9.6 A festa e a coroação dos Reis

Os documentos dão testemunho da atuação dos Barrozos e dos Matias na organização e funcionamento da irmandade, a partir do final do século XIX enquanto a memória revela os contornos da principal sociabilidade, a festa da padroeira, momento de expressão e de visibilidade para essas famílias, tema que será abordado nos próximos capítulos. Retomando os compromissos e o livro de despesas e receitas para tratar o tema da festa, é possível uma descrição do que a irmandade despendia para homenagear o orago e os produtos adquiridos para tornar a festa mais suntuosa e cheia de esplendor. Suntuosidade não era o que faltava na festa de Nossa Senhora do Rosário em Quixeramobim a considerar os investimentos em papel dourado, enfeites de andor, douramento da cruz. Tudo isso parece ser compatível com uma visão barroca de catolicismo, como caracteriza João José Reis (2009) as festas realizadas pelas irmandades. No seu entender

‘Nessa visão barroca de catolicismo, o santo não se contenta com a prece individual. Sua intercessão será tão mais eficaz quanto maior for a capacidade dos indivíduos de se unirem para homenageá-lo de maneira espetacular. Para receber força do santo, deve o devoto fortalecê-lo com as festas em seu louvor, festas que representam exatamente um ritual de intercâmbio de energias entre homens e divindades412. ’

Conquanto prescindindo de um maior detalhamento, os compromissos não deixaram de definir que a cada ano seria realizada a festa de Nossa Senhora do Rosário. Evento para o qual se empenharia a irmandade para cobrir os gastos requeridos. As atividades comemorativas aconteciam no mês de dezembro, iniciando-se no dia 18 e terminando no dia 26 com a celebração de uma missa. No dia 27 de dezembro a irmandade sairia em procissão, momento em que haveria a exposição do Santíssimo Sacramento. A julgar pelos compromissos de 1899 e 1923, pouco foi alterado das atividades comemorativas ao longo dos anos, salvo a data que passou para o mês de outubro.
A mesa regedora deliberava acerca das festas e tinha a obrigação de fazê-la “com o esplendor compatível com as forças da Confraria e quando o estado de sua receita permitir as festas de Nossa Senhora do Rosário, com procissão”413. Nessa ocasião, os irmãos deveriam estar vestidos de opas e o juiz com todas as insígnias de seu cargo, assumindo seu lugar de destaque na hora das novenas e missas. A julgar pelos gastos com panos de tafetá entre os anos de 1933 e 1938 constantes no livro de receitas e despesas, os irmãos ganhavam vestimentas novas. A capela também ganhava alfaias novas e reparações. Observa-se que o esplendor estava também relacionado com a animação e com o barulho que esta poderia produzir. Daí porque as despesas com música e fogos ocupavam boa parte das receitas anuais da irmandade do Rosário. Essa preocupação estava completamente de acordo com uma visão barroca de religião, como já foi assinalado.
A festa do orago da irmandade dimensionava a economia local, pois dava possibilidade de emprego esporádico a pedreiros, pintores, serventes, músicos e ainda dinamizava o comércio através da aquisição de fogos, cera, vela e outros produtos requisitados para a circunstância festiva. Boa parte das receitas era empregada na festa, especialmente com fogos, música, papel dourado, azeite e cera. Na verdade, o montante gasto nos ornamentos chegava a ser superior aos ordenados do sacristão e do padre contratado para o evento.
A irmandade tinha que realizar a festa a cada ano assim como participar de outros eventos religiosos católicos como a Semana Santa e da festa do padroeiro da freguesia, Santo Antônio. Aqui cabe destacar que desde os primórdios os confrades da irmandade do Rosário mantiveram relações muitos estreitas com a igreja matriz e não é de estranhar que incluísse nas suas normas, a obrigação de estar presente quando essa festa ocorresse. Para essa ocasião todos os irmãos deveriam estar de opas. O regulamento impõe assim essa regra:

‘São obrigados todos os irmãos, que se acharem no lugar, a assistir de opa a todos os actos de religião e piedade em que funcionar a irmandade em sua capella, e bem assim à festa de Santo Antônio, padroeira desta freguezia e a da Semana Santa, às procissões e mais actos em que for precisa sua assistência, para cujo fim serão convocados pelo thesoureiro414. ’

