9.4 A estrutura financeira: a formação do patrimônio

A irmandade recebeu a partir de 1760 importantes doações para conformar o patrimônio da capela de Nossa Senhora do Rosário, condição sem a qual não poderia realizar a construção. A primeira doação em vista dessa finalidade foi feita pelo pardo Manoel Gomes de Freitas, como já me referi. “Meia légua de terras, no riacho da cruz e meia de largura para cada banda, e mais trezentas e cinqüenta braças no riacho do Muxinato no lugar onde têm uns currais, chamado são Mateus”396. Ainda em 1760, a irmandade recebeu de moradores de Quixeramobim, mais precisamente de um grupo de quinze pessoas, que se declaravam analfabetas, para o patrimônio da capela, “dez poltros e um cavalo, cinqüenta vaca, seis touros e uma morada de casa dentro da povoação”397. Depois de tomada a posse de todos esses bens, em 1772, o então tesoureiro da associação, Manoel Álvares Ferreira pediu permissão ao visitador para iniciar a construção, no que este respondeu favoravelmente nos termos seguintes:

‘Vistos estes autos de patrimônio, que os Homens Pretos da irmandade de Nossa Senhora do Rosário desta freguesia de S. Antônio de Quixeramobim, constituem para dote da capela, que pretendem erigir nesta dita freguesia, como pelos depoimentos avaliadores e mais testemunhas constão ter as propriedade doadas, sufficiente valor e rendimento para congrua, sustentação da dita Capella e também de manifestar dos mesmos autos, interviremas mais circunstâncias precisas e necessárias para validade do dito patrimônio (…) portanto o julgo por válido, firme e canônico, e por tal o aprovo interpondo-lhe minha autoridade e decreto judicial. ’

As doações para a Nossa Senhora do Rosário dos Pretos não cessaram mesmo depois de terminada a capela. Desta vez foi o proprietário de escravos Custódio Ramos Mendes, que em 1787, concedeu umas braças de terras, alargando assim o espaço onde ela se encontrava estabelecida.

‘Custodio Ramos Mendes morador na sua fazenda da felicidade (…) em prezença das testemunhas abaixo nomeadas, e assignadas que elle entre os mais bens de raiz De raiz que pusuhia de que estava de mansa e pacifica posse hera bem hum quarto de terras de comprido, [que ] (…) duava como com effeito duado tem de hoje para todo o sempre a Nossa Senhora do Rozario dos Pretos desta Povoação de Quixeramobim trinta braças de terras fazendo pião a mesma capella da dita Senhora com quinze brassas para cada banda ficando a Capella em meio da dita terra duada, e da outra como aceitante o administradorda dita Senhora do Rozario dos Pretos desta Povoação de Quixeramobim o Tenente General Vicente Alvares da Fonceca morador na sua fazenda Santa Urçula398.’

Supondo que as quinze pessoas que fizeram vultosa doação para constituir o patrimônio fossem confrades, não se pode esquecer que Brancos, proprietários de escravos, enfim os mais abastados de Quixeramobim, também por devoção a Nossa Senhora do Rosário, transferiram parte de seus bens para o patrimônio da mesma e da irmandade. Essa seria uma primeira suposição a extrair da iniciativa de Custódio Ramos Mendes399. Ainda a partir desse registro de escritura de doação, poder-se-ia supor que os “Pretos” não se constituíam, naquela ocasião, como responsáveis pela administração da capela do Rosário, uma vez que Custódio Ramos fez a transferência para a pessoa do administrador Tenente General Vicente Álvares da Fonseca.
Contudo, a efeméride datada de 1755, relativa à então vila de Quixeramobim, dando testemunho da existência da irmandade já naquele ano, também noticiava a capacidade da associação dos “Pretos” em torno da devoção a Nossa Senhora do Rosário em detrimento da dispersão dos Brancos em várias outras instituições, pois. “De todas essas instituições religiosas, nenhuma teve existência mais congregadora que a de Nossa Senhora do Rosário. Enquanto os Brancos se dispersavam por todas elas, os Pretos ficavam adstritos à do Rosário, cuja administração lhes era privativa”400.
Já quanto à administração da capela do orago, nos seus primórdios parece ter ficado sob a responsabilidade de não-Negros, responsabilidade que se restringia a tomar conta do patrimônio. Ao que tudo indica essa situação perdurou mesmo quando a confraria teve seus estatutos reconhecidos, em 1854, quando se atribuiu ao tesoureiro a responsabilidade de administrar a capela, cargo que poderia incidir sobre um Branco ou um Pardo, ou sobre outro qualquer por devoção401. Outrossim, no livro de receitas e despesas, referente aos anos de 1833 a 1876, essa condição não se modificou, pois o vigário Bento Antônio Fernandes figurou como administrador dos bens patrimoniais da capela, inventariando-os a cada ano, durante os cinco anos que esteve nessa função.
Conforme se pode verificar com a leitura do livro de receitas e despesas, a capela de Nossa Senhora do Rosário, nos anos referidos, possuía muitos bens doados, inclusive permanecia com parte da terra doada por Custódio Ramos Mendes nas imediações onde se encontrava edificada a capela. “Declarou mais o Reverendo Administrador possuir Nossa Senhora meia légua de terras no lugar denominado Rozario onde se achão os mesmos Bens situados. Declarou mais possuir a mesma Senhora no lugar onde se acha edificada a mesma Capella trinta a quarenta braças de terra (...) mais ou menos402.
Um quadro, cruzando informações constantes na Provisão de 1772 e no livro de receitas, permite perceber a evolução do patrimônio da irmandade em bens de raiz desde quando se iniciou sua formação com objetivo de construir a capela até os anos de 1838.

