Capítulo 10
Festa e Integração

A festa em comemoração ao orago da irmandade era um dos momentos mais importantes da ação das irmandades dos “Pretos”, sendo o ano todo de preparação para tal acontecimento. A festa acontecia nos moldes rituais de outras festividades religiosas, com a diferença de que essas irmandades passaram a introduzir a coroação de seus reis e rainhas, bem como seu cortejo, que se constituía de desfile pelas ruas, com muita animação e batuque. O ritual de coroação nem sempre acontecia durante a festa da padroeira, podendo ser feito em outra ocasião, como nas festas de Reis. A irmandade de Nossa Senhora do Rosário de Quixeramobim realizava suas festas, respaldada por uma norma prescrita nos seus estatutos. Parte de suas receitas era destinada para contratação do padre para celebração da missa, música, fogos.
No meu entender as práticas festivas recolocavam o Negro no jogo de representações de si mesmo em relação aos outros, não pertencentes às irmandades de “Pretos”, pois elas se constituíam em um lugar onde as identidades se articulavam, em um espaço de integração, onde as particularidades de seus integrantes se diluíam. A festa representava, nesse sentido, um espaço social onde se negociavam símbolos e estratégias de visibilidade. Os rituais celebrativos, especialmente quando se realizavam a coroação de seus reis e rainhas, eram o momento onde se negociavam uma identidade não mais a de escravo, mas como membro de uma confraria. As irmandades de Homens Pretos elegiam seus reis e rainhas a cada ano durante a festa do padroeiro. Os Negros irmanados saiam “a desfilar e comemorar, em ocasião de atos mais solenes, com indumentos flagrante imitação às vestes do poder régio”421. Essas coroações representavam um demarcador de diferenças entre as irmandades de Brancos e Pretos, sendo os que mais chamavam atenção, os cortejos acompanhados de batuques e indumentárias próprios para a ocasião.
Eduardo Campos (1980) traz uma descrição da coroação de Congo em Sergipe, dizendo “três negras, fantasiadas de rainha, arrastando compridos mantos, com suas cores douradas, caminhavam após, pajeadas de Congos vestidos de branco e com enormes barretinas de linho, enlaçadas de fitas e recamadas de miçangas 422”. Faltando o que descrever sobre esse tipo de manifestação no Ceará, ele especula que certamente em Crato “ingredientes profanos” deveriam suceder de mesmo modo. As festas do padroeiro eram momentos altos das festividades das irmandades. No caso das irmandades de Homens Pretos, era Nossa Senhora do Rosário a padroeira mais importante. Além dessa festa, as irmandades seguiam o calendário litúrgico católico e em razão disso é que costumavam celebrar outros momentos como a festa do orago da freguesia, Semana Santa e Natal, festa de Reis.
A identidade dos Negros irmanados possuía os contornos dessa e de muitas outras inserções e experiências como escravidão, libertação, agremiação não podendo ser pensada senão a partir desses contextos e situações. As suas interações e sociabilidades traziam marcas de diferenciação étnica, demarcando fronteiras, algumas vezes rígidas e outras fluidas, em relação a quem era Negro e quem não era. A mobilidade das fronteiras era assim observada, sobretudo na participação de pessoas não pertencentes ao grupo dos “Pretos423” nos cargos da confraria. As fronteiras tornavam-se rígidas naquilo que parecia ser território exclusivo dos “Pretos”: a coroação de reis e rainha e cortejos, auto dramatizado conhecido como Congo. A percepção das diferenças produzia hierarquias no interior das irmandades, hierarquias legitimadas pelo cumprimento das normas que instituíam tal organização.
