11. 3 O cortejo do congo: significados e origem

A discussão de Duvignaud (1983) sobre as festas segue no sentido de refletir sobre a simbologia do uso das máscaras em algumas sociedades africanas e americanas. Mal comparando com as festas negras no Brasil, em especial as de Quixeramobim (no passado e no presente como os Reis Congos e o Reisado de Boi), os adereços e indumentárias talvez servissem de disfarce. É verdade que todos sabiam que o Negro ao usar uma coroa ou veste de realeza não passava a ser um rei de fato. Mas de algum modo se investia dessa representação para negociar alguns espaços sociais. Nesse sentido, o disfarce ou a máscara não protege, como diria Duvignaud, “ela nos orienta no sentido de uma diferença; conduz-nos sobre uma pista da cultura”496. De algum modo é isso que tenho como orientação quando tento recuperar as narrativas sobre a coroação dos Reis Congos497.
A memória também selecionou passagens dando destaque a essa antiga prática de coroação de reis, dos “tempos dos reis antigos” como salientou José Borges do Nascimento, (Dedim). Como em outros lugares, essa prática teria sido introduzida em Quixeramobim pela irmandade de Nossa Senhora do Rosário. Em 1854, os compromissos que regiam seu funcionamento destacam a eleição do rei e da rainha, cargos por devoção, ocupados pelo eleito por um ano, mediante pagamento de jóia de entrada de cinco mil réis, como foi já aludido. Observa-se que de todas as funções, essa era a que mais exigia recursos do seu pretendente.
Que essa prática sempre esteve associada às irmandades do Rosário, disso ninguém duvida. Já quanto à sua origem, nada mais diversificado do que suas interpretações. Passo a referir-me a algumas delas (Brandão, 1985; Oswaldo Barrozo, 1996; Tinhorão, 1997) mesmo sem saber em que medida essas explicações servem para os festejos dos Congos em Quixeramobim, pois poucos elementos desses festejos permaneceram e quase não pude perceber o seu significado nas falas dos narradores que participavam das encenações como os irmãos Raimundo (Safira) e Jose (Dedim) Borges do Nascimento. Esses protagonistas falam do tempo em que estiveram ligados ao Congo, estabelecendo também as relações que as famílias negras mantinham com ele. Se inferir um significado como base nos discursos dos participantes não é possível, considero oportuno retomar pelo menos os elementos de interpretações exógenas, buscando entender os fragmentos mnemônicos que restam dessa encenação. Talvez em razão disso se faça mais interessante aqui apresentar os traços dessa manifestação pela voz dos narradores que estiveram ligados, deixando de lado a preocupação com “o tempo zero” que deu surgimento ao evento.
No primeiro momento detenho-me na interpretação de Carlos Brandão (1985) e Oswaldo Barrozo (1996). Carlos Brandão porque descreve o auto do Congo em Goiás com base na memória dos participantes. Outra justificativa para trazer a lume o autor é o fato dele se deter nas interpretações de outros estudiosos como Mário de Andrade e Florestan Fernandes, o que possibilita contemplar indiretamente aqui as reflexões desses autores. Oswaldo Barrozo, seguindo também uma perspectiva etnográfica, procurou entender o significado da encenação do Congo, ato dramático que ainda é realizado pelos devotos de Nossa Senhora do Rosário no município de Milagres, no Ceará498.
A dança dos Congos em Goiás para Carlos Brandão (1985) é um ritual cujo significado deve ser buscado no contexto das “articulações sociais movidas, em sua organização e realização499”. Intentando aproximar-se das interpretações êmicas, o autor dará voz aos Negros brincantes do Congo não sem procurar o entendimento dos Brancos sobre o mesmo fato. Paradoxalmente, são esses últimos que atribuem aos Congos uma origem africana: “A dança rememora lutas passadas na África há muitos anos atrás e, em Goiás, é tão antiga quando a própria chegada dos escravos a região500”. Para os sujeitos que se articulam para realizar essa manifestação cultural ela “representa à louvação a alforria dos Negros, representa uma irmandade... Nós fazemos por devoção a Nossa Senhora do Rosário e São Benedito”501.
A imprecisão das hipóteses locais sobre o significado dos Congos é comum também, conforme o autor, aos investigadores que se debruçaram sobre o tema. Embora quase todos atribuam uma “herança africana” ao ritual, vão defender diferentes pontos de vista sobre o significado dos Congos. Destaca o autor:

‘Para Florestan Fernandes (1971: 240), embora a origem das Congadas de Sorocaba não seja exclusivamente africana, o seu motivo básico é a memória de lutas entre grupos hostis, onde se emprega inclusive, a representação dramatizada de embaixadas de guerra e de paz, cujo uso é comum na África. Mário de Andrade (1960: 315 e 1959: 17ss) associa as Congadas a rituais africanos de coroação periódica dos seus reis. O Congo faz referência a fatos da história africana, como as lutas e embaixadas entre forças de um certo Rei Cariongo e a Rainha Ginga502.’