No prolongamento da festa da padroeira, em janeiro, procedia-se à eleição e a coroação do rei e da rainha. O reinado duraria um ano e para se ter acesso ao cargo deveria pagar a jóia de cinco mil réis. O compromisso de 1854, embora seja o único a fazer referência à escolha dos reis, não atribui poderes ao cargo, o que não significa que não tivesse. Apesar disso, era a coroação e o cortejo, quando saia pelas ruas, um momento de grande visibilidade para os “Pretos” em vista da suntuosidade e comoção provocada. As descrições que seguem dão uma dimensão da importância dessa instituição para a comunidade negra.

‘Nesse período do ano celebrava-se com grande pompa o Dia dos Reis, quando eram eleitos rei e rainha. A escolha do rei sempre recaía na pessoa do Negro que gozava de mais influência em Quixeramobim. Aos eleitos colocavam sobre suas cabeças suas coroas. O rei impunha o cetro e trazia preso ao pescoço um lindo manto e, acompanhado da rainha, seguido por um cortejo, dirigia-se para a Igreja do Rosário, onde era recebido pelo vigário e por grande multidão, sob o rufar de caixa de guerra, repicar de sinos, pipocar de foguetes e estrondo da tradicional roqueira415. ’

Para a irmandade do Rosário dos Pretos de Quixeramobim essa festa parecia ser um momento de inversão de hierarquias e também de visibilidade para os Negros. Pela descrição, a igreja seria o lugar para onde os reis coroados partiam para supostamente receberem a benção do padre que lá os esperavam. Aqui está o grande momento de inversão de hierarquias, ou seja, os subordinados passavam a ser reconhecidos como realezas. Nesse sentido, a festa dos reis negros em toda sua expressão ritual simbólica – música, fogos, cortejo - expressa “conflitos de natureza hierárquica em uma espécie de carnavalização das relações sociais. Não somente expressavam tensões sociais, mas constituíam rituais de inversão hierárquica cujos efeitos nas relações cotidianas de dominação eram corrosivos”416.
Para Ismael Pordeus (1956) essa manifestação deixou de ser praticada nas primeiras décadas do século XX, quando as irmandades entraram em decadência. “A do Rosário começou não elegendo mais os seus reis e rainhas, tão pomposamente festejados e quase que soberanos no dia 6 de janeiro de cada ano – Dia de Reis. Algo de africanismo existia nas homenagens que seus “súditos” lhes tributavam”417. Que homenagens seriam essas, valendo a associação à África? Certamente, o autor se refere ao auto em que cristãos e mouros travavam batalha, conhecido como reis Congo, manifestação cênica associada ao ritual de coroação dos reis negros. Embora não se reportando a dramatização, Ismael Pordeus não deixa de oferecer uma descrição de como o cenário era criado e como as cenas se desenrolavam.

‘Eleitos rei e rainha, certo casal de Pretos moradores na Serra de Santa Maria” teve entrada triunfal na sede da Freguesia. Seus “vassalos” foram encontrá-los (rei e rainha) à altura da “Lagoa Sabiá” e daí os conduziram em grandes redes brancas e toldas, até a Igreja do Rosário, onde foram coroados. Diariamente, durante o novenário à virgem, ao rufar de tambores e repicar os sinos, tiros de “roqueiras” e foguetes os reis ingressavam na Igreja ornados de vistosos mantos, coroas à cabeça e cetros à mão, indo postar-se nos tronos existentes ao lado do altar-mor. Enquanto perduravam os festejos na Igreja do Rosário, rei e rainha assistiam sempre sentados nos respectivos tronos, todos os atos religiosos que ali eram oficiados, genuflectindo apenas à hora da Elevação Maior ou da Benção do Santíssimo Sacramento.418.’

