Capítulo 12
Identidade e Sociabilidade

12.1 O fazer e o viver religioso de Quixeramobim

Tentei no capítulo anterior seguir algumas pegadas da memória para compreender o significado da festa de Nossa Senhora do Rosário para os descendentes de antigos membros da irmandade, recuperando outros eventos que estiveram relacionados a ela como a encenação dos Reis Congos. Destaque foi dado ao envolvimento das famílias negras com a realização da festa mesmo quando esta já estava dissociada da associação confrarial. Esse tema ficou totalmente preso à memória oral e em razão disso julgo necessário dizer que apesar de fragmentária, ela permitiu reconstituir aspectos importantes dessa sociabilidade negra em Quixeramobim. Com efeito, podendo-se afirmar “assim aconteceu, assim foi vivida, assim foi interpretada”. Dito isto, as narrações sobre a festa de Nossa Senhora do Rosário e a coroação dos Reis Negros em muito se aproximam de uma idéia de mito uma vez que ela evoca uma explicação de como “tudo aconteceu” e de como “tudo surgiu”. Essa idéia de mito se apóia também nas mise en scène de Fátima Alexandre durante a festa do padroeiro da cidade Santo Antônio, evocando as imagens do passado, com o intuito de valorizar, conforme ela própria, a história do Negro. Sintetiza a atitude da narradora, que será apresentada adiante, o que J. Duvignaud (1993) salientou sobre o mito expresso em gesto. “o mito expresso em gesto é ainda mais rico que o mito narrado, não só porque ele aparenta um como se da existência e nos engaja na vida imaginária, mas, sobretudo porque extrai o mito da linguagem e o substitui na rede de uma comunicação531”. Bem sabe Fátima Alexandre escolher o momento em que deve colocar em rede esse mito: a festa de Santo Antônio.
Tive oportunidade de acompanhar in loco esse ato religioso no mês de junho. A respeito dele se sobressaiam três temas nas conversas agora não mais com os narradores e sim com autoridades religiosas e estudantes de história: catolicismo barroco, processo de romanização e a idéia de profano/sagrado. Os dois primeiros assuntos eram discutidos especialmente pelo padre Alexandre, mestre em teologia e atual vigário da paróquia de Quixeramobim. Em linhas gerais, ele tentava me mostrar que a festa de Santo Antônio assim como todo catolicismo observado na paróquia se caracterizava por um catolicismo devocional, datando-o do século XVII e cujo traço marcante seria o culto de santos medievais, celebrados com exacerbação das emoções. Daí se justificar uso de fogos, o colorido, a música. Essas práticas religiosas não teriam sido superadas completamente quando se instaurou no Brasil os princípios da romanização em detrimento de um catolicismo popular.
Quanto ao par profano/sagrado, vejo com surpresa que ele tem se vulgarizado, sendo empregado ordinariamente por qualquer pessoa quando quer dizer algo sobre uma manifestação religiosa. O uso dessa categoria expressa nada mais que a festa de Santo Antônio instaura uma verdadeira associação desses dois elementos, de modo a não se prescindir das dimensões econômica, social, simbólica e religiosa na sua análise.
O assunto do profano em meio ao religioso ainda é largamente comentado nas mesas de bar e em ocasião muito especial, no dia nove de junho, quando participei da reunião promovida pela organização não-governamental Iphanaq532, na qual procurei tratar da importância de se cuidar dos arquivos. Ainda que a discussão não tenha sido desencadeada pelo que apresentei, achei-a oportuna porque estava conectada ao evento da festa e porque se desvinculava daqueles entendimentos que tendem a opor o profano ao sagrado. Pelo contrário, parecia se chegar ao entendimento de que os dois estão tão imbricados que difícil é acontecer um sem o outro, particularmente na festa do padroeiro Santo Antônio.
A festa do padroeiro é um acontecimento na vida do gente de Quixeramobim tanto do ponto de vista financeiro como religioso. Durante 13 dias grande parte dos moradores se ocupa com sua preparação e a noite com sua realização. Eram inúmeras barracas ocupando todo o espaço do entorno da igreja e um grande barracão que passava a funcionar à noite depois da celebração da missa com a venda de comes e bebes. É lá onde também realizavam algumas apresentações culturais e os leilões, ocasião em que se concentravam muitas pessoas de posse para arrematar as prendas. O barracão era investimento da igreja e o lucro daí obtido é para ela. Se na festa circulava muito dinheiro tanto para a igreja como para os que estão envolvidos nela (comerciantes, barraqueiros), circulavam também muitas fofocas sobre os rendimentos e sobre conflitos e tensões em torno da preparação da festa e da sua condução. É a dinâmica própria de uma cidade interiorana que se torna mais visível e mais perceptível nos momentos celebrativos.
A praça, que era uma continuação do barracão, era tomada diariamente por pessoas de todas as idades para dançar o forró. As bandas de forró ocupavam um grande palco aí instalado para essa finalidade, sendo suas apresentações projetadas em telões. O curioso é que uma dose grande de “profano” – os namoricos, a exibição dos corpos,as danças libidinosas – acabava sendo testemunhada por uma imagem de N. Senhora de Fátima fixada no meio da praça, motivo de comentários dos mais letrados. De qualquer modo, foi interessante participar de alguns momentos dos festejos e mesmo perceber como um evento desses instaura outra dinâmica na vida comunitária e como revela o mais profundo de sua organização social.

