11. 1 A festa do Rosário para os descendentes de antigos membros da irmandade

É provável que a irmandade de Nossa Senhora dos Homens Pretos de Quixeramobim tenha desaparecido nos anos que se seguiram à década de 1930, uma vez que nenhum registro posterior foi encontrado. Já a festa parece que teve continuidade até por volta dos anos de 1960, quando ainda estavam à frente os negros Matias e Barrozo. Embora não narrem respeitando uma cronologia ou ordenando linearmente os eventos, - nem poderiam, porquanto a memória em questão selecionou apenas fragmentos -, os descendentes recuperam as festividades em torno da Virgem do Rosário quando ainda ela era realizada, colocando-as como parte de suas experiências. Por outro lado, recobram a memória do tempo de Julião Barrozo de Oliveira470 e Antônio Matias, tempo mais recuado do qual só ouviram falar.
A festa pode ter passado, depois da morte desses dois protagonistas, a ser ela mesma um momento de rememoração do engajamento dos Negros e de outros protagonistas. É fato que a comunidade que os sustentava se desintegrou e se os descendentes desses antigos membros da irmandade do Rosário rememoram, mesmo estimulados por um pesquisador, é porque querem de algum modo recompor os fios das sociabilidades que davam sentido às suas existências. Em alguns momentos também esses descendentes se encarregaram, eles mesmos, de dar continuidade, por algumas décadas ainda, à realização da festa de sua padroeira. Conforme Raimundo Barrozo, quando seu pai adoeceu as responsabilidades foram passadas para Antônio Matias, em 1925, dentre estas estavam incluídas: o zelo da igreja e a administração de seus bens. Em relação a essas responsabilidades, Raimundo Barroso ainda atesta que “ele, [seu pai Julião Barrozo de Oliveira], tinha muita responsabilidade. Foi oficial de justiça. Era encarregado da igreja, das festas de Nossa Senhora do Rosário. Era responsável pelo terreno da Santa na serra de Santa Maria. Para o uso desse terreno pagavam uma renda”471.
Além de trazerem nas narrativas os nomes dos responsáveis pelos festejos, o que mais a memória selecionou foi o brilho, a música, a iluminação Prosseguindo com o relato de Raimundo Barrozo, ele conta que nessa época ainda havia o costume do uso das opas durante a festa e o templo do Rosário era iluminado com lamparinas472. A iluminação, que dava esplendor à festa, marcava de algum modo uma ruptura com os dias ordinários e talvez não seja por outra razão que esse fato tenha sido recuperado também pela memória de Dora Monteiro.

‘Essa igreja era dos escravos, no tempo dos escravos, eles eram os Pretos, eram quem tomavam conta, aí vinha o senhor, o Julião, (...)ele ia botar duas, duas lamparina, era lamparina, viu, uma num cantinho, outra noutro, daquelas, daquelas coisas lá de cima, e nós ia atrás pra ver ele botar lá, menina, a gente brincava tanto naquela Igreja do Rosário! Brincava de chicote queimado, brincava de disparar, ali na frente da igreja473.’