Quadro 17: Evolução do patrimônio de Nossa Senhora do Rosário
1760-1772 Bens de raiz 1833-1838
½ légua de terra em quadrado riacho da Cruz;
350 braças de terra no riacho Muxinato, sítio São Mateus;
200 braças de terra onde estava edificada a capela;

Terra
½ légua na fazenda Rosário;
350 braças de terra no sítio São Mateus;
200 braças onde estava edificada a capela;
40 braças de terra nas proximidades da capela;
Pequeno sítio na serra da Preguiça;
15 potros;
5 cavalo;
70 vacas;
6 touros;

Animais

21 bestas;
80 vacas;
31 novilhos;
16 garrotes;
24 bois;
36 bezerros;
9 cavalos;
1 casa Imóveis  

Fonte: Livro de Receitas e Despesas do Tesoureiro da Confraria de Nossa Senhora do Rosário, dos Homens Pretos. Iniciado em 1833 e fechado em 1887.

Embora não seja possível localizar essas propriedades de terras, alguns documentos atestam que a fazenda do Rosário estava localizada na serra de Santa Maria e que essa meia légua de terra nada era mais do que a terra doada pelo pardo Manoel Gomes de Freitas, em 1760 (vide registros de foro no anexo CD). Essa fazenda abrigava todos os gados muares e vacuns, sendo das rendas provenientes de aforamentos que a irmandade mantinha os serviços aos confrades e o zelo da capela. Na mesma serra a irmandade ainda administrava outro sítio, denominado Boa Vista, do patrimônio de Nossa Senhora do Rosário (vide mapa 2). Além dessas posses, a associação possuía alguns terrenos nas imediações da capela, na sede da freguesia, em regime de contato de enfiteuse. Desde 1799 o regime de aforamento404 das terras patrimoniais da capela vinha sendo praticado e foi levado a efeito durante todo o século XIX, atravessando as primeiras décadas do XX. Conforme certificou a câmara municipal de Quixeramobim em 1899, Elias Cerylho do Carmo, então procurador da irmandade, assinou o contrato de foro do sítio Rosário, localizado na serra de Santa Maria, em 1850 pelo valor de 800 réis. No mesmo registro ainda certificou que em 1799 o sítio Boa Vista tinha sido aforado por 800 réis a Manoel Jacinto Pimentel.
Mesmo estando o patrimônio ora sob a responsabilidade do vigário ou de um administrador não-Negro, não se desconsidera o controle que os “Pretos” tiveram na administração desses bens e da própria irmandade. Paradoxalmente, quando houve mais controle da igreja sobre as irmandade é que em Quixeramobim vai se verificar um retorno dos “Pretos”, nas pessoas de Julião Barrozo e Antônio Matias e outros membros das famílias negras, na administração dos bens patrimoniais da padroeira da irmandade. Esses nomes vão aparecer cada vez mais nos contratos de enfiteuse entre a irmandade e particulares que fazem uso das propriedades de Nossa Senhora do Rosário a partir do final do século XIX. Nesse sentido, estavam eles a frente dos interesses materiais da padroeira e provavelmente se encarregando pessoalmente do zelo dessas propriedades e tirando delas o sustento de suas famílias.
A memória recuperada de José Borges ou Dedim, 78 anos, parente de antigos membros da irmandade, realçou justamente o envolvimento pessoal que teve com o sítio do Rosário, localizado na serra de Santa Maria. Além de narrar o tempo em que caçava e plantava na terra de Nossa Senhora do Rosário, recobrou o tempo quando o sítio estava sob a responsabilidade de Julião Barroso. Esclareceu ainda em sua entrevista que por ocasião da morte de Julião Barroso, em 1925, o seu filho mais velho, José Barrozo, assumiu a responsabilidade de administrar o terreno de Nossa Senhora do Rosário. Note-se que José Barrozo não aparece como membro da irmandade na lista de irmãos entre os anos de 1918 e 1923, porém o encargo de administrar os bens da capela do Rosário lhe foi transmitido.

