12.2 As festas religiosas: engajamento e diferenciação

A análise do religioso seja da festa do padroeiro Santo Antônio ou de outras festas religiosas como a de Nossa Senhora do Rosário traz elementos para se pensar as próprias interações em Quixeramobim. No tocante às sociabilidades negras, poder-se-ia perguntar: em que essa festa pode ajudar na sua análise? Eu diria que salvo a entrada da professora Fátima Alexandre na igreja, vestida e dançando como uma mãe-de-santo, a festa de Santo Antônio não parece trazer fervor aos descendentes dos então membros da irmandade como possivelmente um dia produziu tal efeito a festa de Nossa Senhora do Rosário. Tive a oportunidade de constatar que alguns tiveram participação bem isolada nas celebrações, como a de Vitória Barroso no dia da procissão no seu bairro. Agora quando indagados sobre a festa de Nossa Senhora do Rosário não só fervor é demonstrado e sim pesar pelo fato daquela festa já não ser mais realizada como outrora. Vitória Barrozo expressa esse sentimentos ao comparar as duas festas.

‘Era do mesmo jeito assim como é hoje a de Santo Antônio, lá tinha festejo também. Agora nós tudo era é quem ia pra lá , ia tudo de mundo pra lá, pra aquela igreja: A gente zelava, e quando era na hora da coisa a gente preparava muito: Tinham assim aquele pessoal que assistia muito. Aí quando foi acabando os mais velhos, foi se acabando assim, devagar aos poucos. Aí a gente vai assistir a gente sente a diferença, a gente entra na igreja e a gente sente a diferente. (...) Quando era a irmandade535, a gente sentia já sentia muita irmandade, todo dia nós, mas quando era tempo de festa, aí nós tudo536.’

Já engajamento de Fátima Alexandre na festa de Santo Antônio é marcado por uma tentativa de diferenciação, por isso dá sentido ao seu fervor religioso, assumindo uma identidade negra quando ninguém mais a faz537. A expressão dessa identidade está totalmente pressa à memória de outras mulheres negras, que se envolviam na festa de Nossa Senhora do Rosário, procurando se inspirar nelas e no seu modo de aparecer publicamente. “Eu sei que as mulheres usavam todas blusas brancas, muitas tinham saia estampada, agora elas usavam muitos colares e um tecido tipo véu, uma renda na cabeça, elas enrolavam a cabeça assim com um tecido de renda”538. Para Fátima Alexandre ser negra tem a ver com uma performance, ou seja, uma disposição corporal, pois tudo parece passar pela encenação e pela teatralização da identidade.

‘Eu tenho muitas roupas, assim, de Negro, que eu me visto, assim por exemplo. Ontem eu estava com uma roupa negra. Eu fui representar lá na igreja, sobre a vida do padroeiro, ai a gente foi fazer uma representação do cruzamento aqui em Quixeramobim sobre as raças. A miscigenação das raças, português, índios, que eram os primeiros descendentes daqui e Negros. Eu estava muito produzida. E todo mundo, quando eu entrei na igreja, bateu palma para mim. (…) Eu quero assim que minha raça seja vista com bons olhos, uma coisa bonita, se eu tenho que mostrar minha beleza negra, eu tenho que mostrar da melhor maneira possível. (…) As pessoas às vezes acham que eu só quero andar assim para chamar a atenção, mas não é (…). As pessoas não sabem o verdadeiro sentido, daquela coisa, quando eu uso uma canga no pescoço, quando eu uso uma saia estampada e uma blusa branca, cheia de colar, colar empendurado de todo jeito, né? As pessoas não entendem539. ’

O caráter ornamental da festa de Nossa Senhora do Rosário e a indumentária utilizada pelos Negros produziu efeitos mnemônicos para muitos narradores. Enquanto a primeira narradora apresenta o mito em gesto, Julião Barrozo (o filho) recupera os mesmos elementos, fazendo uso a palavra oral:

‘O bloco dos Pretos tinha umas saias bem grande, arrastando no chão, quando dava rodada assim, tudim com as faixa, né? Faixa e grinaldas, uma porção de coisa. Era bolsa, nos braços era pulseira, era animado mesmo. As saias eram toda cheia de flores. Elas usavam pulseiras, cordão grande. Na cabeça usavam como se fosse uma coroa. Tudim tinha uma coroa. Como se fosse uma coroa, nè?’

