativos, “privativos dos Pretos” e menos ainda há no compromisso de 1854 um detalhamento das funções que lhes eram concernentes. A função de rei ou rainha, inscrita na rubrica por devoção, para a qual se impunha eleição anual e jóia de entrada de cinco mil réis, parecia ter muita importância e talvez ela se devesse ao fato de ser a posição mais visível na irmandade pelo destaque que assumia na vila durante a festa do orago.
Ainda sobre a composição da irmandade e sobre a constituição da mesa regedora, tomando para isso o compromisso aprovado em 1896, importa esclarecer que nesse estatuto desaparecem as funções de rei e rainha e se atribui exclusividade aos Pretos e Pardos nos cargos administrativos. Quanto à indicação de um Branco para o cargo de tesoureiro, o critério racial perdeu importância para o caráter, pois deveria assumi-lo o irmão que inspirasse confiança354. Já a presidência das reuniões, era atribuição do padre no compromisso de 1854, passou para o primeiro juiz, que na sua ausência seria substituído “pelo segundo, e faltando este, pelo thesoureiro, podendo o presidente, comparecendo o Vigário da Freguesia, se fazer representar esta”355.
À medida que os Pardos foram sendo aceitos na agremiação, a instituição antes reservada a eles, passou a ser composta de qualquer católico, independentemente de referência à cor. Poder-se-ia conjecturar que ao reunir Negros e Pardos em uma mesma associação promoveu-se seu afastamento do centro mais urbanizado, considerando que a capela de Nossa Senhora do Rosário talvez ainda estivesse localizada na periferia de Quixeramobim, como então no momento de sua criação. Enquanto que a de Nosso Senhor do Bonfim estava situado nas proximidades da igreja matriz (vide mapa 2). Resta perguntar, o que significava a integração dos Pardos? Por que e como eles foram afastados de sua agremiação? A integração foi uma iniciativa dos Pardos e Pretos ou foi uma imposição das autoridades eclesiásticas? Os elementos não me permitem avançar na resolução dessas questões, mas posso afirmar que os Pardos de algum modo já tinham estabelecido vínculos com a associação dos “Pretos”, vínculos que remontam às primeiras tentativas de constituição do patrimônio da capela do Rosário. Novamente é a provisão de 1772 que oferece as pistas:

‘Manoel Gomes de Freitas, homem Pardo, solteiro morador nessa povoação de S. António, pessoa que reconheço (…) possuidor de meia légua de terras, no riacho da Cruz no Muxinato no lugar onde tem uns currrais (…) e as está possuindo em mansa e pacífica posse sem contradição alguma, cuja meia légua de terra com as trezentas e cincoenta braças que no cercado tem, o que dava como com effeito dá, e dou dita meia légua de terras, com as tresentas e cincoenta braças para o patrimônio de uma capella, que se há de fazer de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos da povoação de Santo Antônio de Quixeramobim356.’