Figura 12: Música por ocasião da festa de Santo Antônio
Figura 12: Música por ocasião da festa de Santo Antônio

Foto : Analucia S. Bezerra

De certo modo, a festa exacerba os conflitos de interesses porque é aí que se atualizam ou se redefinem as posições dos atores envolvidos nela. Não é demais dizer que ela é um microcosmo que reflete uma determinada configuração social. Ao acompanhar os comentários diários dos padres a respeito dos conflitos e divergências, pude perceber que a unidade desejada pela igreja, está apenas no plano da retórica, nem poderia ser diferente. Na verdade, essa festa somente revela o quanto a Igreja local não se constitui uma unidade, abrigando correntes diversas como os carismáticos e grupos mais preocupados com os problemas sociais. Cada grupo desses quer constituir uma hegemonia a partir de suas convicções teológicas. O que eles pareciam disputar no espaço da festa era a possibilidade de vir a se impor como orientação religiosa533.
Essa característica do catolicismo em Quixeramobim em nada parece ter mudado nos últimos tempos no que diz respeito à presença dos leigos na condução das atividades religiosas. Há uma concentração das ações nas mãos dos jovens e agentes pastorais, mas o que salta aos olhos é o predomínio dos aspectos festivo e emocional que estes impulsionam. Já o conteúdo das celebrações segue duas linhas teológicas, uma se fazendo porta voz da justiça social não sem uma vinculação com as mensagens dos evangelhos e com a própria história do santo que é celebrado e outra insistindo na participação dos sacramentos. Quando a linha teológica pende para a denúncia das injustiças, aí se observa algumas inovações na indumentária, na liturgia e nos cânticos. Mas retirando a atualidade dos temas abordadas nesses momentos e sua carga política, o que chama a atenção é uma “retomada” de práticas aparentemente esquecidas que possivelmente a memória coletiva registrou.
Não estou falando de continuidade, mas de persistências que são atualizadas e ressignificadas em conformidade com as exigências do presente. O que leva Fátima Alexandre a se “vestir como negra” e a insistir sobre o tema da miscigenação das raças na festa de Santo Antônio provavelmente tem a ver com o fato de um dia o Negro (escravo ou livre) ter tido seus espaços de celebração. Ademais, não se pode esquecer que a irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos em 1854 assegurava nos seus estatutos a participação da associação nas festas do padroeiro na matriz a cada ano. Então eram as festas de Santo Antônio também momentos de visibilidade dos Negros irmanados. Mesmo com a anuência e a permissão da sociedade colonial, muitos espaços foram gradativamente desaparecendo, daí a urgência de criar ou reinventar novos espaços.