A produção dessas hierarquias aparece no compromisso da irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos de Icó e Aracati, uma vez que nem todos podiam assumir os cargos e existiam regras a serem cumpridas e que garantiam a permanência no grupo de irmãos. Por outro lado, a produção dessas hierarquias era perceptível, sobretudo, nas aparições públicas no momento da festa, mas também no ato de assumir determinadas posições dentro da própria irmandade que chegava a exigir daqueles que pleiteavam os cargos doações avultosas (em dinheiro ou jóia) para a irmandade. É o que demonstra o Capítulo Da Eleição ao estatuir que “O irmão ou irmã, que for eleito Rei, ou Rainha só poderá servir por um anno, salvo se aceitar a eleição e pagará (sic) de jóia cinco mil reis. O escrivão ou escrivã dará de jóia três mil reis; e os de devoção dous mil reis, e cada irmão mil reis (...)424”.
Como se pode ver a eleição de rei e de rainha muitas vezes ficava restrito àquele que pudesse entrar com uma contribuição ou jóia. Porém não é somente aí que se estabeleciam diferenciações, produzindo várias posições dentro da irmandade. Aqueles a quem a participação estava proibida por causa da idade, abria-se a possibilidade caso viesse a fazer tal doação. Portanto, a produção dessa hierarquia era sentida mais visivelmente nos eventos públicos como na coroação de rei e rainha e o seu cortejo, pois nem todos poderiam ser coroados. Consoante Marum Simão (1996), “a escolha do rei sempre recaía na pessoa do negro que gozava de mais influência em Quixeramobim”425. Como era adquirido esse prestígio? Em que ele se fundamentava? Essa influência era exercida em relação a que e a quem?
Diante dessas questões penso ser imprescindível considerar as relações de poder que constituem essas irmandades. Nesse ponto talvez tenha razão Carneiro da Cunha, (1995), ao dizer que a identidade é construída de forma situacional e contrastiva, ou seja, que ela se “constitui resposta política a uma conjuntura, resposta articulada com as outras identidades em jogo, com as quais forma um sistema426”.
As confrarias foram uma resposta política a uma conjuntura determinada e foi com elas que Negro passou a construir uma identificação e uma diferenciação427 no interior da sociedade escravocrata, sendo também por meio delas que eles puderam assumir papel público para além daquele a que estava destinado, o de ser escravo. Impor-se nesse jogo de representação, implicava antes construir para si uma representação de sujeito que lhe era restrita ou negada na casa grande ou no trabalho. A confraria foi talvez a resposta política que mais negociação implicou, e os ganhos resultaram de diálogo e não de confronto aberto. Essa estratégia política foi ganhando outra dimensão com a festa de coroação, pois aí os “Pretos” simularam uma contra-ordem, constituindo-se reis e adquirindo o poder de até libertar preso428.
Portanto, para compreender as irmandades de Homens Pretos no Ceará, é necessário perceber como os Negros se engajavam na sociedade inclusiva e como se relacionavam com demais grupos. Fica patente que essas articulações não estabeleciam eqüidade de oportunidades entre Brancos e Negros. As irmandades de Nossa Senhora do Rosário eram associações de caráter leigo, definidas por critérios étnicos-raciais, que em alguns momentos permitiam a participação de Brancos. Quando isso ocorria, a negociação passava a existir dentro da própria irmandade e quase sempre era formalizada em normas. O compromisso da irmandade do Rosário de Crato aprovado em 1870 é incisivo nesse ponto quando estabeleceu dois núcleos na irmandade: um formado “por todos os homens e mulheres livres de todas as cores”429, de onde seria eleita a mesa regedora e outro constituído por “Pretos escravos” de onde se a escolha do séqüito régio.

