11. 2 Os símbolos, o tempo e o espaço ritual

Jean Duvignaud (1983) observou o uso de uma simbologia referida à natureza nas festas da Nova Zelândia e da Nova Guiné com máscaras confeccionadas com elementos da agricultura. Por exemplo, um personagem com túnica em forma de espiga de milho. Em Fortaleza durante a festa de Yemanjá observou uma simbologia relacionada ao mar quando “homens e mulheres sobem e descem o suave declive da beira-mar, entram na água, saem dançando (…) levando com elas aquele bocado arrancado à natureza que animará, ao longo das compridas noites, o feitiço e as danças de possessão”484. Essas situações para o autor revelam que as festas são lócus de socialização da natureza. “Socializar a natureza para torná-la humana485”, diz Duvignaud.
Se as festas para Duvignaud constituíam momentos de humanização da natureza pela apropriação que as sociedades faziam de símbolos desse universo, gostaria de seguir esse mote em outro sentido para as festas de Nossa Senhora do Rosário em Quixemobim. Enfatizei linhas atrás, que as confrarias negras ensaiaram a possibilidade de dessacralizar o catolicismo, atribuindo-lhe uma dimensão política, econômica, social e cultural. Seguindo esse raciocínio (e identificando nelas uma quantidade de elementos “ditos” não-sagrados), penso que as festas negras podem ser entendidas como o lugar de “socializar o religioso para torná-lo humano”, em detrimento da compreensão que lhe inscreve apenas em uma dimensão sagrada.
A festa adquiria essa característica porque seus símbolos, que não são tirados da natureza, e sim do próprio universo religioso, são socializados. Esses símbolos, por exemplo, Nossa Senhora do Rosário, são o leitmotiv em torno do qual o Negro socializava sua experiência religiosa não sem arrastá-la para o mundo. Daí, tudo se misturar no período da festa, eleição, acolhida de novos irmãos na agremiação, prestação de contas, novenas, música e outros, pelo menos quando ela acontecia no âmbito da organização confrarial. A festa, sim, focada no símbolo da Virgem do Rosário, era o ritual de confirmação da existência de uma coletividade. Nesse sentido era o momento de reconstrução e de celebração dos laços comunitários tanto no passado mais recuado como no tempo mais presente.
Quanto aos espaços apropriados pela irmandade durante a festa e em outras ocasiões, a capela era o lócus privilegiado para os ofícios religiosos, por isso a cada ano era alvo de reparos, caiamento e recebia ornamentos e móveis novos de acordo com a necessidade. Era aí também que nos meses de fevereiro e março eram celebradas as missas para os irmãos mortos. Porém, esse espaço servia de consistório, isto é, era lugar onde aconteciam as assembléias da mesa regedora e gerais da irmandade. Era o lugar de acolhida de novos irmãos e onde se tomavam as principais decisões políticas da organização durante a festa.
Esse espaço assumia certa ambigüidade por reunir tanto os vivos como os mortos, presença que não poderia ser esquecida uma vez que os corpos de antigos membros da associação jaziam “das grades abaixo” na capela. Expressão que aparece nos registros de óbito para declarar o lugar onde seriam enterrados os mortos de que cuidava a confraria. Zelo desmesurado então era dedicado à capela sem esquecer o frontispício, onde foi encravado o primeiro vulto de Nossa Senhora do Rosário, adquirido pelos então escravos de “nação angola” no século XVIII. De longa data ele se encontra lá, protegido com uma vidraça e talvez seja o símbolo que remete os devotos de hoje ao passado mais distante da irmandade. O cruzeiro também recebia pintura nova por ocasião da festa. O reluzir que dele emanava na época certamente é o que não permitiu a memória esquecer a sua existência.

‘A festa do Rosário era em outubro. Era uma tradicional festa, comandada por essa família de Julião Barrozo. Alias minha tia dos Reis486, era cafezeira, fazia barraca de palha, era muito bonita. Na frente tinha um cruzeiro. Duas coisas que me lembro, o cruzeiro, lá da igreja do Rosário e o cruzeiro da igreja do senhor do Bonfim, que hoje é casa comercial. E tinha um galo487.’

O pátio como a igreja também ganhava mais vida, sendo aí onde se instalavam a bandeira da Santa e as barracas de palha e barracões, dando a entender aos comunais que o tempo era de festa. O patamar iluminado pelas lamparinas era apropriado pelas brincadeiras de roda de crianças, como bem lembrou Dora Monteiro. O que ficou desses espaços é o sentimento de que tudo mudou, pois já não existe o pátio nem os pés de tamarindo que abrigavam porventura os encontros amorosos dos jovens.