Ao recuperar o estrato dessa provisão quero apenas demonstrar que os Pardos estiveram presentes na conformação do patrimônio da capela de Nossa Senhora do Rosário, assim como muitos Brancos. Ademais, assegurar que mesmo tendo sido operacionalizada uma separação entre eles através das confrarias, Pardos e Brancos não deixaram de colaborar com a irmandade dos “Pretos” em muitas situações. Em última instância, foi a colaboração desses últimos que permitiu aos “irmãos pretos” a formar um patrimônio e a construir sua capela, a despeito de qualquer conflito que porventura se queira atribuir a esses diferentes grupos, à época.
De fato, a irmandade conheceria mudanças significativas no final do século XIX com o engajamento dos Pardos, mudanças que eram um reflexo dos novos tempos e que ganhavam expressão no compromisso de 1896. Esse documento ainda permite avançar no conhecimento da instituição em tempos mais recentes com o auxílio dos descendentes das famílias negras que estiveram vinculados a ela e assumindo os cargos mais importantes na mesa regedora. Por exemplo, Julião Barrozo, de quem muitos ainda falam em Quixeramobim, ficou na irmandade durante mais de vinte anos e assumiu pelo menos quatro vezes o cargo de juiz em 1896, 1899, 1918357 e 1922 e foi nesse tempo que a irmandade adquiriu muita visibilidade por ocasião das festas de Nossa Senhora do Rosário. A inserção das famílias negras na festa da padroeira da confraria será retomada adiante.
O que interessa destacar aqui é o envolvimento de membros dessas famílias negras com a confraria a partir dos compromissos uma vez que nesse período ainda funcionava como uma agremiação orientada pelo critério da cor, ainda que não exclusivamente. Por que destacá-los e não outros? Simplesmente porque a memória recupera o seu empenho em realizar as festas de Nossa Senhora e porque é isso que tem significado para aqueles que rememoram, isto é, narrar o acontecimento da festa e os protagonistas. Por outro lado, percebe-se através da lista dos irmãos inscritos na organização nos princípios do século XX que muitos outros Negros se engajaram, mas nenhum foi de maior destaque do que dois de seus componentes Julião Barrozo e Antônio Matias, este último ingressou na irmandade em 1918 e assumiu o posto de procurador em 1922.

Figura 06 : Termos de abertura do livro de matricula da confraria de Nossa Senhora do Rosário de Quixeramobim
Figura 06 : Termos de abertura do livro de matricula da confraria de Nossa Senhora do Rosário de Quixeramobim

Foto : Analúcia.S. Bezerra

Julião Barrozo respondia pelo posto de juiz desde 1896 e a ele incumbia a presidência das assembléias. Nessas, ele podia ser substituído pelo segundo juiz, pelo tesoureiro e até pelo padre quando não pudesse estar presente. A sua função era trabalhar pelo esplendor da irmandade e assistir a todas as festas e participar das procissões com o cajado dourado, símbolo distintivo da irmandade. Na capela lhe era reservado um lugar ao lado do evangelho358. Naquele ano a família Matias estava representada no posto de mesário por Matias Elias do Carmo, função que também era assumida por Conrado Barrozo de Oliveira.

Figura 07 : Página do livro de matrícula dos irmãos onde aparece o nome de membros das famílias Barrozo e Matias
Figura 07 : Página do livro de matrícula dos irmãos onde aparece o nome de membros das famílias Barrozo e Matias

Foto: Analúcia. S. Bezerra

A irmandade sob a presidência de Julião Barrozo estava completamente imersa nos princípios da romanização ao determinar que todo irmão era obrigado a “a cumprir com os preceitos de Deus e da Santa Igreja, freqüentar os sacramentos nas festas”359. Mais dois pontos nos compromissos confirmam essa filiação: a subordinação à autoridade diocesana e a proibição de maçons terem assento na organização. Não obstante essa inspiração é nesse compromisso que se pode observar uma ampliação dos direitos políticos uma vez que os irmãos “maiores de 21 annos têm direito: § 1º. De votar e ser votado, para os cargos da mesa regedora; § 2º. De propor a entrada de pessoas idôneas para a irmandade; § 3º. De requerer a mesa regedora, o que lhe parecer a bem da confraria”360.
Continuando com a análise das normas no que respeita à composição, o regulamento de 1899, intitulado de Novo Compromisso da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário, ratifica os princípios do antecedente, definindo-se como uma instituição que congrega pessoas de todos os sexos e condições, reservando a Pardos e Pretos, o seu gerenciamento. Só teria entrada na irmandade a pessoa que professasse a fé católica, com disposição para cumprir e respeitar os preceitos da Igreja Católica e freqüentar as festas da irmandade. Também que não fossem membros de sociedades secretas como a maçonaria. O compromisso classificava os irmãos em quatro categorias: ativos, remidos, empregados e não-empregados. A diferença entre os ativos e remidos é que os últimos, embora tendo todos os direitos dos primeiros, estavam desincumbidos de assumir cargos administrativos na irmandade. Já os empregados ou não-empregados “são os que occupão ou não algum cargo”361.
Há neste estatuto uma ampliação das obrigações e dos direitos dos irmãos. Os deveres contemplavam três aspectos: a) ter assiduidade nos eventos internos e externos da irmandade. Todos estavam condicionados a comparecer e a votar nas assembléias gerais e a participar das manifestações religiosas ou profanas protagonizadas pela agremiação; b) conhecer as regras de funcionamento e observar atentamente os artigos que lhes dissessem respeito, e c) portar trajes adequados nas aparições públicas. A opa era traje obrigatório para “assistir em comunidade aos actos religiosos” e aqueles que fossem usá-las deveriam se apresentar “decentemente vestidos”. Ainda no rol de obrigações, encontrava-se aquela de “aceitar o cargo para o qual foi eleito e substituir os empregados ausentes, quando a isso for convidado pelo juiz”362.
Se no tocante aos deveres, alargava-se a possibilidade de participação política, condicionada pela imposição de funções na mesa regedora quando para essa finalidade fosse eleito um membro da confraria, na lista de direitos esse ponto será retomado no sentido de definir medidas punitivas para os que recusassem assumi-las. Todos poderiam votar e serem votados, obviamente respeitando o critério da exclusividade dos Pretos e Pardos para os cargos administrativos, para os cargos eletivos e até recusá-los mediante pagamento de multa. Assim, o compromisso de 1899 previa que