‘O séqüito régio se comporá dos seguintes empregados: rei, rainha, dous mestres de campo, um arauto e duas açafatas, que terão por obrigação acompanhar a rainha. A eleição do rei e rainha pertencerá de direito ao segundo núcleo da irmandade; os mestres de campo e arauto serão escolhidos pelo rei; o lugar das açafatas será conferido pela rainha, a quem lhe convier, d´entre as irmãs escravas430. ’

A associação se abria para outros grupos étnicos para compor a mesa regedora, mas se fechava quando se tratava da escolha do “séqüito régio”. Assim ela se constituía como espaço político em que se negociava uma identidade baseada na diferenciação em relação aos Brancos, mantendo certamente o controle sobre aquilo com que mais se identificava, o cortejo da festa onde danças e ritmos negros se misturavam. Ao admitir a participação de indivíduos de outros grupos, passava a redefinir seus espaços no interior dela mesma, isso não se referindo apenas à eleição do séqüito régio. A irmandade de Nossa Senhora do Rosário de Icó, a exemplo da de Crato aceitava no seu corpo “pessoas de todas as cores”, e propunha que quando da morte de um irmão a irmandade deveria fazer o acompanhamento, ficando “reservado aos irmãos Pretos o direito de conduzir a cruz e lanterna”431.
Conforme Marina de Mello e Souza (2001), os Negros adquiriam visibilidade quando saíam em cortejos pelas ruas, “presidindo uma série de atos rituais e danças”. Através da coroação dos reis negros, escravos e libertos encontraram uma forma de se organizarem comunitariamente ao mesmo tempo em que negociavam formas simbólicas de não esquecimento de práticas que foram deixadas para trás. Eleger soberanos era prática comum nos chamados quilombos, organizações comunitárias conformadas a partir de fuga das senzalas, sendo freqüente o registro de que Negros aquilombados viviam sob o governo de rei ou capitão.
A coroação se tornou muito difundida no âmbito das confrarias de Homens Petos, a partir da qual se atribuía aos soberanos a denominação genérica rei do Congo. A explicação histórica mais recorrente entre os autores (Reis, 1991; Souza, 2001) que investigaram essa sociabilidade é a de associação dessa prática (a coroação de rei e rainha) a fragmentos culturais trazidos por Negros escravizados da África centro-ocidental. Assim, a referência ao Congo recuperaria elementos históricos de conversão do reino do Congo ao catolicismo já a partir do século XV. Poder-se-ia afirmar que no contexto do tráfico, os Negros arrancados de seus lugares de origem e pertencentes a tradições étnicas diferentes, criaram novos laços sociais e novas formas culturais, sendo a coroação de seus reis e os cortejos uma de suas maiores expressões.
As festas passaram a ser o veículo de rememoração dessas vinculações perdidas e o espaço de construção de novas representações e identidades. As irmandades com suas coroações e cortejos construíam suas identidades negras e pertenças na mesma medida em que sedimentavam laços de solidariedade com seus iguais. Era também um meio para aglutinar diferentes povos que aqui chegaram, fazendo aos poucos desaparecer as possíveis particularidades étnicas. Em razão disso é que todos os reis e rainhas passaram a ser identificados como rei do Congo, diluindo os reis de outras possíveis nações. Isso não significa dizer que algumas confrarias não tenham tido o firme propósito do reunir seus “parentes de etnia” dispersos depois de trasladados da África para o Brasil432.
As festas de coroação são consideradas dramas, em que há uma luta entre Rei do Congo e invasores. Alguns autores afirmam que tais coroações recuperam fragmentos da história do Congo, primeiro reino cristão na África. O fato é que as novas identidades e representações que a comunidade negra elaborava para si no contexto das irmandades não desprezavam seu passado histórico ainda que totalmente preso ao presente. Não desprezavam suas experiências na África e muito menos as condições com que se deparavam no Brasil, pois conforme Marina de Mello e Souza (2001),

‘Ao se converterem ao catolicismo e ingressarem em irmandades, no processo de construção de novas identidades, os Africanos e seus descendentes recriavam miticamente aspectos de sua história e desenvolveram rituais que reafirmavam algumas características da comunidade envolvida. A coroação do rei congo no âmbito da celebração festiva do Santo padroeiro, na qual o grupo apresentava danças que dramatizavam episódios de sua história remetia a um passado africano, resgatado pela vivência ao catolicismo433. ’

O ritual de coroação era procedimento a ser realizado pelo padre que fosse contratado pela irmandade para as festividades do santo padroeiro, assim demonstrando certa anuência da igreja em relação às organizações negras e suas práticas religiosas e certa autonomia das irmandades em manter com recursos próprios a realização dos eventos religiosos necessários, por exemplo, a missa. O que não significa que em alguns momentos as festas não tenham passado a ser reprovadas ou pouco toleradas quando dissociadas das irmandades434.
Os cortejos faziam parte da festa da padroeira e eram marcados por cantos, danças e encenações de batalhas. Tais cortejos ainda são encontrados em alguns lugares no Ceará, como foi registrado por OswaldoBarroso na festividade dos congos do Rosário em Milagres.

‘No Ceará, a memória dos Congos está melhor preservada nos Reisados dos Congos. Dos autos dos Congos, propriamente ditos, ligados a irmandades de santos pretos, resta, ao que se saiba, apenas o de Milagres, que aparece na época tradicional das festas do Rosário e nas festas de outras santas padroeiras. Com relativo prestígio entre a população e junto à igreja, ele debate-se entre o resgate da memória dos Congos mais antigos e seu abrasileiramento435.’

