9.3 A construção da capela

O culto de Nossa Senhora do Rosário em Quixeramobim teria se iniciado com os escravos angolanos de Antônio Dias Ferreira, pois conforme o seu testamento, deixado em cartório em 1753 “os Pretos têm sua imaje denossa Senhora do Rozario com seu hornamento dedamasco branco ehú Callis compatena e culher de prata, q’ he hú que comprei a Antônio Francisco”383. Quanto à irmandade, Marum Simão (1996), baseando-se nesse mesmo documento, informa que “O embrião dessa (…) encontra-se no início da instalação da fazenda de Santo Antônio do Boqueirão, pois tanto esse embrião como a irmandade que daí adveio pertenceram aos Negros cativos e posteriormente aos libertos que conseguiram alforria e aos que se tornaram livres por força da Lei Áurea”384.
Muitos indícios apontam que a confraria já estava organizada antes da construção da capela que, conforme indicação da data ainda visível no seu frontispício teria sido concluida em 1783. Por outro lado, foi como associação dos “irmãos Pretos” de Nossa Senhora do Rosário que alguns começaram a se movimentar no sentido de angariar os recursos necessários para a construção da capela e para a formação do patrimônio da mesma como está registrado na provisão do visitador Veríssimo Rodrigues Rangel de 1772.
Nesse sentido, o desejo de construir a capela de Nossa Senhora do Rosário teria ganhado impulso com os escravos da fazenda de Santo Antônio do Boqueirão, pois foram eles que começaram a reunir os primeiros recursos como deixou declarado Antônio Dias Ferreira385 que “ tudo o que tenho comprado, com o diro dos Pretos esta asentado em hú livro que para isso fis enelle se vera, o que resto, que ficara para se pagar aobra da Igreja adonde se há delevantar hú altar, para asenhora do Rozario eselhecomsigarão, vinte ecoatro sepulturas, que tudo pagarão (...)386”. Todos esses indícios permitem entender que foram os escravos angolanos a principiarem o culto a Nossa Senhora do Rosário em Quixeramobim, desencadeando na constituição da irmandade e na posterior construção de capela.
Outros indícios me levam ainda a supor que a irmandade de Nossa Senhora do Rosário teria sido instalada, inicialmente, na igreja matriz de Santo Antônio onde funcionou a irmandade do Santíssimo Sacramento cujos compromissos foram reconhecidos em 1813. A doação de terras feita pelo responsável do patrimônio de Santo Antônio, terras então doadas por Antônio Dias Ferreira e repassadas aos “irmãos Pretos” de Nossa Senhora do Rosário, revela a relação da irmandade com a matriz e ademais que os Negros continuaram organizando recursos para a construção de uma própria capela. É o que revela o estrato da provisão a seguir:

‘Digo eu João Francisco Vieira, com administrador dos bens patrimoniais do glorioso S. Antônio (…) que entre os mais bens que administro do dito santo, de que estou de mansa e pacífica posse, é uma légua de terras do patrimônio do dito santo, sita nesta mesma povoação, que houve por doação, que lhe fez ao dito glorioso santo, o capitão Antônio Dias Ferreira, (…) de cuja meia legoa de terras, dou como administrador do dito santo, duzentas braças em quadro, no alto defronte da Matriz, da parte nascente, aos irmãos Pretos de Nossa Senhora do Rosário para effeito de nas ditas braças, poderem erigir a capella que pretendem, da mãe de Deus do Rosário, afim de ser louvada e engradecida em sua igreja387. ’

Para Ismael Pordeus (1955, 1956), o testamento de Antônio Dias Ferreira, - pelo historiador transcrito em 1962 na Revista do Instituto do Ceará - dá testemunho de que os Pretos tinham imagem de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos, alfaias e outros objetos de cultos na primitiva capela de Santo Antônio. “Se tal ocorria no primitivo templo, é de admitir-se aquela imagem na novel Matriz, mandada construir pelo Português Ferreira e cujos trabalhos principais chegaram ao seu término em 1770, treze anos antes de iniciar-se fora da povoação, a igreja do Rosário”.