Em Quixeramobim as celebrações religiosas de caráter racial se realizavam pelo menos em torno de dois oragos: Nossa Senhora do Rosário e de Nosso Senhor do Bonfim. Sendo devotos de Nossa Senhora do Rosário, os Negros escravos ou livres se reuniam em irmandade e celebravam sua festa em outubro. Ocasião em que eles elegiam a diretoria de sua instituição e nomeavam seus reis. A festa em comemoração à Virgem talvez fosse apenas um “ponto de fuga” para os Negros exercerem momentaneamente um poder que lhes era negado no cotidiano escravo, ou seja, o de criar organizações, ou mesmo, o de festejar suas divindades540.
Nosso Senhor do Bonfim parece ter servido aos mesmos propósitos, ou seja, o de ser um instrumento através do qual os Negros viabilizavam suas sociabilidades. Existem poucas informações escritas sobre a irmandade de Nosso Senhor do Bonfim. No entanto, Eduardo Campos ao listar as irmandades no Ceará provincial registra a presença de quatro irmandades em Quixeramobim: a de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos, que teve seus compromissos reconhecidos em 1854, a do Senhor Bom Jesus do Bonfim dos Homens Pardos com estatutos aprovados em 1860, a das almas e a do Santíssimo Sacramento, ambas instituídas na matriz e seus estatutos confirmados em 1870 e 1871, respectivamente. Tudo leva a crer, e aqui é a memória oral que entra como testemunha, que a igreja do Bonfim foi construída pelos Negros e a irmandade era uma organização negra ainda conquanto designada como sendo dos pardos541. A entrevista de Fátima Alexandre sustenta esse argumento e traz elementos para um possível mito de origem da devoção ao Senhor do Bonfim:

‘Na irmandade do Senhor do Bonfim só eram Negros. Lá na igreja do Bonfim tem uma parede que foi construída, a primeira parede. Eu era criança e tinha mais ou menos 7 ou 8 anos de idade e tinha uma mulher aqui, em Quixeramobim, ela já faleceu, era dona Luzia, o nome dela era Luzia Alves de Paula542, ela veio, a família dela veio para Quixeramobim para uma fazenda chamada Salva Vida, eles vieram num navio, fugido da África, eles fugiram num navio, certo? Essa mulher, ela descendente deles, dessa família, desse casal. Ela me contava, eu ia pra igreja do Bonfim, e ela me contava. Minha filha, a igreja (…) nasceu aqui, porque os pais dela contavam, tinha nascido naquela parede543. ’

Para Fátima Alexandre não somente a capela de Nossa Senhora do Rosário foi construída pelos Negros, mas também a igreja de Nosso Senhor do Bonfim. Para ela tanto as capelas como as devoções estão intimamente ligadas à história de sofrimento dos africanos que foram transplantados compulsoriamente da África. Ainda apoiando-se nas narrativas da africana Luzia Alves de Paula, antiga moradora de Quixeramobim, Fátima Alexandre reconstrói a história das devoções a Nossa Senhora do Rosário e a Nosso Senhor do Bonfim, que culminou na construção de ambas as capelas. O relato ainda imprime um caráter de gênero, imposto pela escravidão aos homens e mulheres negras.

‘Os Negros tinham construído a igreja do Rosário para sua negras, só que as negras não rezaram junto com seus Negros. Naquela época os donos de escravos não aceitavam que os Negros rezassem junto como as negras. Por que? Porque elas tinham uma devoção e eles tinham outra. Então eles discutiam entre si. As negras, porque Nossa Senhora do Rosário veio para o Brasil porque foi trazido pelos Negros, que é a padroeira lá da África. E os Negros traziam com eles a imagem de Jesus Cristo. Quando chegavam na praia que o navio ancorava, eles desciam do navio e se ajoelhavam pra dizer meu senhor tivemos um bom fim. Por isso, Nosso Senhor do Bonfim, padroeiro de Salvador. Entende? Por que é chamado Senhor do Bonfim? Porque devido eles sofrerem muito na viagem, com os castigos, porque vinham dentro do navio, no porão, sofriam fome, sede, eram acorrentados, todo tipo de castigo. Muitos morriam na viagem e os que conseguiam sobreviver, quando chegavam nas areias de Salvador diziam “senhor tivemos um bom fim”. Por isso é que Nosso Senhor Jesus Cristo é o padroeiro de Salvador, o senhor do Bonfim. E é o padroeiro dessa igreja porque foram eles, os Negros que construíram. Eles construíram a primeira parede que a gente chamava de nicho. Na linguagem deles era nicho, certo? Onde eles faziam suas lamentações. Onde eles rezavam, cantavam suas ladainhas e acendiam velas. Lá na parede é interessante. Tem assim um arco, sabe? Ela tem um arco, foi a primeira parede e tem assim uma coisa no meio onde eles acendiam as velas. Para eles era como se fosse um oratório. Era um santuário aquela parede, era um santuário deles, dos Negros. Onde eles colocavam a imagem do senhor do Bonfim, a imagem do senhor e todo aquele arco era iluminado pelas velas que eles acendiam. Ai ela dizia assim, batia na parede e dizia assim: “essa parede foi feita de sangue, suor e lágrima”. Ai eu dizia: - Por que dona Luzia? Pois diga pra mim por que? Ela dizia assim: “sangue porque eles derramavam com o peso das pedras que eles carregavam nos ombros e as mão brotavam sangue, né? Para construir a parede. Suor que brotava do seu corpo, do cansaço. E lágrima da saudade que eles sentiam de sua terra”. [A interlocutora se emociona e em lágrima diz] É um momento em que eu me emociono muito, porque é assim uma coisa que tem muito a ver comigo, sabe?544