Registrou também na memória o efeito da iluminação Ismael Pordeus (1956) ao revelar que “à noite, o pequeno templo, tinha, pelo lado externo, iluminação com candeias de azeite, que mais tarde foram substituídas por grandes lamparinas a querosene474”. A mudança de candeias de azeite para lamparinas a querosene ficou registrada nas despesas constantes no livro Lançamento de Despesas e Receitas da Confraria de Nossa Senhora do Rosário (1910-1919) quando passou ai figurar não mais o item óleo e sim “gás para iluminação” por ocasião das missas na capela do Rosário.Iluminar o templo não tinha uma função apenas prática, isto é, clarear o recinto, essa ação tinha uma função simbólica e não é por acaso que era Julião Barrozo de Oliveira a tomar para si essa responsabilidade, como salientou Dora Monteiro.
Ao tratar do tema da iluminação no livro Festas e Utopias no Brasil Colonial, Mary Del Priore (2002) descreve a importância que esta exercia nas festas coloniais, pois aí se estabelecia um contraponto com “as noites escuras, em que, normalmente, só havia repouso ou medo475”. Atesta a autora que esse aspecto se revelava como demarcador do status dos membros de uma comunidade uma vez que “o caráter metafórico da iluminação aparecia também para marcar o lugar dos indivíduos no interior de sua comunidade. Quem mais oferecesse luminárias, mais status adquiria em relação aos seus pares e mais poder reafirmaria em relação à comunidade476”. (Grifos da autora).
As festas organizadas pela irmandade de Nossa Senhora do Rosário traziam as características das festas coloniais tal como descreve Mary Del Priore. A extravagância e a opulência do barroco também tomavam lugar nas festas religiosas de Quixeramobim, características ainda persistentes nos festejos religiosos atuais como na festa de Santo Antônio. Voltando à festa do Rosário, constata-se que além da iluminação, dos fogos, do colorido das opas ainda havia o costume de ingestão de bebidas. Não se tratava de qualquer bebida e sim da gingibirra 477 , feita a base de erva doce, cravo e pão, destaca Raimundo Barrozo. Dona Monteiro também faz referência a essa bebida afirmando que “(...), seu Julião, no leilão, vendia gingibirra: Você conhece gingibirra, essa bebida? Conhece? Ele levava um potinho assim de gingibirra pro leilão”478. Além de lembrar-se do recipiente onde era feita a bebida, um pote, Raimundo Barroso narrou o processo de fabricação da mesma, um saber-fazer que lhe fora transmitido pelo pai Julião Barrozo e de conhecimento restrito da família. “Pisa o erva doce e o cravo. Põe dentro do pote com água e aí põe o pão para fermentar. Passa a noite fechado, amarrado com um pano. Para beber é bom colocar um pouco de bicarbonato e fica igual a cerveja479
Esses aspectos narrados por Raimundo Barrozo, pouco revelados nos documentos analisados anteriormente, enriquecem a compreensão dessa sociabilidade que para os Negros tinham o sentido de integração e de participação. A integração tinha um duplo sentido: um voltado para o próprio grupo, pois a festa era um momento de reunião das famílias negras e outro em direção aos Brancos uma vez que a sua participação era almejada. A participação implicava tanto na organização como na execução do evento. Embora na organização o engajamento dos Negros fosse mais marcante, não deixava de ser uma exigência que os Brancos também participassem com empenho e interesse. É isso que me permite compreender a narrativa que segue:

‘Quando chegava o mês de outubro ele, Antônio (de Maria Águida480) e os da família Barroso, saíam nas casas convidando quem queria trabalhar na festa de Nossa Senhora do Rosário. Ele (Antônio da Maria Águida) fazia reunião e dividia as pessoas que quisessem (participar). Faziam durante três noites: quermesse, leilão, partidos. Uma turma era dos Negros, outra turma dos Brancos. Os Negros tinham muita vontade e gosto. Inventavam barraquinhas do partido azul e colocavam prendas e brinquedos dentro da barraca. Faziam cestinhas pequenas e colocavam dentro, também pra venderem. E como vendiam. Eles, Brancos faziam sua parte mas não tinha interesse. Os Negros mandavam buscar música em Aracoiaba pra animar a festa. Era tão animada! (...) No dia 31 (de outubro) havia missa campal e procissão muito bem organizada. O povo trazia prendas para o leilão. A Festa de Nossa Senhora do Rosário era bem animada quando os Pretos tomavam conta.481