Conforme Oswaldo Barroso (1996), os cortejos, que saem às ruas em Milagres por ocasião da festa de Nossa Senhora do Rosário, encenam batalhas que rememoram fatos históricos africanos como a conversão do rei do Congo ao cristianismo. Ademais, introduz encenações da lendária história de Carlos Magno e os Doze Pares de França, o que talvez demonstre confluência de temas clássicos da literatura de folheto, tão comum no Ceará, nas peças encenadas nos cortejos de Congo436.
A estrutura dramática do Congo, como se pode apreender com a descrição do autor referido consiste na encenação do embate de espada entre o rei Congo e o rei inimigo, que nos cortejos de Milagres, é representado pelo mouro Ferrabrás. Dá-se início ao auto no momento em que o cortejo percorre as ruas em direção ao templo onde é celebrada uma missa. Terminada a celebração todos saem para o patamar da igreja e somente depois de alguns entremezes os congos encenam embaixadas e combates. A batalha finaliza quando o rei inimigo é vencido pelo rei Congo e se dá sua conversão ao cristianismo.
Se as festas de coroação de rei e rainha negra contribuíram para consolidar uma identidade negra a partir da experiência da escravidão, da integração do Negro à sociedade colonial bem como de rituais e mitos que veiculavam símbolos africanos, tem-se aí uma chave para se pensar a identidade e a cultura em uma perspectiva híbrida como formulou S. Hall (2003), para quem não existe identidade “primordial”437 e nem cultura “pura”. Pensar a pertença a uma comunidade significa considerar as várias experiências dos sujeitos e como a identidade e a cultura se construíram a partir de suas trajetórias. Nesse sentido, não tem muita importância inventariar os elementos culturais e sim procurar entender as modificações que sofreram e como foram se acomodando a outros, de modo a produzir um sentido para aqueles a quem interessava.
Pensar nas formas impuras dos arranjos culturais implica pensar a experiência dos sujeitos retirando dela qualquer aura essencializante.438 A busca das origens, como se fosse necessário recompor o elo perdido, é o que menos tem importância. Nessa perspectiva o que interessa é saber como se articulam diversas tradições e com o que pode resultar dessa articulação. São várias as referências articuladas, e por isso a identidade, por sua vez, se construiria em bases menos sólidas. Ela significa menos unidade e mais diversidade, ela comporta mais heterogeneidade e menos homogeneidade.
Os Negros irmanados produziram ressignificações constantes de várias tradições seja ocidental-cristã ou africana e suas práticas estão marcadas por esses referentes religiosos, culturais e simbólicas. Com base nisso constroem um sentido de ser e existir no mundo. E talvez seja isso o mais importante para pensar a identidade, pois como diz Michel de Certeau (2003), “há negritude apenas a partir do momento em que há um sujeito novo na história, isto é, quando homens optam pelo desafio de existir”439. O desafio de existir transformou dispersão em associação e essas associações iam além das divisões étnicas ou sociais dos Negros. Essa vida associativa conforme Aguiar (2001),

‘Criou canais de protesto e diálogo com os órgãos da Coroa, estabeleceu frentes de causas mobilizadoras da comunidade negra e familiarizou os escravos e libertos com o funcionamento de instituições. Demonstrou possibilidades abertas para a manipulação das estruturas de poder. (...). A vida confrarial introduziu espaço privilegiado de intercâmbio cultural que atravessava as relações de dominação constituídas nos lugares tradicionais e situava os confrades em posição privilegiada de negociação. Veiculou formas de discurso radical, conformou práticas de autonomia e autogestão da vida religiosa e desenvolveu rituais de inversão hierárquica, os quais repuseram em questão os termos das relações sociais de dominação440.’