Figura 08 : Capela de Nossa Senhora do Rosário
Figura 08 : Capela de Nossa Senhora do Rosário

Foto : Analucia S. Bezerra, 2005

Malgrado as diferenças hierárquicas entre elas, em uma mesma igreja poderiam funcionar várias irmandades, “que veneravam seus santos patronos em altares laterais”388. Como uma das finalidades dessas instituições era de construir capela em homenagem ao santo de sua devoção, onde pudessem realizar seus ofícios de devoção e reuniões, “os irmãos Pretos” não mediram esforços e lutaram por mais de trinta anos, a se contar a partir de 1753 quando Antônio Dias Ferreira fez o seu testamento, dando notícia do que seus escravos já tinham acumulado para construir a capela de Nossa Senhora do Rosário em Quixeramobim, com vinte quatro sepulturas.
Certamente, foi como confraria que puderam ter a força para concretizar esse projeto, que teve grande impulso em 1772 quando adquiriram o lugar para implantar os alicerces da capela, que conforme a permissão do visitador deveria ser “de pedra e cal, na forma que determina nossa constituição, com a certidão do reverendo paracho, jurado, de que está capaz de nela se fazerem os offícios divinos”389. Como bem indicou Ismael Pordeus (1956) sua construção se deu fora da povoação de Quixeramobim, não chegando urbanização nas suas imediações senão nos finais do século XIX. É ainda Pordeus quem dá subsísidio para este raciocionio ao recuperar uma prescrição legislativa da câmara de Campo Maior, a qual deteminava “que de hora emdiante, dito Fiscal devêra unicamente tratar da limpeza dentro das ruas desta Villa, e não do Patio da Igreja de Nossa Senhora do Rozario”.
Para o autor, essa prescrição indicaria que a capela do Rosário até 1849 ainda continuava fora das ruas da vila. Concordo com essa afirmação (vide mapa 1), mas no meu entender caberia perguntar por que o pátio de Nossa Senhora do Rosário não poderia ser zelado pelos poderes políticos locais? Ora, se o fiscal, responsável pela limpeza das ruas da vila se estendia até o local, provavelmente era porque a irmandade não estava em condições de remunerar alguém para esse serviço. Conforme se pode verificar no seu livro de despesas e receitas, naquele ano as receitas foram inferiores às despesas em cerca de 40%, defasagem que já perdurava por mais de cinco anos. Essa situação vai se modificar sensivelmente a partir de 1951 com os “rendimentos da irmandade”390 e a venda de alguns animais. Atravessada a crise financeira, não somente a limpeza do pátio veio a figurar nas despesas como outros dispêndios, “por feitio e por dourar a cruz da irmandade”391, insígnia característica da associação, firmada no compromisso de 1854.
Os compromissos analisados dão testemunho de que a irmandade esteve atuante e fazendo suas reuniões no consistório da capela no século XIX, tempo em que ganhou alguns corredores e estava equipada com uma grande imagem de Nossa Senhora do Rosário. Ainda possuía ricas alfaias como calix, turíbulo e coroas em prata, missais, toalhas de altar, rosários em ouro, cortinas de damasco encarnado, tapete e outros ornamentos. Além da grande imagem do orago, na capela ainda se encontrava uma outra pequena, provavelmente a que pertencera aos escravos da fazenda de Santo Antônio do Boqueirão, para os quais o culto e o projeto de construção da capela ganharam sentido. Outras imagens compunham o panteão do Rosário como a de Cristo crucificado e do Menino Deus. Além do mais possuía um confessionário, um esquife próprio e mais de quarenta castiçais.

Mapa 04 : Topografia do Religioso
Mapa 04 : Topografia do Religioso

Fonte: Elaborado pelo Consórcio Fausto Nilo, Espaço Plano, com bane no Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano de Quixeramobim.

Ainda que de forma difusa os narradores de Quixeramobim trazem traz uma interpretação do evento de fundação da capela, remontando-o ao tempo da escravidão. Para Dora Monteiro, 99 anos, não há qualquer dúvida que foram os “Pretos” que a construíram. A sua narrativa confirma e sintetiza aquilo que os documentos registraram e o que alguns historiadores locais afirmaram.