‘No caso extraordinário de que todos os irmãos recusarem suas eleições, o Juiz convocará uma sessão extraordinaria para nella se elegerem os novos empregados, ficando os novatos que recusarem sujeitos a pagarem as seguintes multas: o Juiz 5 mil reis, o Escrivão, Thesoureiro e Procurador três mil reis e os mesarios dous mil reis; e os empregados por devoção pagarão metade dessas multas; não tendo direito de serem votados pela segunda vez, os que tiverem recusado n’aquella occasião363. ’

Os direitos não estavam restritos à dimensão política, mas se caracterizavam, sobretudo pelos benefícios depois da morte. Por essa razão, o compromisso assegurava que todo irmão teria após o seu falecimento quatro missas na sua intenção, que seriam celebradas de preferência na paróquia. Se houvesse algo que impossibilitasse aí a celebração, ela poderia ser realizada em qualquer lugar do estado do Ceará. Os irmãos que tivessem assumido cargos na mesa regedora, além dos rituais assegurados, seriam contemplados com mais missas por ocasião de sua morte. Por exemplo, o juiz ou juíza teria direito a seis missas, o escrivão ou escrivã, cinco e os mesários cinco.
Essas missas seriam celebradas na capela da virgem do Rosário em ocasiões especiais como no dia da purificação de Nossa Senhora, no dia da anunciação, no dia da assunção e no primeiro domingo do mês de outubro. A irmandade disporia de um féretro para conduzir o morto à sepultura que também seria feita às suas expensas. Além desse auxílio, o irmão falecido teria direito a cinco dobres de sino logo após o falecimento e no momento do enterro, ocasião em que se exigia a presença da confraria. O acompanhamento ao cemitério pela irmandade era extensivo à mulher e aos filhos.
Com as transformações que se processaram no âmbito do catolicismo, as irmandades, no final do século XIX e princípio do XX, perderam força, cedendo lugar para outras formas de organização leigas mais voltadas para a participação nos sacramentos como os apostolados da oração e os círculos marianos. Associava-se a isso, uma intervenção mais direta das autoridades eclesiásticas, limitando em muito a ação dos confrades, tanto na administração do patrimônio, acumulado ao longo de sua constituição, como em relação às festas comemorativas do orago. O controle por parte dos bispos e do clero incidiu sobremaneira nas normas de funcionamento e ele era sentido através mesmo da referência constante a essas autoridades, em especial os padres, que passaram a assumir cargos administrativos das irmandades. Tanto isso é verdade que nos compromissos de 1896 e 1899 na irmandade de Nossa Senhora do Rosário de Quixeramobim, o padre poderia assumir o papel de presidente na falta do juiz, cargo preferencialmente atribuído a um Preto ou a um Pardo.
O ofício de Julião Barrozo endereçado ao arcebispo metropolitano D. Manoel da Silva Gomes, em 1919, dá testemunho de quão sintonizados estavam os membros da mesa regedora da irmandade de Nossa Senhora do Rosário com o pedido de renovação dos estatutos, exigências que já tinham sido anunciadas no Novo Compromisso de 1899 como atesta o ofício, ao fazer referência ao artigo 77.

