11. 3. 1 Eventos históricos “fundantes “ da coroação dos Reis Congos

Dom Henrique seria ele o rei congolês, sucessor de Afonso I do Congo, convertido ao cristianismo no século XV513, pois seguindo o exemplo do potentado de Soyo “também Muemba Nzinga, o mani Congo – de onde o nome Manicongo – houve por bem fazer-se baptizar com o nome cristão Afonso I (....)”514. José Ramos Tinhorão recupera esse dado histórico, atribuindo uma vinculação com a coroação de reis do Congo, praticada em Lisboa no século XVI, por iniciativa dos Negros das confrarias de Nossa Senhora do Rosário515 Conforme J. Ramos Tinhorão:

‘A solenidade da coroação teatral de reis do Congo dentro de igrejas, em Portugal, por iniciativa dos Negros das confrarias de Nossa Senhora do Rosário, representou – provavelmente já a partir de meados do século XVI – um interessante reflexo da nova política posta em prática desde D. João II em relação aos negócios de África, e que seria continuada sem grandes alterações por D. Manuel e por D. João III, baseada sempre no propósito de garantir o fornecimento de escravos indispensáveis à sustentação de uma economia que a aventura da Índia, e a colonização do Brasil, tornavam cada vez mais dependente daquele comércio’

Via de regra, essa política era o reflexo da estreita relação do império português com a Igreja, que mais tarde veio, com Dom João II, a conferir aos lusos o controle dos negócios na África, tendo no apresamento e na escravização do africano seu apanágio. Obviamente que o que seguia a frente era o projeto missionário da África Negra, que teria se iniciado justamente quando Diogo Cão no reinado de Dom João II contatou o chefe “do maior conjunto de nações da região centro-ocidental de África, o chamado reino do Congo516”. A estratégia missionária teria sido uma grande investida de Dom Manuel, que intentava o beneplácito da Igreja para obter “adminsitração perpétua e hereditária da Ordem de Cristo517”.
Perseguindo esse objetivo teria Dom Manuel em 1512 pensado em organizar uma embaixada com representantes do Congo para enviar ao papa Júlio II em que oficialmente Afonso I se declararia cristão e obediente a Roma via Portugal. Malgrado a não concretização da iniciativa, o fato é que nesse espetáculo se engajaria o filho do mani do Congo, Henrique, já enviado a Portugal com a finalidade de tornar-se padre. Conforme J. Ramos Tinhorão a embaixada nunca teria entrado em Roma e o espetáculo teria se resumido a uma carta que Dom Manuel enviara ao papa na qual jurava obediência ao “Vigário de Deus” e “Pastor da Igreja Romana” e declarava “não contarei as façanhas gloriosas dos reis de Portugal de antanho (...) calarei a admirável conversão a Cristo do Rei de Manicongo, juntamente com uma inumerável multidão de rei, digo, ou maior e o mais poderoso de toda a Etiópia”518. Então “les danses de Congo rappelaient ainsi le sucès de la politique missionaire du Portugal en Áfrique et, tou spécialment, la rapide et victoriuse christianisation du Congo», sentencia Silvia Hunold Lara (2007)519.
Realidade histórica ou ficção, o fato é que o autor J. Ramos Tinhorão associa as encenações do Congo em Lisboa a esses eventos pensados pelos monarcas portugueses com demonstração da conversão dos reis do Congo ao cristianismo, estratégia, como já foi assinalado, visando obter a administração da Ordem de Cristo, o que conferiria ao império luso controle total nos negócios na África.

‘Assim, embora a sua origem tribal fosse a mais variada possível, a importância conferida por Dom Manuel, e depois por D. João III, ao vasto reino do Congo [que então abrangia área muito maior do que historicamente se passaria a conhecer sob aquele nome] forçosamente terá levado os escravos de Lisboa, oriundos das nações africanas ligadas politicamente ao chamado Manicongo – principalmente aqueles que na sua terra chegaram a ter posição de destaque –, a buscar de alguma forma o reconhecimento da sua superioridade sobre os demais520.’

No Brasil, as primeiras aparições do Congo talvez tenham ocorrido na região Nordeste. Em Pernambuco o explorador holandês Maurício de Nassau foi recepcionado com embaixadas de Congo em Recife521, em 1642. Para Gustavo Barroso (2004) a antiguidade dessa tradição aí é comprovada pelos compromissos das irmandades do Rosário de Igaraçu e Olinda aprovado em 1706, os quais atestam a existência de Reis Congos. No Ceará era e é certa a existência de Congos e eles também recebiam anuência da Assembléia Provincial através dos compromissos das irmandades que os abrigavam. “A eleição e coroação do Rei do Congo, sem ou com sua Rainha, se processava nessas confrarias. Depois, a autoridade policial ou legislativa, como no caso da Assembléia do Ceará, sancionava o fato522”.