Mário de Andrade, profundo conhecedor das tradições populares brasileiras, dá essa interpretação decerto com base nas versões que recolheu no Nordeste afora nos anos de 1960. Talvez em razão disso se explique a aproximação do significado atribuído aos Congos às práticas rituais até recentemente realizadas em Quixeramobim. Deixo a cena para os fragmentos da memória, pois por si sós, fazem sobressair as “articulações sociais movidas” para a realização da coroação dos reis Congos.

‘Tinha o rei, tinha rainha, tinha as danças. (…) Os Reis Congos, era outro, não tinha Boi503i. Tudo era canto, só era canto. Era bonito. Dos tempos dos reis antigos. (....). Sabe, já vinha coroado, com os cordões. Cada noite ia cantar numa casa. Nos Reis Congos eu trabalhava como índio. Tinha o cordão dos índios, tinha quatro índios. Era dois dum lado e dois do outro, ou melhor, seis índios, três de um lado e três de outro. A gente ia lá como índio. Eles iam atrás de matar o rei, era um combate, era como dois partidos504.’

O narrador dá aqui uma chave de leitura “eles iam atrás de matar o rei. Era um combate”. Um combate entre dois reis, dois partidos (vermelho e azul), dois grupos “étnicos” (Branco e Preto). Essa estrutura competitiva está presente, conforme Marlyse Meyer (1988) em danças populares brasileiras como a cavalhada e a chegança. A primeira um ritual eqüestre, portanto terrestre, realizado pela classe abastada de Pirenopólis, estado de Goiás e a outra uma “forme maritime”, realizada pela classe pobre de São Luiz de Paraitinga, no estado de São Paulo. As duas têm em comum o fato de serem realizadas no âmbito das festas do Divino Espírito Santo. A ambivalência seria produzida na forma recorrente com que aparecem os pares que compõem a competição no quadro dessas danças: fiéis e infiéis, mouros e cristãos, azul e vermelho505.
Essas clivagens, não necessariamente se repetindo dessa forma, estão também presentes na competição no ritual do Congo, ainda existentes em alguns municípios cearenses. Oswaldo Barroso fez uma pesquisa muito detalhada dos Reis Congos de Milagres, em 1996. Com base no que viu e assistiu, o autor afirma que ainda é comum essa encenação no mês de outubro, na localidade de nome Rosário, por ocasião da festa da padroeira Nossa Senhora do Rosário. “No desenrolar do espetáculo, o respeito às formas tradicionais começa no itinerário do grupo, que inclui o cortejo até a igreja, a participação na missa, as embaixadas e batalhas no patamar da igreja, a visita às casas para recolher donativos, a permanência do Rei e da Rainha no interior da igreja e o acompanhamento da procissão, ladeando o andor da Santa”506.
O significado atribuído pelos brincantes à encenação do Congo e ao culto de Nossa Senhora do Rosário ritualizam e reatualizam acontecimentos históricos passados no Brasil como a participação da princesa Isabel na abolição da escravidão. O rei Congo, D. Henrique, aparece na encenação desafiando o “rei brasileiro” Dom Pedro II por causa do cativeiro. A devoção ao Rosário também está intimamente ligada ao desejo dos escravos conquistarem sua liberdade. É essa interpretação que propõe o brincante mais antigo do Congo de Milagres Doca Zacarias:

‘No tempo em que havia o cativeiro, houve aquelas prisões, até que vêi a Princesa Isabel, que libertou o Brasil. Os escravos viviam presos, até que o Reis de Congo, que era da África, desafiou o Reis Brasileiro pra aquela luta. No dia em que foi pra sê libertado o Brasil, aí eles fizeram aquele rogativo à Nossa Senhora para que se ela livrasse eles daquilo, eles formariam aquela brincadeira. Então os Reis de Congo ganhou e aí ficou esse movimento do Congo. Antes do cativeiro sê abolido no Brasil, havia um Caboclo, que estava preso com seus colegas, era cativo. Então uma Santa apareceu a eles, com um rusaro na mão. Então eles fizeram uma promessa à Santa, de que se fossem libertados, iriam dançá e tirá aquelas peça, brincando Congo. Aí eles levantaram a capela do Rusaro e começou a brincadeira507. ’

