10.1 Espaço Social e Representações

Tomar a festa como espaço social onde se negociava representações implica pôr em evidência o capital simbólico que os Negros irmanados passaram a mobilizar no interior da sociedade escravocrata. Não que a festa subvertesse o sistema vigente, mas que ela passou a se constituir no cotidiano dos Negros o lugar a partir de onde as posições poderiam ser negociadas ou renegociadas e mesmo as hierarquias (poderiam ser) redefinidas. Esse entendimento dá uma complexidade às relações sociais da época, tornando discrepantes as abordagens que tendem a ver tudo sob o prisma dual do senhor e do escravo.
A festa dava visibilidade aos agentes vinculados às irmandades e era na tensão com uma ordem estruturada que os mesmos saíam com seus cortejos, comemorando a padroeira Nossa Senhora do Rosário. Decerto, a festa é o espaço de negociação, e de consolidação de representações calcadas na diferenciação étnica, pois somente Negros podiam ser coroados assim como assumir determinadas posições em manifestações públicas. Talvez ela possa ser vista como o momento de agenciamento de forças, que não eram perceptíveis no cotidiano escravo ou de sujeição desses agentes. Se as representações variam segundo a posição dos agentes e “os interesses que estão associadas a ela”, como salienta Bourdieu (1987), poder-se-ia dizer que na festa os participantes mobilizavam alguns esquemas perceptivos e visões de mundo, que redefiniam a ordem das coisas. Esses esquemas não traziam apenas a estrutura objetiva da sociedade que o recebeu, mas o habitus da sociedade que produziu sua socialização primeira. Habitus entendido “como sistema de esquemas de percepção e apreciação, como estruturas cognitivas e avaliatórias que eles adquirem através da experiência durável de uma posição do mundo social”451.
Quero dizer com isso que nas festas negras, especialmente as organizadas pelas irmandades de Nossa Senhora do Rosário, vários símbolos eram acionados, revelando tanto as suas inserções na África, que não foram esquecidas, como as interações que construíram com seus pares e outros no âmbito da escravidão. Com o capital simbólico452 conformado a partir dessas experiências, os confrades elaboravam um sentido de ser e existir no mundo bem como negociavam novas posições no jogo de interações. Jogavam justamente com esse capital simbólico ao disputarem posições não subalternas, ainda que temporariamente, na intrincada estrutura social de que faziam parte.
Para Victor Turner (1993), a sociedade está em constante mudança. A ordem social não é um fato permanentemente adquirido, pois ela funda-se em contradições, conflitos de interesses tanto interpessoal como intragrupal e intergrupal. Portanto a estrutura social não é um fenômeno contínuo e consensual. Ela se caracteriza por processos de rupturas e reparações, de cisma e de continuidade453. Esses elementos eram perceptíveis nas ações das irmandades na medida em que reiteravam uma ordem social dada, afinal elas eram regidas pelas mesmas normas que regulavam as irmandades de Homens Brancos, e contradiziam, ainda que temporariamente, interesses e/ou valores de outros grupos quando realizavam suas festas e praticavam seus rituais.
Justamente por contradizerem valores estabelecidos, essas festas sofreram constantes reprovações, sendo muitas vezes comparadas a práticas incivilizadas. Um bom exemplo disso é a notícia transcrita por Eduardo Campos de A Tribuna Catholica, 1857, a qual se refere a uma exibição musical durante uma missa. “(…) Tudo isso se harmoniza admiravelmente com a profanação geral a que têm chegado os nossos templos, preparados exatamente como as casas de baile, não lhes faltando até os lustres de cristal e a música fortemente ritmada pela retumbante bateria das caixas e zabumbas454.Eduardo Campos (1989) também se refere a “musica de couro para a missa” nos termos de uma “Estúpida folia herdada dos tempos semibárbaros (...) da antiga colônia tudo isso apesar da época ilustrada a que porventura havemos chegado, para a vergonha do clero e das authoridades que a toleram e muitas vezes a alimentam455.
Já Oliveira Paiva em Dona Guidinha do Poço, obra que, conforme Ismael Pordeus foi uma adaptação de fatos ocorridos em Quixeramobim, em outros termos salienta o caráter anacrônico das festas negras ao compará-las com o triunfo político dos conservadores “Triunfaram os conservadores, isto é, os do poder. E não era sem um riso de ironia que o Rabelo, promotorzinho demissionário, ouvia os Pretos, enfeitados de belbutinas, lentejoulas, bicos rendas, espadas, lenços, capacetes e coroas de lata, cantar naqueles festejos do Natal chamados Congos”456. Marum Simão (1996), sem pretender uma avaliação negativa das festas argumenta que “na irmandade, [a do Rosário dos Pretos], que usava opa branca, misturava-se algo de misticismo e religioso, de que cultos africanos e religiosos eram concomitantemente praticados, o que era percebido nas festas dos Reis Magos”457.
Esses exemplos ilustram como no âmbito do espaço público as manifestações organizadas pelas irmandades eram avaliadas e percebidas. As percepções fossem de viajantes, de literatos e de outros acabavam trazendo visões de mundo de uma sociedade que mal tolerava essas festas, e quando as aceitava, fazia no intuito de controlar a comunidade negra, oferecendo-lhe uma semi-autonomia na realização dos cultos religiosos ou uma autonomia regulada pela Igreja. De qualquer modo, essas festas eram constitutivas das representações que os membros da confraria elaboravam sobre si e seu mundo, e se não podemos dizer com Bourdieu (1998) como um poder simbólico assente em “discurso performativo”, essas festas podem ser vistas como um “texto”458”, igualmente performativo, dotado de poder de impor um reconhecimento459 ou uma representação.
Talvez minha perspectiva difira da que propõe Bourdieu no tocante a pensar as representações como “enunciados performativos que pretendem acontecer aquilo que anuncia”460, dando a entender que o reconhecimento segue uma mão única: a de um grupo com poder de nomear os demais. Ainda que as identidades fiquem no campo do discurso, ela é dialética no sentido de propor um auto-reconhecimento e um reconhecimento pelo outro461. Claro que no jogo de forças quem tem mais capital simbólico pode impor uma representação, mas ela não será aceita como legítima até que muitas negociações ou lutas tenham sido realizadas. No jogo das representações tanto há identificação como distinção, ela tanto é elaborada por um “nós” como por um “outro” e dependendo do que está sendo negociado, um determinado grupo pode, inclusive, se apropriar de uma representação exógena, deixando fluídas as fronteiras desse “nós” e do “outro”.
Se o que estava em jogo era o poder de estabelecer fronteiras ou construir grupos através de conflitos dos poderes simbólicos, as festas acabavam organizando a percepção do mundo social e, em algumas circunstâncias e condições, ordenavam o próprio mundo462. Foi por meio da construção das irmandades e das festas que os Africanos e seus descendentes encontraram e/ou construíram maneiras novas de associações comunitárias, a partir de onde puderam recompor os fios de suas sociabilidades e cultura. Nesse sentido, a festa é uma construção social e nela os sujeitos atualizam sua pertença social. Nos relatos sobre a coroação dos reis negros e cortejos realizados pelas irmandades do Rosário dos Pretos no Ceará e na do Rosário de Quixeramobim, pude perceber que acorrem muitos elementos: hierarquias, relações de poder, normas, identidade, cultura e religião. Com isso fica patente que as festas não podem ser percebidas a partir de uma abordagem que a opõe ao cotidiano e menos ainda como algo que atualiza alguma pureza cultural. De certo modo procurei demonstrar como a festa brinca com elementos culturais de várias “tradições”, produzindo “configurações sincretizadas de identidade cultural” para usar uma expressão ainda de Stuart Hall.