Para o caso do Ceará penso que os Negros rememoravam, com suas performances, acontecimentos históricos como a conversão ao cristianismo. Também traziam a lembrança da África da qual foram arrancados. No Novo Mundo, as festas passam a ser o veículo de rememoração dessas vinculações perdidas, ao mesmo tempo em que, esses mesmos vínculos são recuperados através delas. A travessia do Atlântico e o destino comum como a escravidão levaram a construir formas culturais alternativas, sem necessariamente se confrontar com o sistema de escravidão. A partir das coroações e cortejos construíram suas identidades e pertenças e sedimentaram laços de solidariedade com seus iguais. A vida associativa, nesse sentido, foi o desafio de existir, foi a estratégia para produzir um deslocamento ou um desequilíbrio de poder nas relações da cultura, pois como diz Hall (2003), “trata-se sempre de mudar as disposições e configurações do poder cultural e não se retirar dele”441.
A festa é uma produção social que gera vários materiais ou elaborações simbólicos, sendo o mais importante desses produtos a identidade entre os participantes ou como exprime Noberto Luiz Guarinello (2001), “a concretização efetivamente sensorial de uma determinada identidade que é dada pelo compartilhamento do símbolo que é comemorado”442. Nossa Senhora do Rosário era o elemento focal comemorado e funcionava com símbolo de identificação dos Negros. Esse símbolo “se inscreve na memória coletiva como um afeto coletivo, com a junção dos afetos e expectativas individuais, com um ponto que define a unidade dos participantes”443. Esses componentes rememorados no contexto das irmandades eram redimensionados, formando como que uma rede de fatos ritualizados de modo a não se poder compreendê-los indistintamente ou individualmente, seja Nossa Senhora do Rosário, a coroação dos reis negros ou o cortejo. A festa, pelos elementos que articulava, pelos sentimentos e afetos que exacerbava, pelas imagens e símbolos que evocava, seria então um jogo, um espaço social onde se reiterava, produzia e negociava identidades sociais444.
As festas de coroação de reis negros e os mitos e rituais correlatos possuíam a marca das trajetórias dos agentes sociais (Negros e Negras) que atravessaram o Atlântico, despidos de sua cultura, tratando muitas vezes apenas de construir uma existência. Esses sujeitos construíram novas formas de inserções sociais, sendo a festa e toda ação a ela dirigida seu melhor exemplo. Nas festas os Negros conheciam o sentido da liberdade no momento em que coroavam seu rei e rainha; por meio delas eles rememoravam suas existências perdidas e articulavam novos sentidos para os lugares de onde vieram. Talvez não seja precipitado dizer que com as festas de coroação inaugurava-se uma estética diaspórica, ou seja, um movimento de

‘Sincronizações parciais, de engajamentos que atravessam fronteiras culturais, de confluências de mais de uma tradição cultural, de negociações entre posições dominantes e subalternas, de estratégias subterrâneas de codificação e transcodificação, de significação crítica e do ato de significar a partir de matérias preexistentes. Essas formas são sempre impuras, até certo ponto hibridizadas a partir de uma base vernácula445. ’

A coroação recuperava elementos culturais de várias origens, mas sua importância estava em narrar lembranças de fatos históricos que os Negros recordavam ao dançar, gingar, cantar, coroar. Normalmente, esses rituais eram marcados por disposições do corpo de modo a representar as mais diversas vinculações sociais, atribuindo significado a uma existência como coletividade. Nesse sentido, as festas negras reintroduziram as danças coletivas. Para demonstrar isso, nada mais interessante do que as descrições de Henry Koster quando de viagem pelo Nordeste brasileiro no século XIX. Diz o viajante:

‘Os Negros livres também dançavam, mas limitavam a pedir licença e sua festa decorria diante de uma das suas choupanas. As danças lembravam a dos Negros Africanos. O círculo se fechava, e o tocador de viola sentava-se num dos cantos, e começava uma simples toada, acompanhada por algumas canções favoritas, repetindo o refrão, e frequentemente um dos versos era improvisado e continha alusões obscenas. Um homem ia para o centro da roda e dançava minutos, tomando atitudes lascivas, até que escolhia uma mulher, que avançava, repetindo meneios não menos indecentes, e esse divertimento durava às vezes até o amanhecer. Os escravos igualmente pediam permissão para suas danças. Os instrumentos musicais eram extremamente rudes. Um deles é uma espécie de tambor, formado de uma pele de carneiro, estendida sobre um tronco oco de árvore. O outro é um grande arco, com uma corda tendo uma meia quenga de coco no meio, ou uma pequena cabaça, amarrada. Colocam contra o abdome e tocam a corda com o dedo ou com um pedacinho de pau. (Grifos meus)446. ’

Chama atenção nessa narrativa o fato de Negros livres e escravos igualmente poderem fazer suas danças e a alusão de que tais danças lembram a dos Africanos. Henry Koster (1816) fez essa menção e isso lhe vale uma nota de Câmara Cascudo (tradutor), 2002, onde transcreve trechos de apontamentos de viagens da obra Os Sertões d´África, de Alfredo Sarmento, para comprovar a similitude entre rituais encontrados no Nordeste do Brasil e a África. Gostaria de destacar ainda, que conforme Koster, as danças eram executadas coletivamente, evidenciando-se isso nas frases o círculo se fechava ou o homem ia para o centro da roda. As danças exigem a presença do corpo não apenas para dançar, mas como complemento sonoro dos instrumentos. No caso das danças negras o corpo parece se confundir com os instrumentos, colocam contra o abdome e tocam a corda com o dedo, ou ele próprio é um instrumento musical. Fernando Ortiz (1993) ao estudar os bailes cubanos procura enfatizar o caráter coletivo e social dos bailes e também trata da “percussividade” do corpo negro.