‘Diz Julião Barrozo de Oliveira, juiz e os demais membros da mêsa geral da irmandade de Nossa Senhora do Rosário, em número de 25, que, de acordo com o art. 77 § 4º de seus estatutos approvados pelo Exmo. Revmo. Snr Dom Joaquim José Vieira de Castro e por mercê da Santa Sé, vêm mui humilde e reverentemente offerecer a V. Ex. Revma. um exemplar dos referidos estatutos e a certidão de seus registros em cartório, para o fim de V. Ex. Revma. promover a sua reforma, que ora solicitam de acordo com o pensamento V. Ex Revma. manifestado em despacho a petição desta Irmandade, de 21 de julho de 1919364.’

O artigo refere-se ao poder da mesa regedora de reformar o compromisso quando assim lhe fosse necessário. Como essa atribuição deveria ter a anuência do bispo, Julião Barrozo o encaminhou e o fez com a assinatura dos vinte e cinco membros naquele ano. Antes de assim proceder, o juiz encaminhou um pedido de certificação ao cartório de que os estatutos estavam reconhecidos na jurisdição civil. Embora as irmandades já não tivessem a obrigação de submeter suas normas ao poder temporal, parece-me, com base nesse outro ofício, que a confraria de Nossa Senhora do Rosário de Quixeramobim, continuou a fazê-lo.

‘Miguel Fenelon, tabelião público de notas (…) do termo de Quixeramobim, comarco do mesmo nome do estado do Ceará, por nomeação legal etc certifico que se acham inscriptos no registro desta comarca os estatutos da irmandade de Nossa Senhora do Rosário desta cidade desde o dia 2 de abril do ano de mil e novecentos365. ’

Certamente, os estatutos referidos no ofício tratavam-se do Novo Compromisso de 1899. Aí o padre assumia algumas funções como aprovar a contratação do zelador da capela e a nomeação de uma comissão para os assuntos da festa, além daquela de presidir as assembléias da irmandade na falta do juiz. Essa presença passou a ser mais marcante no compromisso submetido à autoridade arquidiocesana, tendo sido sancionado definitivamente em 1923. Os cargos de juiz e de mesários permaneceram como cargos eletivos, privativos de Pretos e Pardos enquanto as funções de procurador e de escrivão passaram a ser postos de nomeação do assistente eclesiástico, diga-se o padre. Certificam os compromissos nos seus artigos dezesseis e dezoito que os

‘Artº. 16 - Cargos de juiz e mesários, que serão privativos dos irmãos Pretos ou Pardos, serão preenchidos por eleição, enquanto o de procurador e escrivão de nomeação do assistente ecclesiástico dentre os irmãos de sua imediata confiança. Artº. 18 – os cargos de nomeação do assistente serão occupados pelos nomeados enquanto convier ao assistente, não tendo portanto, taes cargos tempo determinado para o seu exercício. ’