Notes
451.

P. Bourdieu, Coisas Ditas, São Paulo, Brasiliense, 1990, 149-168.

452.

Para Bourdieu o capital simbólico “não é outra coisa senão o capital econômico ou cultural quando conhecido e reconhecido, quando conhecido segundo as categorias de percepção que ele impõe, as relações de força, as relações de força tendem a reproduzir e reforçar relações de força que constituem a estrutura do espaço social”. P. Bourdieu, op. cit., 1990, 149-168.

453.

V. Turner apud P. Cabral, In: Em terras de tufões, Instituto Cultural de Macau, 1993.

454.

E. Campos, op. cit., 1980, p. 86.

455.

Ibid.

456.

O. Paiva, op. cit., s.d, p. 99.

457.

M. Simão, op. cit., 1996.

458.

Estou pensando aqui em Geertz, 1989, que trata a cultura como texto. Ademais para o autor cultura “denota um padrão de significados transmitidos historicamente, incorporado em símbolos, um sistema de concepções herdadas, expressas em formas simbólicas por meio das quais os homens comunicam, perpetuam e desenvolvem seu conhecimento e suas atividades em relação a vida”. A Religião como sistema cultural, In: A interpretação das culturas, Rio de Janeiro, LTC, 1989, p. 103..

459.

Para Bourdieu (1998), “o mundo social é, também, representação e vontade, e existir socialmente, e é, também ser percepcionado e ser percepcionado como distinto”. P. Bourdieu, O que falar quer dizer, Portugal, Difel, 1998.

460.

P. Bourdieu, op. cit., 1998.

461.

Aqui é uma referência à formulação de Fredrik Barth sobre a identidade étnica, que foi recebida com entusiasmo por antropólogos Brasileiros como M. C. da Cunha (1995) e R. C. de Oliveira, (1976). Esses autores procuraram refletir contextos étnicos os mais variados a partir do entendimento de que grupos étnicos “são categorias adscritivas e de identificação, que são utilizadas pelos próprios atores e têm, portanto, a característica de organizar a interação entre os indivíduos. (...) Os atores utilizam as identidades étnicas para categorizar a si próprios e a outros no propósito de uma interação”. F. Barth, O Guru e o iniciado, Rio de Janeiro, Contra Capa, 2000, p. 27. Algumas críticas são formuladas a essa concepção, recaindo principalmente na distinção entre cultura e organização social. O debate está proposto em D. Villar, Uma abordagem crítica ao conceito de ´etnicidade´ na obra de Fredrik Barth. R. Mana, 10(1), 2004, p. 165-192

462.

P. Bourdieu, op. cit. 1990, p. 149-168.