Essa interpretação dá muito a pensar sobre os tempos históricos que se misturam na narrativa (o rei Congo e Dom Pedro II) e ainda como o tema da liberdade é recorrente. Sobre esse último ponto, vale lembrar a ligeira aproximação existente entre os Congos de Milagres e os atos dramáticos de Goiás, estudados por Brandão, assim como os caboclos se assemelhariam aos índios presentes, conforme revelou José Borges do Nascimento (Dedim), no ato dramático realizado em Quixeramobim. Outrossim não se pode esquecer que aí também se trava um combate entre realezas, destacando-se o rei do Congo.
Raimundo Borges do Nascimento (Safira) embora tenha esquecido boa parte das cenas que compunham a coroação e cortejo do Congo traz alguns elementos que confirmam uma estrutura fundada em uma batalha e os personagens representados. Note-se que o narrador faz alusão à importância que tinha Raimundo Barrozo nas encenações.

‘Tinha dois tipos de reisado. Reis Congo, esse daí, importante era Raimundo Barrozo, que era o cantador. Cantava na cabeça. O outro era Gregório da Paulina, esse faleceu. Era muito importante, muito bonito, reis Congo. Tinha a história de D. Henrique. Era muito bonita. Dizam assim:

Dom Henrique rei Cariongo,
Homem forte e traidor
Viva o chefe da guerra
Viva o nosso imperador.
A bandeira da pátria chama
(?)
Viva o chefe da guerra que comanda o batalhão
Ai vassalo respondia:
Estás preso!
Preso?
Preso
Quando o vassalo se aproximava do rei, ai tinha um cântico muito bonito:
Dom Henrique reis cariongo (Bis)
Quem te mandou reis combater?
Agora infeliz tem que morrer
E ele respondia:
Reis não me mate por piedade
Também sou filho de majestade’

A descrição de parte da batalha envolvendo o rei do Congo e o vassalo me deixa a mesma impressão que Marlise Meyer (1988) encontrou acerca da ambiguidade da figura do Rei na congada nordestina. “Le roi du Congo, Henrique, rei Cariongo, est une figure en même temps comique et tragique; solennel et bouffon, il affirme sa majesté mais ne n’hésite pas à se cacher sous son trône quand la peur d’un ennemi le prend; ses différents titres sont eux-mêmes contradictoires508». Ele é no trecho acima ao mesmo tempo forte, característica positiva, e traidor, característica negativa. Na encenação de Milagres o caráter ambíguo do rei estaria nas falas: Nosso Rei Dom Cariongo/ Tu vais ganhar o teu dinheiro/ Quando se vê prisioneiro509”. Gostaria de chamar atenção para o sentido que Nei Lopes (2003) dá a expressão cariongo “o termo vem do quimbundo kadiangu, isto é, malandro. O sentido então seria o de malfeitor, bandido”. Outra acepção é aquela de “um rei mítico afro-brasileiro personificado nas congadas”510. Considerando o primeiro entendimento do termo, em muito ela se aproxima da idéia de um Rei forte e traidor, como era encenado em Quixeramobim.
Sem deter-se muito na forma como acontecia a coroação e o cortejo do Congo, Julião Barrozo (o filho) faz alusão ao momento incial da festa, dando a entender que dois blocos se formavam: os dos Pretos e o dos Brancos. Ao se formarem os grupos em cordão saíam em direção à capela do Rosário. No momento em que o cortejo seguia para o patronato, o bloco dos “Pretos” cantavam:

‘Quando puxava, fazia o cordão, saia da casa de uma irmã minha, a finada mocinha, que era atrás do patronato. Cordão do bloco dos s para entrar no salão. Eles cantavam assim: Vamos, vamos companheiros / para a nossa barraquinha / alegria presenteiam, alegria presenteiam, animar essa festinha / Nossa Senhora do Rosário, nos dá força e proteção / só para nos proteger, nessa noite de alegria, com prazer no coração / nos bancos da barraquinha, é simplesmente sem igual / por fazer a tua parte neste lindo festival / auto lá, auto lá, auto lá, arreda do caminho, deixa as morena passar / auto lá, auto lá, auto lá, arreda do caminho, deixa as morena passar / nós viemos bem de longe, não podemos demorar / o belo dia de hoje, nós queremos festejar.’

