9.2 A irmandade dos Pretos: um “laboratório” de sociabilidades?

Dois documentos de meados do século XVIII atestam que os Negros já ensaiavam algumas sociabilidades em torno da devoção de Nossa Senhora do Rosário, notadamente o testamento de Antônio Dias Ferreira, de 1753, e o registro de doação feita pelo pardo Manoel Gomes de Freitas, de 1760, de que faz menção a Provisão do visitador Veríssimo Rodrigues Rangel de 1772. O primeiro documento trata da iniciativa dos “Pretos” em juntar dinheiro para construir a capela para a santa. A pergunta que se coloca para este registro é: Por que o proprietário utiliza a expressão “os Pretos” para seus escravos ao invés de simplesmente indicar o seu estatuto? Esse termo é recorrente em toda documentação quando se refere à organização confrarial. A partir dessa constatação, convém supor que algo bem elementar de culto a Nossa Senhora do Rosário já existia e que os escravos estavam em vias de formar a irmandade em torno dessa devoção. Daí porque Antônio Dias Ferreira ao se referir a esse fato, não atribui àqueles a condição de escravo, ainda que o fossem, e sim de “Pretos”.
A expressão “preto” vai ser recorrentemente atribuída a pessoas escravas ou libertas que pertenciam à irmandade de Nossa Senhora do Rosário, posteriormente acompanhada do termo “homens”. Assim, sem aventar qualquer continuidade histórica, suponho que a identificação “Homens Pretos” esteve presente em vários momentos da história da irmandade e ela foi sendo apropriada pouco a pouco pelos seus membros de modo que em 1772, e aqui recupero o segundo documento, já se constituía como uma coletividade então reconhecida como “irmãos Pretos de Nossa Senhora do Rosário”. Há nessa identificação certo dinamismo, pois inicialmente o escravo ou o liberto adquiriu o estatuto de irmão e depois o de homem370, sem necessariamente o primeiro ter perdido sua força de nomeação.
Se a escravidão impôs ao Africano e a seus descendentes o estatuto de escravo, com ele lhe roubando sua condição de pessoa, será justamente nas irmandades com a identificação “Irmãos Pretos” ou “Homens Pretos”, que ensaiarão a possibilidade de construção de uma humanidade para si, por mais paradoxal que fosse a expressão “pretos”. A irmandade lhe conferia um estatuto de pessoa, de homem até no momento em que se deixava de sê-lo com a morte, pois era para ser enterrado como homens que os confrades queriam morrer e para isso construíram suas capelas com sepulturas, compraram seus esquifes, mandaram celebrar sufrágios para os mortos. Foi como homens que eles pretenderam viver por isso organizaram suas festas, impuseram regras de convivência na irmandade, investiram-se na religião católica e reinventaram parentes e deuses.
A propósito do parentesco simbólico recriado com as irmandades, João José Reis (2009) o considera similar à experiência da “família-de-santo” dos candomblés, pois este veio a substituir “importantes funções e significações da família consangüínea desbaratada pela escravidão e dificilmente reconstituída na diáspora371”. Para Roger Bastide (1971), a confraria não foi de forma alguma um candomblé, mas se constituía em um importante espaço de “solidariedade racial que podia lhe servir de núcleo e continuar em candomblé com o cair da noite”372. Ainda conforme Reis foi nessa mesma perspectiva institucional que as irmandades tiveram penetração e que produziram outra forma de parentesco ritual com as irmandades. “Cabia à família de irmãos oferecer aos seus membros, além de um espaço de comunhão e identidade, socorro nas horas de necessidade, apoio para conquista da alforria, meios de protesto contra os abusos senhoriais e, sobretudo rituais fúnebres dignos373”. Ainda para Bastide, era nas irmandades em torno de um santo de cor que se alimentava o sentimento de uma afinidade étnica. Nesse sentido, “o parentesco leva vantagem sobre o caráter religioso, despiritualizando o santo, humanizando-o, tornando-o parecido sob todos os pontos com seus irmãos da terra374”.
O trabalho compulsório despersonalizava o Africano e seus descendentes e foi nas confrarias através do trabalho solidário e caritativo aos irmãos que puderam reconstruir sua condição humana e construir outra imagem para si. Então, seguindo o mesmo raciocínio de João José Reis, outra aproximação entre as irmandades e as manifestações religiosas afro-brasileiras contemporâneas talvez ainda seja possível, desta vez com a umbanda. Ismael Pordeus Jr. (2000), no seu estudo sobre a umbanda cearense, trouxe à tona a categoria trabalho, “historicamente considerado uma atividade não-dignificadora, associada na memória coletiva à escravatura375”, demonstrando como ela passou a ser positivada pelos umbandistas no exercício de suas atividades religiosas. Para resumir como esse processo aconteceu nada mais esclarecedor do que as palavras do seu principal interlocutor o pai-de-santo Babá Didi, do Terreiro Pai Tobias.

