Quarta Parte
A festa de Nossa Senhora do Rosário: fragmentos de memória

Capítulo 11
Festa de Nossa Senhora do Rosário: fragmentos de uma memória

Os documentos analisados: estatutos, livros de receitas e despesas, lista de irmãos, registros de aforamento e registros de doação, atestam a existência da irmandade de Nossa Senhora do Rosário em Quixeramobim e fornecem em grande medida a sua estrutura de funcionamento e a abrangência de suas atividades. Eles tomam a dimensão de um corpus, mas não se constituem propriamente em arquivo uma vez que nenhum empreendimento nesse sentido foi realizado, salvo o de levantamento realizado, visando os objetivos dessa pesquisa. Com isso quero dizer que esse trabalho retira de algum modo a associação do esquecimento uma vez que ele procurou reunir informações desconhecidas dos historiadores locais, das autoridades religiosas da atualidade de Quixeramobim e mesmo das pessoas com as quais dialoguei no curso da investigação.
O empreendimento se constituiu em uma interpretação do modus faciendi da irmandade de Nossa Senhora do Rosário. Assim, procurei fazer sobressair à dimensão diacrônica da associação, auxiliada por esse manancial de informações extraído dos documentos. Esse material, embora revelando muitas facetas das atividades da irmandade, limitava a compreensão de algumas sociabilidades, em especial da festa em comemoração ao orago. Obviamente que muito do que já foi esclarecido sobre a festa, como os investimentos em pompa, música, pólvora e outros artefatos festivos foi retirado dos livros de receitas e despesas da associação. Faltava, no entanto, uma descrição mais pormenorizada dessa sociabilidade na qual os Negros assumiam a responsabilidade de organizar e de realizar. Por essa razão, a memória oral foi solicitada e através dela outras dimensões desse evento foram reveladas.
Antes de avançar na descrição da festa pelos descendentes de antigos membros da irmandade, importa dizer que o tempo aqui reportado é o tempo em que as famílias Barrozo e Matias estavam conduzindo a irmandade, ou seja, os primeiros trinta anos do século XX. Disso se depreende que os narradores não vivenciaram todas as experiências narradas, quando muito ouviram de outros mais antigos que já não existem mais. Muitos deles nem chegaram a conhecer os protagonistas que recorrentemente apareciam nos eventos como Julião Barrozo, morto em 1925. Fato que leva a supor que uma transmissão mnemônica esteve em curso durante o período em que a irmandade vivenciava uma desintegração. A festa de Nossa Senhora do Rosário, que se realizou por umas décadas sem o suporte da irmandade, teria sido também veículo dessa rememoração. Então, quando os narradores se reportam a esse momento, estão falando do que experimentaram e vivenciaram dessa festa. O mesmo se pode atribuir ao evento de coroação dos reis Congos e o cortejo, antes de sofrerem as alterações que culminaram na sua dissociação da festa do Rosário e no seu quase desaparecimento.
Diante disso, alguns esclarecimentos são indispensáveis. Primeiro, sobre o material utilizado na construção da interpretação sobre as sociabilidades da festa Utilizei tanto estratos das narrativas como informações dos documentos consultados, tentando dar coerência aos fatos. Operação não muito fácil porque estou jogando com momentos diferentes em que se realiza o evento da festa: quando a irmandade de Nossa Senhora do Rosário estava ativa e seu corpo diretor era formado por membros das famílias negras. O outro momento é quando a irmandade já não existe mais e os narradores recuperam indiretamente essa organização (mesmo sem falar nela) através dessas famílias negras. Por último, o tempo da festa vivido pelos próprios narradores.
Mais um esclarecimento se impõe. As pessoas as quais atribuo o designativo narrador, se inscrevem no modelo de Walter Benjamim (1996) mesmo que autor tenha propugnado o desaparecimento desse sujeito na modernidade. Os interlocutores indagados por mim são narradores porque trazem uma “experiência comunicável463” e têm em comum “uma experiência passada de boca em boca464” e em algumas situações encarnaram o sentido de narrador idealizado pelo autor. Eles não somente narram, mas dizem como se apropriaram da memória dos outros.