Essa longa e emocionada descrição feita por Fátima Alexandre pode nos levar a um entendimento mais recente da história das irmandades negras em Quixeramobim. A separação por sexo que ela propõe não se verifica nos compromissos das irmandades cearenses aprovados no século XIX545, pelo contrário todas pareciam admitir ambos os sexos. Outra informação que contradiz os dados das fontes escritas é atribuir a igreja do Bonfim a uma organização negra. Insisto que talvez em tempo menos recuado da história dessa confraria, ela estivesse sob a responsabilidade de famílias negras. A narradora Dora Monteiro, 99 anos, ao falar sobre a igreja do Rosário e do Senhor do Bonfim sintetiza “quem tomava de conta era os mesmos Pretos, é o Matias, da mesma família, era da mesma família. Antônio Matias tomava de conta lá (da igreja do Bonfim) e os Barroso essa aqui (igreja do Rosário)”546.
Lamentavelmente os registros materiais já quase não existem e a parede de que falava Fátima Alexandre foi coberta na última reforma que a capela sofreu. Por outro lado, a capela do Bonfim ainda guarda símbolos que estimulam a reflexão como os relevos nos altares e no teto. A interpretação desses símbolos não me foi fornecida pela interlocutora e como minhas pesquisas tampouco me revelaram o sentido, trago a sua imagem a título de ilustração.

Figura 14: Símbolos da capela de Nosso Senhor do Bonfim

Foto: Analúcia S. Bezerra

A Fátima Alexandre organiza nessa narrativa um mito de origem da fundação da capela do Rosário e do Bonfim. Mito que se enraíza na África e na Bahia547. Nesse mito não deixa de destacar o sofrimento, a saudade de uma África imaginária. Isso teria levado à construção das capelas, respeitando as imposições dos senhores de escravos de não quererem a mistura dos sexos. A narradora não deixa de destacar o papel ativo dos escravos na fundação da devoção aos santos, assim como na organização dos rituais de manifestação dessa devoção. Ela não elaborou essa narrativa sem destacar o processo de transmissão da memória de que ela hoje é portadora. Isso certamente para legitimar o conhecimento das experiências dos antepassados ou para dar um caráter veraz às suas palavras.

Notes
535.

O termo aqui é mais utilizado no sentido da família Barrozo, os irmãos e ela mesma.

536.

Vitória Barrozo, Quixeramobim, Junho 2007.

537.

Estou pensando identidade como representação. Fátima Alexandre aproveita a ocasião da festa para dar visibilidade a sua identidade negra quando ela se veste “como uma africana”.

538.

Entrevista concedida a mim em Junho de 2007.

539.

Entrevista concedida a mim em Junho de 2007.

540.

Para José Ramos Tinhorão apud Marina de Melo e Souza, 2002, “os Negros elegeram Nossa Senhora do Rosário para objeto de culto por terem estabelecido uma relação direta entre o seu rosário e o rosário de Ifá, usado por sacerdotes africanos”.

541.

O termo pardo é normalmente empregado para designar o resultado do “cruzamento” entre o branco e Negro. Pude verificar que essa categoria é largamente usada a partir do início do século 19 nos registros de batizado e casamento.

542.

Já fiz referência a Luzia Alves de Paulo na nota 464 deste capítulo.

543.

Fátima Alexandre, Quixeramobim, 2007.

544.

Entrevista concedida a mim em Junho de 2007.

545.

As irmandades listadas por Eduardo Campo em As irmandades religiosas do Ceará Provincial, 1980.

546.

Entrevista concedida a mim em Junho de 2007.

547.

Embora a historiografia dê conta de que os negros vindos para o Ceará teriam sido desembarcados nos portos de Pernambuco, a tradição oral insiste em uma vinculação a Bahia. A comunidade negra de Bastiões, onde realizei pesquisa de campo, funda a sua constituição na vinda de duas mulheres negras fugidas da Bahia. Essas narrativas talvez devam ser consideradas nos estudos sobre a escravidão no Ceará, ou se não pelo viés da escravidão, pela compreensão da componente negra na cultura cearense.