‘(...) La dança es um fenómeno estrictamente social aun cuando, como em todo hecho del hombre, intervengan em sus causas y expresiones los factores humanos individuales em su integridad.(...) Acaso pueda decirse que, entre los negros y sus herederos inmediatos, no sempre es la música la que conduce el baile; este suele inspirar y hacer fluir a música. (...) El negro no ´baila al son que le toquen´ tanto como toca al passo que le bailan. El bailador primitivo es por si mismo um instrumento percusivo, um ´cuerpo sonoro, que hace música com el staccato de sus pies y a veces con el palmeo o contrapuento de sus manos y com los fraseos melódicos de sus cuerdas vocales447. ’

Ainda que tenha havido muito controle em relação às festas negras, seja em Cuba ou no Brasil, o que fica patente é que nessas festas o corpo transcende a condição de subjugação e passa a ser muitas vezes veículo de rememoração de outras inserções sociais, experimentadas na África, nos portos onde foram embarcados e na própria travessia do Atlântico. Essas experiências são retomadas e faz sentido o entendimento de que não é possível pensar nas identidades negras desconsiderando tais experiências. Não me interessa o quanto elas permanecem fiéis a uma origem africana, mas tão somente, o quanto são impuras e hibridizadas a partir dos lugares onde tais sujeitos se encontram448 e mesmo o quanto de fronteiras que tais festas atravessam. A fluidez das fronteiras, Hall (2003), a partir da idéia de hibridação, (Hall, 2003; Bhabha, 1998) a meu ver segue a mesma linha de argumentação de Fernando Ortiz com conceito o de transculturação,

‘que expressa melhor o processo de transição de uma cultura para outra, porque este processo consiste somente em adquirir uma cultura diferente, (...) porém o processo implica também, necessariamente, na perda, no desenraizamento de uma cultura anterior (...) e, além do mais significa a criação conseqüente de novos fenômenos culturais449.’

Nas festas de coroação dos reis Congos, os Negros não assumiam posições subalternas, pelo contrário, assumiam o papel de promotores, suspendendo temporariamente sua condição de escravo. Negociavam estratégias de inclusão sem necessariamente opor-se radicalmente ao sistema que lhe negava uma subjetividade. Nesses momentos reforçavam os laços de solidariedade e construíam uma identidade atravessada pela lembrança de uma África, manifesta em gestos, performances, tendo como veículo o seu corpo; uma África, por que não dizer, vivamente incorporada nas ocasiões festivas amalgamada com outras lembranças. Levando esse dado em consideração, talvez faça sentido tomar as coroações e rituais correlatos como práticas de incorporação através das quais as lembranças da África são vivificadas e manifestadas. Connerton (1993) sugere que a memória encontra-se sedimentada, ou acumulada, no corpo, e que as práticas de incorporações são exemplos de memorização de posturas culturalmente específicas450.

Notes
421.

E. Campos, As irmandades religiosas no Ceará Provincial, Fortaleza, Secretária de Cultura e Desporto, 1980, p. 8.

422.

E. Campos, op. cit. 1980, p. 12.

423.

Estou usando a denominação constante no nome da Confraria.

424.

Compromisso da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário de Quixeramobim. Lei nº 678 de 16 de outubro de 1854, In: Leis Provinciais do Ceará 1835-1861,Fortaleza, Biblioteca Pública Menezes Pimentel, Microfilme.

425.

M. Simão, Quixeramobim - recompondo a história, Fortaleza, 1996.

426.

M. C. da Cunha, “Negros, estrangeiros. Os escravos libertos e a sua volta à África. São Paulo: Brasiliense, 1995.

427.