‘A serra é grande, conhecida como serra de Santa Maria, só por causa de um pedacinho de terra que foi dado para Nossa Senhora do Rosário. (…) Quem tomava de conta era Julião Barrozo. Os Barrozos, tinha o finado Julião Barrozo, aí ficou José Barrozo, ficou o mais velho que José Barrozo, que criou Julião, Vitória, Raimundo, a família todinha foi ele. Nessa época não existia compra, você chegava assim num terreno e se apossava, aí pagava só foro, esses terrenos antigos era tudo aforado (…). Era um terreno pequeno, mas rico. Rico sim, porque a gente produzia, tudo que se plantava tinha. (…). O finado Julião era encarregado e a gente trabalhava lá405. ’

Dedim deixa a entender que durante algum tempo trabalhou na terra pertencente a Nossa Senhora do Rosário, quando estava sob a responsabilidade dos Barrozos. Embora não se tratando de um aforamento, como faz questão de mencionar como se dava a posse das terras, deixa a entender que eles tinham o domínio útil da propriedade ou pelo menos se comportavam como se o tivesse, pois eles próprios usufruíam dos recursos naturais e faziam suas lavouras. Além de ser o lugar de onde tiraram recursos para a sobrevivência, havia provavelmente uma vinculação simbólica ao sítio do Rosário, porque os antigos confrades (estou me referindo a um tempo anterior ao que Dedim narrou), de lá partiam em cortejo com seu rei e rainha coroados e entravam triunfalmente na vila. Esse ponto ainda será retomado adiante.

Notes
396.

Provisão do visitador Veríssimo Rodrigues Rangel na Comarca de Aquiraz, Capitania do Ceará, referente à construção da Capela de Nossa Senhora do Rosário de 1772.

397.

Ibid.

398.

Livro de Notas, n. 10. De 2 de maio de 1786 a 18 de abril de 1788. Cartório de 2º. Ofício Queiroz Rocha, Quixeramobim.

399.

Identifiquei nos documentos consultados em Quixeramobim, mais precisamente nos registros de casamento e assentos de batismo, pelo menos onze escravos de propriedade de Custódio Ramos Mendes. A relação desse proprietário com os escravos parece-me que ia além da condição de senhor, pois muitas vezes aparece assumindo o papel de padrinho de escravos ou de filhos de escravos.

400.

I. Pordeus, op. cit., 1956, 80.

401.

Compromisso da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário de Quixeramobim. Lei nº 678 de 16 de outubro de 1854, In: Leis Provinciais do Ceará 1835-1861,Fortaleza, Biblioteca Pública Menezes Pimentel, Microfilme.

402.

Livro de Receitas e Despesas do Tesoureiro da Confraria de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos. Iniciado em 1833 e fechado em 1887.

403.

Essa descrição não reflete a realidade patrimonial da irmandade quando foi feita a última descrição dos bens pertencentes à irmandade, em 1876, pelo então administrador Antônio Augusto de Oliveira Castro. O levantamento feito na ocasião não segue os critérios dos anos precedentes, detendo-se mais na descrição das alfaias, móveis e paramentos da irmandade e prescindindo da discriminação dos bens de raiz que seguramente ainda possuía.

404.

Aforamento significava possibilitar o domínio útil de um imóvel ou terreno em troca de pagamento módico em dinheiro ou em bens produzidos. Conforme folheto de autoria desconhecida (1923) encontrado em meio a outros papéis da irmandade, “o aforamento é perpetuo e por ele o proprietário de um immovel attribui a outrem o domínio útil, mediante pagamento de uma pensão certa e invariável. O foreiro não pode vender o praso, nem dal-o em pagamento sem prévio aviso ao senhorio. Este aviso tem por fim permitir que este exerça o seu direito de opção pelo preço e nas mesmas condições da alienação”. In: Emphyteuse e locação das terras patrimoniais. Fortaleza: Typ. Comercial, 1923, p. 3.

405.

Narração gravada em 2007 na sua residência.