Supondo que essa música tenha sido transmitida de geração em geração, ela forneceria indicações para se pensar nos demarcadores de diferenças que a festa procurava refletir. Na verdade, a festa mesmo com a participação dos Brancos, era considerada como dos Negros ou das famílias negras aqui identificadas como as morenas, daí o sentido de se cantar “arreda do caminho, deixa as morenas passar”. Quanto ao verso “nós viemos bem de longe” poderia ser uma referência ao fato de terem vindo de “um longe, além-mar”, esse sentimento também era desenvolvido entre os membros da irmandade, como já foi indicado o exemplo de Maria Januária511, ou o de terem saído das fazendas como era comum acontecer no período das festas de comemoração da padroeira da irmandade. Como salientou Ismael Pordeus (1956), certo ano, “Eleitos rei e rainha, certo casal de pretos moradores na Serra de Santa Maria teve entrada triunfal na sede da Freguesia. Seus “vassalos” foram encontrá-los (rei e rainha) à altura da “Lagoa Sabiá” e daí os conduziram em grandes redes brancas e toldas, até a Igreja do Rosário, onde foram coroados512”.

Notes
496.

J. Duvignaud, op. cit., p. 89.

497.

O desfile do maracatu na capital cearense, Fortaleza, durante o carnaval, traz elementos que se aproximam da coroação dos reis Congos como o rei, a rainha e a ala dos índios. Há inclusive uma tendência entre os pesquisadores em atribuir sua origem às transformações ocorridas na encenação dos Reis Congos praticada pela confraria de Nossa Senhora do Rosário da capital por ocasião dos festejos do Rosário. Ana Claudia Rodrigues Silva (2004), de certo modo ratificando essa tese, fez importante discussão sobre esse aspecto em sua dissertação de mestrado intitulada Vamos maracatucar. Um estudo sobre os maracatus cearenses. O que aproximaria o maracatu dos reis Congos para a autora seria o fato de recuperarem “o cortejo real em homenagem aos reis africanos” (p. 55). Sem fazer jus a uma discussão sobre o disfarce ou a utilização de máscara, a autora questiona o porque do uso do rosto pintado em negro pelos componentes do maracatu, especialmente pelo rei e rainha. O uso do rosto pintado não parece ser exclusivo do maracatu cearense. Silvia Hunold Lara (2007), recuperando Antônio Brasio afirma que “À Moncorvo (Portugal), il existe des témoignages datés de 1930-1936, d’une danse de Noirs realisé par la confrérie de Notre-Dame du Rosaire le jour des Rois. Le nom de cette danse est lié au fait que les participants portaient le visage peint en noir». Silvia Hunold Lara (2007) “Une fête pour les historiens. La relation de Francisco Calmon (1762) et la figure du Roi du Congo dans le Brésil colonial», in Cahier du Brésil contemporain, Paris, 2007, p. 24.

498.

Milagres está localizado na região que compreende o vale do Cariri, a sul do Ceará. Essa região faz divisa com o estado de Pernambuco e foi no período colonial uma das poucas a desenvolver uma economia em torno do plantio de cana e da indústria dos engenhos de rapadura para os quais eram empregados cativos importados de Pernambuco.

499.

C. Brandão, Memória do Sagrado, estudos de religião e ritual, São Paulo, Paulinas, 1985, p. 211.

500.

Ibid, p. 212.

501.

Ibid, p. 215.

502.

Ibid, p. 216.

503.

Boi aqui é uma referência a uma manifestação cultural ainda realizada em Quixeramobim, intitulada de Boi de Reisado da qual o narrador já participou. Ele estabelece a diferença entre as duas manifestações, mas muitos elementos do cortejo de Congo foram incorporados a ela como o rei e a rainha. Essa manifestação parece agregar também hoje indistintamente Negros e Brancos. Tive oportunidade de acompanhar uma apresentação do colégio de Nossa Senhora do Rosário. Remetam-se as fotografias anexas.

504.

José Borges do Nascimento (Dedim), Quixeramobim, 2007.

505.

M. Meyer, Charlemagne, Roi du Congo. Notes sur la presence corolinglenne dans la culture populaire brésilienne, In, Cahier du Brésil Contemporain, 1988, nº 5. Consultado na internet no site http://www.revues.msh-paris.fr/vernumpub/4-MARLYSE_MEYER.pdf em 30 de março de 2009.

506.

O. Barroso, Reis de Congo,Fortaleza, Museu da Imagem e do Som, 1996, 59.

507.

Interpretação de Doca Zacárias recupera por O. Barrozo, op. cit., p. 59.

508.

M.Meyer, op. cit. p. 9.

509.

O. Barroso, Op. cit., p. 55.

510.

Para Nei Lopes (2003) cariongo é d origem banto e “era o nome de dois sobados na Angola colonial”. In, Novo Dicionário Banto do Brasil, Rio de Janeiro, Pallas, 2003, p. 70.

511.

Reportar-se a nota 464 neste capítulo.

512.

I. Pordeus, “Antônio Dias Ferreira e a matriz de Quixeramobim”, In: Revista do Instituto do Ceará, Fortaleza, 1956, p. 80.