Figura 11: Representação de Reis na dança Boi de Reisado em Quixeramobim
Figura 11: Representação de Reis na dança Boi de Reisado em Quixeramobim

Foto: Analucia S. Bezerra

Gustavo Barroso (2004) referindo-se às festas no Pernambuco holandês afirma que elas se “complicavam com ruidosas e espaventosas Embaixadas, de que eram gulosos os africanos, as quais se perpetuavam nas diversas formas, que foi revestido pelo tempo, além do chamado Auto dos Congos”523. Ao afirmar isso o autor infere a suposição de que se conservava nesses autos do Congo a memória de lutas ocorridas na África e mesmo fatos ocorridos no Brasil como as lutas travadas contra insurretos fugidos que fundavam os quilombos. Então nessas festas de rememoração histórica muita coisa estava em jogo. Com seus enfeites, coroas, cetros e vestes reais os Negros nas confrarias ou fora delas não deixavam de produzir uma crítica à ordem estabelecida. Não deixavam de atualizar a utopia de liberdade, conhecida só por ocasião da festa, pois era pela complacência, ainda que fingida, de seus senhores para com a devoção a Nossa Senhora do Rosário que os Negros poderiam dela participar. Por outro lado, a escolha e a coroação de seus reis não era nenhum fingimento, pelo contrário, as realezas, durante o ano, passavam a agir muitas vezes como intermediadoras nos conflitos quer envolvessem apenas os da comunidade negra ou de seus membros com indivíduos da sociedade: padres, senhores, enfim. Nesse sentido concordo com Jean Duvignaud (1983) ao propor que

‘Os personagens, disfarçados da cerimônia ou das festas, representam uma oportunidade, uma eventualidade de mudança da ordem das coisas ou do mundo, recordam a realidade virtual ou do possível em uma ordem estabelecida que parece ignorá-lo. O bailado dos signos, a festa onde os sistemas de classificação de um grupo ou de uma civilização dramatizam-se (...) são, pois, mais do que uma singela representação da cultura. Um sonho organizado adquire aí nitidez, apreendendo conteúdos onde os encontra524.’

Então, se a coroação de Reis Congos chegou a boa parte das regiões brasileiras é porque tinha a seu favor um instrumento de massificação, talvez a Igreja. Difícil é supor que os parcos padres nas capitanias tivessem tempo para assistir às almas e ainda pudessem dedicar-se na transmissão dessas experiências conhecidas na Europa, como supõem alguns autores que a Idade Média européia por qualquer motivo reis e rainhas eram eleitos e coroados. Van Gennep apud O. Barrozo (1996) descreve as reinages da França que em muito podem lembrar as coroações do Congo. “No primeiro domingo de maio, após as vésperas, o cura da paróquia nomeia para um novo ano, um Rei, uma Rainha, um Delfim, uma Delfina, um Condestável, todos obrigados a contribuir com as despesas paroquiais por um donativo em cera ou oferenda em dinheiro. Os eleitos saem da igreja dois a dois, um facho na mão, seguidos da multidão que os acompanha em procissão525”.
Eventualmente os padres poderiam se ocupar da transmissão desses costumes já disseminados nas metrópoles, utilizando-os como instrumento de exercício espiritual, mas nunca teriam sido o impulsionador dessa experiência. Se houve um agente de massificação teria sido o escravo vindo da África centro-ocidental. Quer tenha surgido na Europa, pouco importa. No meu entender o problema que se põe aqui é outro: como e porque meios o ritual de eleição e coroação de reis do Congo se tornou conhecido? Se ele foi fundado em Portugal como tentativa de manipular politicamente o reino do Congo nos séculos XV e XVI com a conversão do manicongo como pensou J. Ramos Tinhorão, em obra já referida, tanto melhor, pois aí converge uma interpretação de que só na África o Negro poderia ter tido acesso a esse evento e o incorporado como “tradição”526.
A partir daí poder-se-ia falar de tradução cultural e se houve massificação no Brasil do ritual de coroação dos reis Congo é porque tem a ver com um grande número de pessoas que o conhecia, os cativos importados do complexo africano centro-ocidental. Diante disso, talvez seja factível a afirmação de que o exercício já tinha sido vivido, apreendido, reelaborado e transmitido na própria África. Uma tradução apoiada em vários referentes culturais e porque não dizer em tradições diferentes (atente-se para o caráter dinâmico que essa noção adquire aqui). No Brasil, foi sendo enriquecido com eventos da história de cada região, mas mantendo-se provavelmente preso a um núcleo, um rei, uma rainha, uma batalha, cujo texto cultural dava sentido a conflitos, guerras, submissões, conversões. Os elementos culturais novos que foram introduzidos a esse núcleo de algum modo atualizavam esse texto. Por exemplo, a ala dos índios nos Reis Congos de Quixeramobim, não seria uma interpretação da Guerra dos Bárbaros527ocorrida no final dos séculos XVII e XVIII?
Outra chave de leitura que se poderia propor é aquela aventada por Marie Del Priore: a de uma circularidade cultural. As festas do Congo recuperariam elementos culturais de festas européias e incorporavam elementos das culturas indígenas. Assim “mesmo que afinado com as culturas européias e indígenas, esse grupo (mulheres, e Homens Negros e Mulatos no Brasil Colonial), não abria mão, todavia, de suas próprias raízes e utilizava a festa católica e branca para falar de tradições que tinham emigrado junto com ele da África”528. Ainda que se queira afirmar que as festas associadas às confrarias negras foram anestésicos do potencial de violência do Negro e um instrumento de imposição da religião do Branco, eu diria que as festas negras, notadamente a de comemoração do orago e as coroações de Reis Congos, foram canais de construção de identidades e de sociabilidade; foram espaços de invenção de uma nova existência do Negro.
“Nascer Preto, tornar-se Negro, conceber-se humano529”, diria P. de Santana Pinho (2004). Gostaria de acrescentar que esse projeto foi concebido e concretizado pelo próprio Negro. Ninguém além dele forjou e forja isso cotidianamente no Brasil. Mesmo a escravidão não o impediu de perseguir esse projeto fosse através das irmandades, dos candomblés, dos congos, das macumbas e dos maracatus. Por último acrescentaria que de algum modo, através das festas do Rosário e das coroações dos Reis Congos, o imaginário africano foi colonizando o imaginário europeu no Brasil. O Negro foi o principal agente nesse processo. Isso faz eco com algo já há muito tempo afirmado por Bastide (1971) de que “é preciso dizer, que pelo menos no início, foi a religião africana que desvirtuou o catolicismo530”.