Então, diante dessa reestruturação, ela se pronunciava como uma entidade cuja finalidade era promover “a santificação dos irmãos e o aperfeiçoamento de sua vida de cristão, por meio do exercício da piedade e de recepção dos sacramentos” e o “culto a Nossa Senhora do Rosário, com o fim de honrar Nosso Senhor Jesus Cristo de quem Ella é mãe366”. A obediência à Igreja Católica, ao bispo e ao vigário da freguesia seria o melhor meio para se conseguir tal finalidade. A irmandade passou a ser constituída de três órgãos: a autoridade diocesana, o assistente eclesiástico e a mesa regedora. Os irmãos categorizados como ativos e remidos continuavam a gozar de todos os direitos sociais. Quanto à não-obrigatoriedade de assumir cargos, característica dos irmãos remidos, estes poderiam ser nomeados para as funções de procurador e escrivão caso assim se pronunciassem o bispo e o assistente eclesiástico367.
A autoridade diocesana e o assistente eclesiástico adquiriram, com o compromisso de 1923, precedência sobre a mesa regedora e sobre a mesa geral. Na verdade, a partir daí aqueles dois órgãos granjearam grande poder. O primeiro, por exemplo, passou a acumular as atribuições de dissolver a mesa regedora e a própria associação; de nomear comissões de sindicância para apurar irregularidades e de nomear o assistente eclesiástico, dentre outras. Ao assistente eclesiástico, além de poder nomear o procurador e o escrivão, caberia o privilégio de administrar os bens patrimoniais da confraria de Nossa Senhora do Rosário; suspender resoluções da mesa; impugnar a eleição para qualquer mandato na mesa regedora; cessar direitos dos irmãos, apenas para citar algumas prerrogativas368. Ademais, a eleição para cargos da mesa ou outro qualquer só teria validade se o assistente eclesiástico estivesse presente para respaldá-la.
Poucas alterações foram observadas nos compromissos de 1899 e 1923 no que respeita a garantia dos direitos sociais dos irmãos. Bem assim, como as festas da padroeira, que não deixaram de se realizar no mês de outubro com os recursos da irmandade ainda que para angariar donativos e esmolas para sua efetivação a autorização do assistente eclesiástico se fizesse necessária. Os deveres foram mantidos, acrescentando-se dois artigos em que os irmãos ficavam obrigados a “cumprir os preceitos gerais da igreja” e a “pagar as multas pela recusa de cargos eletivos nos casos em que não couber recusa369”.
O procurador, cargo de nomeação do assistente eclesiástico e que lhe era totalmente subordinado, estava sob a direção de Antônio Matias do Carmo, conforme ofício encaminhado ao bispo D. Manuel da Silva Gomes em 1919. Note-se que nesse momento Julião Barrozo também se mantinha no cargo de juiz. A irmandade contava nessa ocasião com cento e vinte e cinco membros (vide livro de matrícula dos irmãos matriculados no anexo impresso), destacando-se as famílias negras das quais faziam parte o procurador e o juiz. Mesmo tendo sido alguns poderes da mesa transferidos para o assistente, como o de dispor do patrimônio da irmandade e do orago, o juiz permaneceu com as responsabilidades de presidir as reuniões ordinárias, mantendo a ordem e regulando os trabalhos nas reuniões. Nas festas religiosas e em outra qualquer manifestação profana da comunidade tinha que portar a opa e a vara da irmandade. Então, malgrado o controle e intervenção das autoridades religiosas, de alguma forma os Negros foram redefinindo suas inserções e ações, prosseguindo na condução da agremiação e de sua atividade talvez a mais importante, a festa de Nossa Senhora do Rosário, a respeito da qual a memória oral ainda traça alguns contornos, dos quais tratarei mais adiante.

Notes
350.

Novo compromisso da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário, da cidade de Quixeramobim, Fortaleza, Outubro/1899. Arquivado na sala de História Eclesiástica do Ceará, Seminário da Prainha, Fortaleza, 2008.

351.

Provisão do visitador Veríssimo Rodrigues Rangel na Comarca de Aquiraz, Capitania do Ceará, referente à construção da Capela de Nossa Senhora do Rosário de 1772. Localizei uma cópia manuscrita cuja autoria é desconhecida dessa provisão em meio a outros documentos da Igreja de Quixeramobim. Como se trata de um documento cartorial (escritura de doação), fiz uma busca dos originais em vão nos Livros de Notas do período no Cartório de 2º Ofício de Quixeramobim.