‘Tudo que eu sei da Igreja de Rosário é que ela e todas as igrejas de rosário, do Icó, toda cidade tem, porque em todo o Nordeste tinha escravo, né? Os escravos eram os construtores das igrejas, a devoção deles era com Nossa Senhora do Rosário, faziam igrejas, fizeram a daqui. Mas é apenas isso, eu sei que eles fizeram, depois, quando foi em [18]84392, acabaram com os escravos, né? Eles se tornaram livre, e a igreja continuou, e depois eu não sei da construção dela, ela tem, eu não tenho gravado, mas se a gente passar lá na, lá em frente da igreja aí vê uma data, né, lá encima a data que ela foi construída393. ’

Os escravos, construtores das igrejas, se tornaram livres, mas a igreja continuou, diz Dora Monteiro. Nos fios mais recentes dessa trama, no século XX, atuaram as famílias negras Barrozo, Matias, Teles, e tantas outras que a memória de Julião Barrozo Filho, 82 anos, selecionou, pois para ele

‘A Igreja do Rosário entrou pelos meus pais. Era Julião Barrozo, apesar que eu não conheci meus pais, mas sobre a história que a minha mãe sempre dizia, e era muito festejado, e ele é um dos cabeça. Tinha ele, tinha o Conrado, esse Conrado é irmão dele. E esse aí já morreu. Agora essa, eu conheço também, a família do João Teles, e tinha a família que também fazia parte da Igreja do Rosário, Antônio Magalhães, dona Carminha Alexandre, tinha a família do Lamário394. ’

Julião Barrozo Filho não recupera o tempo em que surgiu o embrião e sim o tempo em que seu pai esteve à frente conduzindo a devoção e os festejos. Traz também a memória o nome de Conrado Barrozo, João Teles, nomes que aparecem na lista dos irmãos entre os anos de 1918 a 1923. Complementa Dora Monteiro “Eram os Pretos que tomavam conta. Eram eles mais que zelavam e o povo das famílias, né? Nesse tempo os homens daqui era muito pouco, homem de importância, tomavam conta. Era muito bonita a Igreja do Rosário, a Festa do Rosário395”.

Notes
383.

Este testamento foi transcrito do original, que se encontra no cartório de 2º ofício de Quixeramobim, pelo historiador Ismael Pordeus e publicado como Documentário, In: Revista do Instituto do Ceará. Fortaleza,1962, 253-258.

384.

M. Simão, Quixeramobim - recompondo a história, Fortaleza, 1996.

385.

Referência importante sobre Antônio Dias Ferreira é que teria sido ele grande impulsionador da religião católica em Quixeramobim, dedicando-se pessoalmente e investindo seus próprios recursos na construção da igreja matriz de Santo Antônio e da capela do Rosário.

386.

I.Pordeus, “Documentário”, in, Revista do Instituto do Ceará. Fortaleza,1962, 253-258.

387.

Provisão do visitador Veríssimo Rodrigues Rangel na Comarca de Aquiraz, Capitania do Ceará, referente à construção da Capela de Nossa Senhora do Rosário de 1772.

388.

J. J. Reis, A morte é uma festa, São Paulo: Companhia da Letras, 2009, p. 49.

389.

Provisão do visitador Veríssimo Rodrigues Rangel na Comarca de Aquiraz, Capitania do Ceará, referente à construção da Capela de Nossa Senhora do Rosário de 1772.

390.

Tratava-se das contribuições de entrada e as anuidades dos irmãos.

391.

Livro para receita e despesa do thesoureiro da confraria de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos, freguesia de Quixeramobim, 1833-1887. Arquivado na paróquia de Quixeramobim.

392.

Dora Monteiro recupera o ano em que foi extinta a escravidão no Ceará.

393.

A interlocutora Dora Monteiro, 99 anos, deu-me a sua versão em 2007 na sua residência, em Quixeramobim.

394.

A narrativa de Julião Barrozo (o filho) foi gravada em 2007, na sua residência em Quixeramobim.

395.

Trecho da narrativa de Julião Barrozo (o filho).