‘Trabalho é tudo aquilo que se executa, se faz. Então na Umbanda não foge o termo e se você abre um ritual, é um trabalho; se é um desenvolvimento, é trabalho; se você faz uma caridade, é trabalho. O outro termo que é muito utilizado é magia. O que é magia? Magia é trabalho376. ’

Ainda na mesma obra, I. Pordeus Jr. salienta que uma das principais atribuições da umbanda é a de integração por meio da festa no teatro do sagrado. Integração que adquiria plenitude no trabalho de possessão, pois é justamente aí que a umbanda “se constitui uma reação ao trabalho, que passa a ser apropriado a partir de outros referenciais com a recuperação da magia como seu complemento”377. Possessão entendida ela própria como contestação simbólica, “pela utilização de máscaras378 reconhecidas pela coletividade” e como uma forma de afirmação identitária379. No processo de construção dessa identidade, interagiam os mais diferentes referenciais culturais como a simbólica do culto católico, modificada pelas contínuas apropriações e reapropriações, o Espiritismo e as entidades mitológicas africanas. Eis o caráter sincrético da umbanda, que visivelmente estava presente nas irmandades negras.
Se o sincretismo é algo que aproxima as irmandades das práticas religiosas umbandistas, seria o caso de pensar em que ordem de sincretismo as associações leigas católicas e a umbanda se inscreviam. Para Bastide (1971) o sincretismo das confrarias é do tipo planejado, pois ele consistiu em uma política da Igreja Católica em “reunir no seu seio e à sombra da Cruz, os Africanos ou os seus descendentes que ela procurava incorporar”380. Contestando um pouco a suposta passividade dos Africanos e seus descendentes no processo de sincretização, convêm lembrar aquilo que I. Pordeus Jr atribuiu à possessão, ainda que esse evento não fosse vivenciado nas irmandades, um ritual de contestação simbólica. Essa contestação estava presente nos Negros e mulatos reunidos na irmandade ao introduzir práticas culturais cujos referentes estavam inscritos em tradição outra que a ocidental, ainda que ressignificando-as. Nesse sentido, eles foram também agentes desse sincretismo. Sobre esse aspecto ainda é o próprio Bastide (1971) que fornece as pistas, ao dizer que nas confrarias toleravam-se
os costumes africanos que podem adaptar-se ao catolicismo, bem entendido os que são reinterpretados e recebem novo significado. É o caso, por exemplo, das realezas nacionais ou das chefias tribais. A tradição africana da sucessão hereditária dos reis é substituída nas confrarias pelo sistema eletivo. Os reis das confrarias passam a ser eleitos pelos seus membros; isso possibilita maior obediência de seus súditos e permite-lhes servir como intermediários entre os senhores brancos e seus escravos, constituindo desse modo canais de controle do Branco sobre a massa de pessoas de cor381.
Prefiro pensar as irmandades mais como meio de contestação simbólica e menos como canal de controle dos senhores sobre os Negros. Se as irmandades foram instrumentos de manipulação do Africano e seus descendentes, não se pode esquecer que foi o Negro que manipulou todo um sistema religioso em seu favor, construindo as bases do que veio a ser observado mais tarde em outras sociabilidades negras. As irmandades negras foram uma primeira experiência ou “laboratório” de contestação no plano simbólico de toda uma tradição ocidental. Poder-se ia supor que elas reinventaram o catolicismo ao atribuir-lhe um sentido de um saber-fazer economia, política e acima de tudo recriar uma vida coletiva, (des)essencialiando-o assim do seu caráter meramente religioso ou divino. Dito em outros termos, as confrarias negras dessacralizaram o catolicismo, chamando para ele uma dimensão política, econômica, social e cultural. Essa interpretação está muito próxima da compreensão de Roger Bastide (1971) para quem

‘O catolicismo, ligando-se à religião africana, desnaturou-a, é preciso dizer que, pelo menos no início, foi a religião africana que desvirtuou o catolicismo. Aceitando o culto dos santos, mas tirando-lhes parte de seu significado, para dele não considerar senão o que poderia interessar a uma economia de troca, de dotes e contradotes, de trocas sem investimentos celestes382.’
Notes
370.

P. Levi (1958) ao narrar os fatos vividos no campo de concentração abre o livro Se isto é um homem, levantando uma inquietação existencial e moral ao dizer: “Considerai se isso é um homem. Quem trabalha na lama. Quem não conhece paz. Quem luta por meio pão. Quem morre por um sim ou por um não”. Sobre a escravidão poder-se-ia fazer a mesma consideração uma vez que as condições impostas ao Africano e seus descendentes foram igualmente desumanizantes ao ponto de ser transformado na propriedade de outrem. O fato é que diferentemente da escravidão, a única possibilidade de escape do campo, como diz Levi, era a chaminé. No campo de concentração não havia a possibilidade de se reinventar como ser humano, não havia a possibilidade de reconquistar a liberdade perdida e nem mesmo a possibilidade de aprender a construí-la. Tampouco isso estava garantido com a escravidão negra, mas com as organizações permitidas (até mesmo as construídas como os quilombos) o Negro pode ensaiar novos sentidos de liberdade e de se reinventar como ser humano.

371.

J. J. Reis, op. cit., 2009, p. 55.

372.

R. Bastide, As religiões africanas no Brasil, São Paulo: Pioneira, 1971, p. 79.

373.

J. J. Reis, op. cit., 2009, p. 55.

374.

R. Bastide, op. cit., 1971, p. 167.

375.

I. Pordeus Junior, Magia e Trabalho: a representação do trabalho na macumba, São Paulo: USP, 2000, p. 62.

376.

I. Pordeus Junior, op. cit., p. 62.

377.

Ibid, p. 139.

378.

Enfatiza I. Pordeus Jr, op. cit, 2000, “Quando o indivíduo assume uma “personagem”, uma “máscara”, ele se identifica, no quadro dos rituais específicos, com essa personagem, com essa máscara, por sua vez, legitimada pelo grupo. Ele não é possuído por qualquer espírito, mas pelos reconhecidos pelo grupo praticante da religião”.

379.

Ibid, p.140.

380.

R. Bastide, As religiões africanas no Brasil, São Paulo: Pioneira, 1971, p. 78.

381.

R. Bastide, op. cit., p. 78.

382.

Ibid, p. 202.