Notes
513.

Afirma George Balandier (2009[1965]) que «Le règne d’Afonso Ier coincide presque avec la prémière époque de la christinisation. Dès son accession au pouvoir, ce souverain recherche des missionaires…et des bombardes et des mousquets afin de renforcer son camp – c'est-à-dire le parti moderniste ouvert au catholicisme». In le royaume de Kongo du XVI e au XVIII e siècle, Paris, Hachette Littératures.

514.

J. Ramos Tinhorão, Os Negros em Portugal. Uma presença silenciosa, Lisboa, Caminho, 1997, p. 150.

515.

. Op. cit., p. 148.

516.

Op. cit., p. 149.

517.

Op. cit., p. 151.

518.

J. Ramos Tinhorão, op. cit., p. 153.

519.

S. H. Lara, op cit., p. 35.

520.

Ibid, p, 155.

521.

Diz J. Ramos Tinhorão “curiosamente, a mais antiga referência a uma dramatização envolvendo a recepção de uma embaixada, por parte do rei do Congo, e encenada por africanos fora do seu continente, refere-se não a Portugal mas ao Brasil. Trata-se da descrição da visita de uma delegação de congueses ao príncipe Maurício de Nassau, governador do Brasil holandês, no Recife, em 1642, posta em crônica pelo holandês Gaspar Barlaeus na sua História dos feitos recentemente praticados durante oito anos no Brasil, editada em 1647. Op. cit. P. 156.

522.

G. Barroso, À Margem da história do Ceará, São Paulo, ABC, 2004, p. 364.

523.

G. Barroso, op.cit., p. 365.

524.

J. Duvignaud, op. cit., p. 90.

525.

Van Gennep apud O. Barroso op. cit., p. 72.

526.

Para mim, tradição é um conceito dinâmico e como diria Stuart Hall (2003) ele nada tem a ver, nesse contexto, com a mera repetição de modelos. Assim, elle está relacionado com “formas de associação e articulação dos elementos”. (p. 259). Ainda conforme o autor “Os elementos da “tradição” não só podem ser reorganizados para se articular a diferentes práticas e posições e adquirir um novo significado e relevância. Com frequência, também, a luta cultural surge mais intensamente naquele ponto onde tradições distintas e antagônicas se encontram e se cruzam”. (p. 260). Ao dizer isso Hall está fazendo uma critica ao conceito de cultura popular que normalmente é vinculada à tradição como repetição de velhas formas. A tradição é um elemento vital da cultura e esta última não poderia ser concebida senão como “formas de luta”. In Da diápora, identidades e mediações culturais, Belo Horizonte, Humanitas, 2003.

527.

Movimento de resistência de alguns grupos indígenas da Capitania do Ceará contra o invasor português no século XVII e XVIII. A resistência ocasionou a organização da Confederação dos Cariris, reunindo aí grupos indígenas de outras capitanias como Pernambuco, Rio Grande do Norte e Paraíba. Em um primeiro momento o movimento se caracterizou pela fuga dos índios dos aldeamentos missionários e da escravidão a que muitos eram submetidos. O outro momento foi caracterizado por ataques a fazendas e vilas, o que teria levado o Governo Geral do Brasil a reprimir violentamente os indígenas confederados.

528.

M. Del Priore, op. cit., p. 80.

529.

P. de S. Pinho, Reinvenção da África na Bahia, São Paulo, Annablume, 2004, p. 151.

530.

R. Bastide, As religiões africanas no Brasil , São Paulo, Pioneira, 1971, p. 202.