Participação e desinteresse eram demarcadores de diferenças entre Negros e Brancos na principal sociabilidade negra em Quixeramobim. Isso significava a percepção de que os Negros estavam mais envolvidos nos rituais festivos do Rosário enquanto os Brancos traziam pouca animação. A participação era uma exigência para todos que estivessem presentes e se caracterizava pelo empenho em executar as danças e encenações. Então, ela tinha um sentido diferente daquele proposto por Célia Maria Borges (2005) para as irmandades negras de Minas Gerais. Para a autora, essa noção era uma chave “para explicar o fenômeno do envolvimento dos Negros em Minas com relação aos bens simbólicos da religião dominante”482. Participação que poderia “ir de uma simples observação a uma interação mais profunda483”. No caso de Quixeramobim, através das falas dos descendentes fica claro que esse critério era importante. Contudo, o que se almejava não era um envolvimento superficial, desinteressado, e sim uma demonstração de que o participante sabia executar o ritual, cantando, manifestando alegria de festejar Nossa Senhora do Rosário.

Notes
470.

A repetição desse nome em virtude de existirem pai e filho assim chamados, isto é, Julião Barrozo, pode produzir confusões. Para que tal não ocorra, vou utilizar a palavra “filho” quando estiver me reportando ao narrador que ainda vive em Quixeramobim.

471.

Trecho do diálogo que tive com Raimundo Barroso em sua casa. Quixeramobim, 2007. Como expliquei na primeira parte desse texto, tive apenas um encontro e uma conversa informal com Raimundo Barrozo, em 2007, devido encontrar-se doente e vindo a falecer em seguida.

472.

Conforme Raimundo Barrozo. Quixeramobim, 2007.

473.

Dora Monteiro, Quixeramobim, 2007.

474.

I. Pordeus, Antônio Dias Ferreira e a matriz de Quixeramobim, In: Revista do Instituto do Ceará, Fortaleza, 1956, p. 80.

475.

M. Del Priore, Festas e Utopias no Brasil Colonial, São Paulo: Brasiliense, 2002, p. 33.

476.

Idem, p. 33-34.

477.

O nome se aproxima muito da aguardente giribita sobre a qual fez menção Manolo Frorentino (1997). Conforme o autor, citando Birmigham (1977), esse era um dos produtos utilizados na compra de escravo, pois “nos portos de domínio luso, as fazendas e aguardente brasileira giribita eram os principais produtos intercambiados por escravos era essa” In: Costas Negras, São Paulo: Companhia da Letras, 1997, p. 100. Em dicionário Aurélio o nome é atribuído à cachaça feita a base de melaço de cana. A bebida a qual se refere Raimundo Barroso e Dora Monteiro não é feita de cana. Não posso averiguar a origem africana da bebida produzida pelos Negros em Quixeramobim, mas Nei Lopes se refere em seu Dicionário Banto do Brasil ao vocábulo jerebita, afirmando, com base em A. Sarmento, citado por Raymundo (1933:135) que “Jerebita é o nome que dão os matambas de Angola à aguardente”. Novo Dicionário Banto do Brasil, Rio de Janeiro: Pallas, 2003.

478.

Trecho da fala de Dora Monteiro, Quixeramobim, 2007.

479.

Processo descrito por Raimundo Barrozo por ocasião de nossa conversa em sua casa, Quixeramobim, 2007.

480.

José Borges do Nascimento também fez referência a Antônio de Maria Águida, atribuindo-lhe responsabilidades na realização dos reis Congo. Inquiri-o se este fazia parte da “família dos pretos” e ele me respondeu prontamente que se tratava de uma pessoa cuja mãe era “filha de índio legítimo”. Ainda narrou que muitas vezes ele saia de dama no cortejo dos reis Congos.

481.

Texto escrito por dona Luiza após contato para entrevista. Nos sucessivos retornos a Quixeramobim procurei-a para dar prosseguimento ao nosso diálogo e agradecer pelo depoimento escrito, enviado pelo pesquisador Danilo Patrício.

482.

C. M. Borges, Escravos e libertos nas irmandades do Rosário, Juiz de Fora, Editora UFJF, 2005, 29.

483.

Ibid, p. 29.