‘As festas, naquele pátio ali na frente onde vocês, onde fizeram aquele calçamento, fizeram a praça agora. Ali tudo era serra, não tinha, tinha uns pés de tamarina? Do lado direito, né?,Uns pés de tamarina. Dali partia os barracões até na calçada do mercado velho, onde fica localizado aquele mercado, tinha. Era festejado era com sofona. (...).488.’

A memória não deixaria de ancorar-se nesses espaços onde se processavam as diferentes performances da festa, fazendo emanar do passado os risos, a folgança, o colorido e o barulho. Ainda que seja difícil perceber a geografia da festa do Rosário através dos fragmentos da memória, insisti com os narradores que me descrevessem o que e onde acontecia. Conforme o fizeram deram relevo a alguns espaços, confirmando a tese de Maurice Halbwachs (1997) para quem a memória coletiva não encontraria suporte senão em um quadro espacial.

‘C’est sur l’espace, sur notre espace, - celui que nous occupons, où nous repassons souvent, où nous avons toujours accès, et qu’en tout cas notre imagination ou notre pensée est à chaque moment capable de reconstruire – qu’il faut tourner notre attention; c’est là que notre pensée doit se fixer, pour que reparaisse telle ou telle catégorie de souvenirs489.’

Então, a festa do Rosário dissociada do contexto da irmandade não deixou de ser promovida pelas famílias negras, com dança, música e comida. Os espaços físicos ocupados para a sua realização se estendiam para além do espaço “sagrado” do templo. Como ela compreendia novenas diárias, leilão, procissão, coroação e cortejo, a execução desses diferentes momentos dava-se na capela, no pátio contíguo, nas ruas e nas casas.
Na cadência dos souvenirs dos narradores os tempos relacionados aos festejos se misturam para dar coerência e homogeneidade. A dimensão positiva dessa idéia é distanciar a leitura, que proponho dos acontecimentos, da velha clivagem profano/sagrado, colocando de um lado o que sagrado e do outro o que profano. Ordep Serra (2005), tratando das festas de largo de Salvador se pergunta onde começaria e terminaria a fronteira dos pólos dessa díade. Os textos recolhidos dos narradores me produzem essa inquietação justamente até o momento de perceber que tudo está misturado no contexto da festa de Nossa Senhora do Rosário, ainda que se faça necessário a recomposição dos limites, como diria O.Serra.

‘A criatividade popular mistura tudo, dispõe unificadamente o desigual e o diferente, no tempo e na sociedade. (…) Assim, por um processo intermitente de negação entre os âmbitos das sociabilidades, o que seria sagrado confere sentido ao que seria profano. E nessa coreografia existencial há possibilidade de inversões, invasões, interseções, rupturas e reconstituição de limites. Tal como o construímos, sagrado e profano são re-metidos um ao outro. Seus contornos parecem mais vigorosas e delicadas fímbrias que divisas oficiais, inflexíveis490. ’

As narrativas sobre a festa de Nossa Senhora do Rosário e sobre a coroação produzem uma idéia de unidade temporal entre elas, impedindo de certo modo o reconhecimento das inversões, invasões, interseções e rupturas. Por exemplo, a manifestação do Congo passou a ser realizada dissociada dos festejos do Rosário, em outubro, vinculando-se à festa de Reis em janeiro. Embora a eleição e a coroação com cortejo dos reis tenham sido historicamente introduzidas pelas irmandades por ocasião das festas de Nossa Senhora do Rosário, o tempo de que faz uso Fátima Alexandre, na narrativa a seguir, deixa a entender que tudo acontecia na mesma ocasião. Atente que a narradora fala de coroação de “rei e rainha negra” e não de “Reis Congos”

‘Do primeiro de outubro ao dia 31 eles faziam todas as noites tinham a novena, aí tinha a festa de Nossa Senhora do Rosário, dia 31. Aí tinha os partidos vermelhos, que eles chamavam encarnado, e azul. Aí tinha leilão, tinha a coroação. Eles vinham, o rei e a rainha e o povo Negro vinham lá de seu Barroso, que era lá da Vitopa, o nome de uma propriedade deles, onde eles moravam, né? Aí eles vinham em procissão, traziam Nossa Senhora do Rosário. Era assim, lá eles passavam o dia dançando, matavam muitos animais, aí tinha almoço. Eu mesma participei várias, umas duas ou três vezes, não sei, que eu ia com meus avôs, esse meu tio Branco, pra lá. Ficávamos o dia lá. E quando era a tarde, era a tarde inteira o sanfoneiro tocando, o pessoal tocando e dançado. Aí fazia umas latadas e dançavam debaixo das latadas. Aí, quando era de seis horas da tarde a gente vinha em procissão, com Nossa Senhora, o rei e a rainha negra. Aí vinham pra frente da igreja do Rosário, lá tinha um trono e o rei e a rainha eram coroados. Aí depois tinha a celebração eucarística, né? Depois iam para dentro do pátio do colégio (patronato de Nossa Senhora do Rosário) e lá tinha o leilão com muitas prendas491