Para G. Simmel (2006), “o significado prático do ser humano é determinado por meio da semelhança e da diferença. Seja como fato ou como tendência, a semelhança com os outros não tem menos importância que a diferença com relação aos demais; semelhança e diferença são, de múltiplas maneiras, os grandes princípios de todo desenvolvimento externo e interno. Desse modo, a história da cultura da humanidade deve ser apreendida pura e simplesmente com a história da luta e das tentativas de conciliação entre esses dois princípios”. p. 45.

428.

M. Simão, Quixeramobim - recompondo a história, Fortaleza, 1996.

429.

E. Campos, op. cit., 1980, p. 41.

430.

Ibid, p. 18.

431.

Compromisso da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário de Icó, in, E. Campos, op. cit., 1980, p. 73.

432.

M. Soares (2000) identificou esse fenômeno entre os maki reunidos em torno da devoção à Santa Ifigênia no Rio de Janeiro, século XVIII.

433.

M de M e Souza, História, mito e identidade nas festas de reis negros no Brasil – séculos XVII e XIX. In: I. Jancsó e I. Kantor, Festa cultura e sociabilidade na América Portuguesa, São Paulo, Hucitec, v. 1, p. 249-260.

434.

Souza (2001), diz que “a festa foi mais estruturada e aceita quando integrada às irmandades de “Homens Pretos”. As irmandades, por sua vez, ligadas às igrejas locais, eram organizações criadas nos centros urbanos, nos quais ocorriam preferencialmente as festas de reis negros. Mas a respeito dessa relação preferencial entre as festas, as irmandades, e as vilas e cidades, há relatos de festas de coroação de reis negros realizadas em engenhos e áreas rurais”. In: I. Jancsó e I. Kantor, Festa cultura e sociabilidade na América Portuguesa . São Paulo: Hucitec, v. 1, p. 249-260.

435.

O. Barroso, Reis de Congo, Fortaleza, Museu da Imagem e do Som, 1996.

436.

Oswaldo Barroso faz um estudo denso sobre os Congos de Milagres, no qual traz transcrição das peças encenadas, tentando produzir um significado a partir do diálogo com os participantes dos Congos.

437.

A concepção primordial da identidade para Hall (2003) se fixa no nascimento através do parentesco e da linhagem, dispensando aos locais de origem uma participação mínima na construção da identidade, ainda que não sejam desconsiderados. Da Diáspora, identidades e mediações cultural, Belo Horizonte: Humanitas, 2003, p. 29.

438.

Aqui também significa dizer certo repúdio a essencialização da diferença, pois conforme Hall (2003) ela “é incapaz de compreender as estratégias dialógicas e as formas híbridas essenciais à estética diaspórica”.

439.

M. de Certeau, Minorias, In: A cultura no Plural, São Paulo, Papirus, 2003, p. 154.

440.

M. M de Aguiar, Festas e rituais de inversão hierárquica nas irmandades negras de Minas colonial, In: I. Jancsó e I. Kantor. Festa cultura e sociabilidade na América Portuguesa, São Paulo, Hucitec, v. 1, p. 361-393.

441.

S. Hall, Da Diáspora, identidades e mediações culturais, Belo Horizonte: Humanitas, 2003.

442.

N. L. Guarrinelo, Festa, trabalho e cotidiano,In: I. Jancsó e I. Kantor, Festa cultura e sociabilidade na América Portuguesa,São Paulo: Hucitec, 2001, v. 2, p. 969-975..

443.

Ibid.

444.

Ibid.

445.

S. Hall, Da Diáspora, identidades e mediações culturais, Belo Horizonte, Humanitas, 2003, p. 343.

446.

H. Koster, Viagens ao Nordeste do Brasil, Recife, Massangna e Fundação Joaquim Nabuco, 2002.

447.

F. Ortiz, Los bailes y el teatro de los negros en el folklore de cuba, Cuba, Editorial Letras Cubanas, 1993.

448.

F. Ortiz, op. cit., 1993.

449.

F. Ortiz, “Do fenômeno social da transculturação e sua importância em cuba”, in: El contrapunteo cubano del azúcar y del tabaco. Cuba, Editorial de Ciencias Sociales, 1983. Tradução: Lívia Reis.

450.

As práticas de incorporação podem ser entendidas como “mensagens que um emissor, ou emissores, comunicam através da sua própria actividade corporal corrente, processando-se essa transmissão apenas durante o período em que os seus corpos estão presentes para apoiarem essa actividade particular”. P. Connerton, Como as sociedades recordam. Oeiras: Celta, 1993.