352.

S. M. da Vide, Das Confrarias, Capellas, e Hospitais; e da forma, que devem ter os compromissos das confrarias sugeitas à nossa Jurisdição Eclessiástica, in, Constituições primeiras do Arcebispado da Bahia/feitas, e ordenadas pelo ilustríssimo D. Sebastião Monteiro da Vide, 1707, Brasília: Senado Federal, 2007, p. 304.

353.

Compromisso da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário de Quixeramobim. Lei nº 678 de 16 de outubro de 1854, In: Leis Provinciais do Ceará 1835-1861,Fortaleza, Biblioteca Pública Menezes Pimentel, Microfilme.

354.

Compromisso da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário da freguesia de Quixeramobim, Fortaleza, Março/1896. Arquivado na sala de História Eclesiástica do Ceará, Seminário da Prainha, Fortaleza, 2008.

355.

Ibid.

356.

Provisão do visitador Veríssimo Rodrigues Rangel na Comarca de Aquiraz, Capitania do Ceará, referente à construção da Capela de Nossa Senhora do Rosário de 1772.

357.

Se não era juiz pelo menos respondia pela irmandade junto às autoridades municipais como se pode verificar no ofício endereçado ao oficial de Registro Geral, pedindo esclarecimento quanto à certificação dos compromissos da irmandade (vide ofício no anexo 1.3).

358.

Assim se reportam os compromissos sobre esse ponto: “Os Juises teem a seo cargo, além da presidencia das mêsas, trabalhar pelo esplendor da irmandade, assistir a todas as festas na Capella e condusir a vara nas festas e procissões, collocando-se na Capella do lado direito do Evangelho”. In: Compromisso da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário da freguesia de Quixeramobim, Fortaleza, Março/1896. Arquivado na sala de História Eclesiástica do Ceará, Seminário da Prainha, Fortaleza, 2008.

359.

Compromisso da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário da freguesia de Quixeramobim, Fortaleza, Março/1896. Arquivado na sala de História Eclesiástica do Ceará, Seminário da Prainha, Fortaleza, 2008.

360.

Ibid.

361.

Ibid. A remuneração e o estatuto de confrade talvez fosse o que diferenciava um empregado de um não-empregado. Exemplo de empregado seria o zelador cuja responsabilidade era cuidar e guardar os objetos da capela Por essa responsabilidade percebia um salário e não era membro da irmandade. Já o não-empregado seria um irmão com direitos e obrigações a respeitar e com uma função, por exemplo, de esmoler. Não era função de mesa e menos ainda remunerada.

362.

Compromisso da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário da freguesia de Quixeramobim, Fortaleza, Março/1896. Arquivado na sala de História Eclesiástica do Ceará, Seminário da Prainha, Fortaleza, 2008.

363.

Ibid.

364.

Ofício encaminhado pela irmandade de Nossa Senhora do Rosário de Quixeramobim ao arcebispo metropolitano D. Manoel da Silva Gomes, Quixeramobim, 1919. Documento encontrado na paróquia de Quixeramobim em 2008.

365.

Resposta ao ofício encaminhado pela irmandade de Nossa Senhora do Rosário, na pessoa de Julião Barrozo, pedindo certificação de que os estatutos da mesma estavam registrados em cartório. Documento arquivado na paróquia de Quixeramobim, consultado em 2008.

366.

Compromisso da irmandade de Nossa Senhora do Rosário, Setembro/1923. Arquivado na sala de História Eclesiástica do Ceará, Seminário da Prainha, Fortaleza, 2008.

367.

Ibid.

368.

Para um conhecimento completo das atribuições desses órgãos no compromisso de 1923, vide anexo 1.2.

369.

Compromisso da irmandade de Nossa Senhora do Rosário, Setembro/1923. Arquivado na sala de História Eclesiástica do Ceará, Seminário da Prainha, Fortaleza, 2008.