É provável que Fátima Alexandre tenha se apoiado em outras memórias para compor a sua versão sobre os eventos. Revelar isso não significa que a reconstrução de Fátima Alexandre não seja legítima. Pelo contrário, o que se pretende confirmar aqui é o pressuposto de Walter Benjamim (1996) de que um narrador(a) “pode recorrer ao acervo de toda uma vida (uma vida que não inclui apenas a própria experiência, mas em grande parte a experiência alheia (…)”. Assim, o que vale destacar é que a narradora faz uso de várias temporalidades para tratar da festa de Nossa Senhora do Rosário, dando conta de elementos do contexto menos recuado no tempo, quando a festa ainda era celebrada, mas já sem o suporte da organização confrarial. Importa reter ainda dessa constatação que, mesmo tendo a irmandade se desagregado depois dos anos de 1930, as famílias negras insistiram algumas décadas pela realização de uma festa com novena, missa e leilão no mês de outubro.
A experiência mnemônica de Fátima Alexandre se inscreve na recuperação de um tempo e de um espaço: a festa. No caso a festa de Nossa Senhora do Rosário assume ela essa dupla dimensão, sendo o tempo da manifestação do “povo negro”, que se apropria dela para realizar várias outros rituais: matança de animais, comilança, danças, cortejo, coroação dos reis negros, missa, procissão, leilão. Nesse sentido, ela é a ocasião para que várias outras sociabilidades venham à tona. Mas a festa, como espaço social que se abre para outros rituais, era acolhida em espaços propriamente físicos como a propriedade da família Barrozo, latadas, ruas, capela e pátio. Esses espaços/lugares onde acontecia a festa tomam a dimensão de um território, pois é neles que os narradores apóiam suas rememorações, imprimindo-lhes de certo modo uma significação.
Em quelque sorte os narradores elaboram uma representação desses espaços é aí que ancoram suas memórias. Ora, a memória reconstrói as relações da comunidade negra, as suas sociabilidades religiosas e festivas, as suas percepções e visões de mundo. Assim, se esses espaços adquirem um sentido nas narrativas é porque como diria Claude Raffestin (1993) “já é uma apropriação, uma empresa, um controle, portanto, mesmo se isso permanece nos limites de um conhecimento. Qualquer projeto no espaço que é expresso por uma representação revela a imagem desejada de um território, de um local de relações492.
Mais do que se inscrever em um território as narrativas talvez falem de um processo de territorialização. Isso significa um investimento de identificação com esses espaços.Assim, pensar na memória, seja individual, coletiva ou social, implica trazer a lume os lugares em que ela se ancora, pois ela não poderia existir senão se enraizando “no concreto, no espaço, no gesto, na imagem, no objeto"493. Em virtude dessa compreensão, esses espaços/lugares têm, para mim, o sentido de lugares de memória, como proposto por Pierre Nora (1993), embora eles não tenham sofrido nenhuma institucionalização que autorize assim designá-los. Para o autor, esses lugares se assentam sob a tríade: material, simbólica e funcional494. O investimento dos narradores dá-se, sobretudo, sobre a dimensão simbólica dos lugares/espaços como as festas, a rua, a serra de Santa Maria495. É nesses lugares/espaços onde cristalizam suas rememorações do passado que desenvolvem o sentimento de uma pertença, por conseguinte uma identidade.

Notes
484.

J. Duvignaud, Festas e civilizações, Fortaleza, Tempo Brasileiro, 1983, p. 77.

485.

Ibid, p. 88.

486.

Luiz Borges do Nascimento se reporta a segunda esposa de Julião Barrozo de Oliveira, Maria dos Reis Borges.

487.

Luiz Borges do Nascimento, Quixeramobim, 2007.

488.

Julião Barrozo (o filho), Quixeramobim, 2007.

489.

M. Halbwachs, La mémoire collective, Paris, Albin Michel, 1997, p. 209.

490.

O. Serra, O sagrado e o Profano na Bahia, Salvador, Edufba, 2005, p. 13.

491.

Entrevista concedida a mim em Junho de 2007.

492.

C. Raffestin, O que é território, in, P or uma geografia do poder . São Paulo, Ática, 1993.

493.

P. Nora, Entre memória e história. A problemática dos lugares, in: Revista do Programa de Estudos Pós-graduados em História e do Departamento de História . São Paulo, PUC, 1993.

494.

Ibid.

495.

O tema da serra de Santa Maria voltará quando estiver tratando do item memória coletiva.