‘Naquela época, esse povo mais velho gostava muito de conversar com a gente. Comigo gostava de conversar e diziam: - “Meu filho as coisas são assim”. Muita coisa eu me alembro e muita coisa esqueci. Gostava muito de conversar com esse povo mais velho. Sentava assim, a noite, e lá contava as coisas. Ainda tem coisa que lembrava, que aprendi quando era menino e nunca me esqueci. Eu tinha uma memória boa. Uma pessoa contava uma história todinha e eu ficava ouvindo. Depois contava tudinho. Mas a gente vai esquecendo.’

De fato, os descendentes não experimentaram todos os fatos narrados, mas mesmo essas experiências não deixaram de incluí-las em um repertório como se fossem suas, “pois a relação ingênua entre o ouvinte e o narrador é dominada pelo interesse em conservar o que foi narrado”465. Então com se explicaria a atitude de Fátima Alexandre ao chorar quando fala do sofrimento dos africanos trazidos para o Brasil como escravo? De algum modo a experiência da escravidão, da festa de Nossa Senhora do Rosário, da história do africano lhe pertence, pois ela se percebe implicada em tudo isso. Ao narrar o que ouviu dos antigos, não o faz sem grande emoção:

‘Aí ela dizia assim, ela batia na parede [da igreja de Nosso Senhor do Bonfim] e dizia assim: -Essa parede, essa parede foi feita de sangue, suor e lágrimas. Ai eu dizia assim: - Mas por quê, dona Luzia? Diga pra mim, porque, que a senhora diz. Aí ela dizia assim: - Sangue porque, foi que eles derramavam com o peso das pedras que eles carregavam nos ombros, né? E as mãos brotavam sangue pra construir a parede. Suor, que brotava do seu corpo, do cansaço, e lágrimas, da saudade que eles sentiam da sua terra466. ’

Fátima Alexandre ao narrar a experiência de outros, ao recuperar a memória dos antepassados que ela não conheceu, se engaja na compreensão do que está sendo narrado pela sua interlocutora referida na fala, dona Luzia467. Essa compreensão a leva ao reconhecimento de que essa também é sua história e se há esse entendimento é porque de alguma forma ela se identifica com a experiência de outros Negros e Negras. Isso me faz pensar que tem razão Jean Duvignaud (1983) ao afirmar que “As sociedades e os indivíduos têm competência para enfrentarem (sic) formas de experiência que não remontam ao acervo da cultura ou da civilização a que se vinculam468”.
Tomei Fátima Alexandre como exemplo de narradora porque ela se aproxima do tipo-ideal de narrador sugerido por Walter Benjamim (1996), pois “o narrador retira da experiência o que ele conta: sua própria experiência ou a relatada pelos outros469”. Essa característica estava presente em meus interlocutores quando indagados sobre a irmandade de Nossa Senhora do Rosário e a festa em homenagem à padroeira. Contudo, Fátima Alexandre é quem melhor engaja uma performance enquanto narra porque além de fazer uso da palavra também expressa a memória em gestos.

Notes
463.

W. Benjamim, Magia e Técnica, Arte e Política, São Paulo: Brasiliense, 1996, p. 199.

464.

Ibid, p. 199.

465.

Ibid, p. 210.

466.

Trecho da narrativa de Fátima Alexandre. Quixeramobim, 2007.

467.

Trata-se de Luiza Januária Alves de Paula, filha de Maria Januária, africana de “raça de Angola” que teria vivido em Quixeramobim até o princípio do século XX, conforme atesta sua neta Tereza Alves. Essa africana tinha quatro filhas (Maria, Luzia, Mundoca, Zefinha) e um filho José Alves de Paula. Provavelmente fez parte da confraria de Nossa Senhora do Rosário entre os anos de 1914-1923 e talvez se chamasse Maria Janoaria da Conceição Paulo.

468.

J. Duvignaud, Festas e Civilizações, Fortaleza, Tempo Brasileiro, 1983, p. 227.

469.

W. Benjamim, Magia e Técnica, Arte e Política, São Paulo: Brasiliense, 1996, p. 201.