Algumas considerações me parecem oportunas para se compreender a dinâmica dessa sociabilidade e as suas particularidades em Quixeramobim. As irmandades e os eventos associados a elas, normalmente, são pensadas como movimentos urbanos. O que se pode destacar é que a coroação e seus rituais festivos congregavam Negros no dia da padroeira e era nessa ocasião em que se escolhiam os soberanos. Os eleitos poderiam estar situados na sede da freguesia ou em fazendas distantes. Ainda que esses reis e rainhas viessem das fazendas, sua “entrada triunfal na sede da freguesia” deveria ser garantida pelos demais com grande ostentação, como diz o autor, por parte de seus “vassalos”419. Com isso considero que a coroação era uma oportunidade para reunir os Negros espalhados nas fazendas e mesmo estando a capela localizada na periferia, a irmandade não deixava de atravessar as ruas principais da vila, pois serem vistos era o que pretendiam os seus membros.

Mapa 05 : O caminho da festa
Mapa 05 : O caminho da festa

Fonte: Elaborado pelo Consórcio Fausto Nilo, Espaço Plano, com bane no Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano de Quixeramobim.

Outro aspecto que gostaria de retomar é a referência a lugares que passaram a ter importância na memória dos que narram ainda hoje a festividade, por exemplo, a serra de Santa Maria, onde durante muito tempo a capela foi proprietária de um sítio. De lá saiam os reis coroados, certamente escravos, que com a anuência de seu proprietário, ingressavam na irmandade. Além da autorização, o proprietário chegava muitas vezes a pagar a contribuição de entrada. Com isso adquiria também visibilidade o senhor e talvez não fosse por outra razão que investisse nas festas da associação.
Os compromissos indicam que, além das festividades religiosas, a irmandade deveria aparecer paramentada com suas opas nas festas profanas. A coroação e o cortejo provavelmente aí se inscreviam. Talvez fosse as festas profanas o lugar onde se condensavam mais trocas culturais entre os diferentes grupos que compunham a sociedade colonial. É nesse sentido que as percebe Marina de Melo e Souza (2002) ao afirmar que

‘Além de ser fruto de contatos culturais ocorridos entre Portugueses e os povos da África Centro-Ocidental, a festa de rei congo foi uma instituição, construída ao longo dos séculos de escravidão, por meio da qual se organizavam as comunidades negras da sociedade colonial. Mesmo quando chegavam diretamente da África, os escravos iam se tornando menos estrangeiros e mais Brasileiros, pois no Brasil eram integrados a instituições (como a festa de rei congo) que no século XX, estavam consolidadas por cerca de dois séculos de convívio entre Africanos e Europeus420. ’
Notes
412.

J. J. Reis, op. cit., 2009, p.60.

413.

Novo compromisso da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário, da cidade de Quixeramobim, Fortaleza, Outubro/1899. Arquivado na sala de História Eclesiástica do Ceará, Seminário da Prainha, Fortaleza, 2008.

414.

Compromisso da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário de Quixeramobim. Lei nº 678 de 16 de outubro de 1854, In: Leis Provinciais do Ceará 1835-1861,Fortaleza, Biblioteca Pública Menezes Pimentel, Microfilme.

415.

M. Simão, Quixeramobim - recompondo a história, Fortaleza: 1996, p. 135.

416.

M. M. de Aguiar, Festas e rituais de inversão hierárquica nas irmandades negras de Minas colonial, In Jancsó e Kantor, Festa cultura e sociabilidade na América Portuguesa, São Paulo: Hucitec, v. 1, p. 361-393.

417.

I. Pordeus, “Antônio Dias Ferreira e a matriz de Quixeramobim”, in: Revista do Instituto do Ceará, Fortaleza, 1956, p. 80.

418.

I. Pordeus, “Antônio Dias Ferreira e a matriz de Quixeramobim”, In: Revista do Instituto do Ceará, Fortaleza, 1956, p. 80.

419.

Alguns autores enfatizam que as irmandades foram movimentos urbanos. Em Quixeramobim, a capela do Rosário dos Pretos estava localizada fora do espaço urbano, mas o palco das festividades da irmandade era núcleo urbano. Oliveira Paiva faz breve descrição desse evento, localizando-o na vila.

420.

M. de M e Souza, Reis Negros no Brasil Escravista. História da festa de Coroação de Rei Congo. Belo Horizonte: Humanitas, 2002, p. 266.