Figura 13: Capoeira por ocasião da festa de Santo Antônio
Figura 13: Capoeira por ocasião da festa de Santo Antônio

Foto: Analucia S. Bezerra

Ainda que o contexto seja outro, o fato é que a população negra do Brasil continua procurando essas brechas para se expressar, pois esses espaços nunca lhe são totalmente permitidos, principalmente quando se anuncia a reivindicação de uma diferenciação étnica. Historicamente o Negro tem ou criado espaços alternativos ou tem procurado recriar aqueles que lhe são concedidos. Daí a confusão de que o Negro é plenamente aceito na sociedade e goza de todos os direitos. Nada mais ilusório, diria. A propósito das possibilidades de recriação de espaços, penso que os Negros, durante a festa de Santo Antônio, se investiram nela, daí porque esse evento de constituiu em um momento onde todos poderiam buscar uma visibilidade. Então, era perceptível a criação de alguns territórios no espaço que compreendia a festa. Esses territórios nada mais eram do que apropriações esporádicas de determinados espaços, praças, ruas, pelos grupos que traziam alguma expressão cultural, como os capoeiristas e os pequenos grupos musicais. Assim, a própria festa era um território cuja apropriação se dava não sem uma compreensão da importância de ser visto, de ser percebido.
Desse evento, a impressão que tive é que nada é mais polifônico e múltiplo nas suas expressões, assim como suponho eram as festas do Rosário em tempos decorridos. Com ele percebe-se uma síntese de muitas significações do presente e do passado. As celebrações das missas diárias refletiam isso. Talvez o momento de mais questionamento, além daquele que o padre presidiu a celebração com a indumentária de vaqueiro534, foi quando Fátima Alexandre, de pouco mais de 40 anos, entrou em procissão igreja adentro, dançando nos moldes das mães-de-santo em terreiro de candomblé.
Além da diversidade de expressões no interior do evento mesmo, a festa de Santo Antônio não privou espaço para a embriaguez alcoólica e exposição dos corpos jovens, como se podia perceber no forró. Ela abriu ainda a possibilidade para outras manifestações culturais, como para o grupo de capoeira que se apresentou na praça. Na verdade, essas apresentações eram espontâneas, assim como espontâneo era o movimento de ir e vim pelas ruas de Quixeramobim durante a festa. Não era possível ficar parada em um lugar, pois ou se era levado pela curiosidade de saber o que acontecia, ou então se era arrastado pelos transeuntes.

Notes
531.

J. Duvignaud, op. cit., p. 88.

532.

O Instituto do Patrimônio Histórico, Artístico e Natural de Quixeramobim, Iphanaq, é uma iniciativa de um grupo de jovens com formação nas mais variadas áreas – jornalismo, psicologia, história – cujo interesse é de promover discussões e intervenções no sentido de criar uma consciência da necessidade de se cuidar da memória e do patrimônio da cidade. Assim, suas ações têm recaído sobretudo na preservação dos lugares de memória como prédios históricos e documentos.

533.

Há um forte movimento carismático na igreja católica do Brasil, que disputa uma hegemonia com outros movimentos em especial com os de orientação da teologia da libertação.

534.

Um dos dias de missa tinha como tema o vaqueiro, figura emblemática do Nordeste brasileiro que foi retratado por Guimarães Rosa em Grandes Sertões Veredas. Por ocasião da festa de Santo Antônio, além da cavalgada de mais de 100 cavaleiros pelas ruas da cidade, a celebração foi presidida por um padre que costuma celebrar a missa do vaqueiro, vestindo a indumentária própria desse personagem. Em Quixeramobim ainda persiste a figura do vaqueiro, a despeito do pouco uso da indumentária: chapéu, gibão, algibeira tudo em couro de boi.