12.4 O papel das famílias negras na história da irmandade e na festa do Rosário

O primeiro Barrozo que aparece em Quixeramobim data do século XVIII. Tratava-se do escravo João Barrozo, pertencente ao fundador da povoação de Santo Antônio do Boqueirão, Antônio Dias Ferreira. Mesmo sabendo que a origem da irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos de Quixeramobim estava relacionada à escravaria desse proprietário, não é possível estabelecer um vínculo de parentesco entre esse escravo e os membros da família Barrozo que administraram a mesma irmandade no século XIX e com os que ainda permaneceram a frente dos festejos do Rosário no princípio do século XX. Logo, a vinculação aqui estabelecida não pode ser comprovada, assim não poderá tomar outro estatuto senão o de suposição.
Contudo, se a origem escrava da família Barrozo não vem do escravo João Barrozo, ela está associada à mãe de Julião Barrozo, Antônia, escrava de Bonfim, como atestou Dora Monteiro.

Ana: - A senhora falou que a igreja do Rosário foi construída pelos escravos.
Dora Monteiro: - Os escravos.
Ana: - E disse que quem tomava de conta das festas eram os Pretos.
Dora Monteiro: - Eram os Pretos.
Ana: - Mas as famílias dos Pretos, essas famílias foram escravas?
Dora Monteiro: - Como é?
Ana: - A família desses Pretos...
Dora Monteiro: - Foram escravos!
Ana: - Foram escravos?
Dora Monteiro: - A velha mãe de seu Julião era dona Antônia do Bonfim, (..). o “senhor” dela era senhor Bonfim553.
Dora Monteiro: - Eu não sei nem se ela foi casada. Eu sei que ela tinha filhos, era escrava, não sei se foi casada né?. Não sei, não é do meu tempo! Tinha as senzala dos Pretos. Era ela da senzala, mas seu Julião, filho dela, era muito religioso.
Dora Monteiro:
- Era bem pretinha, e cacundinha.
Ana: - A senhora chegou a conhecê-la?
Dora Monteiro: - Conheci ela, bem velhinha.’

Antônia do Bonfim, na verdade, se chamava Antônia Victorina da Conceição, conforme pude recuperar seu nome no registro de casamento de seu filho Julião Barrozo. Não se sabe ao certo se era filha, neta ou bisneta de João Barrozo. O único fato que se pode verificar através do registro mencionado é que não fora casada, pois está indicado que seu filho nasceu de uma relação natural. Através de Vitória Barrozo fiquei sabendo que ela tinha um irmão de nome Adolfo. Além do filho Julião, ela teve ainda Conrado Barrozo. Esse sim também teria sido escravo segundo Julião Barrozo (filho).

Julião Barrozo: Porque a minha família, porque ele dizia que essa família, a família partiu, como que fosse descendente da parte de escravos. Conrado Barroso, ele era, minha mãe dizia, que eu não conheci ele.
Ana: - Sim.
Julião Barroso: - Dizia que ele era moreno, mas era metido, metido a rico.
Ana: - Sim.
Julião Barroso: - O pessoal sempre falava nisso, né (risos). Era um Preto metido a rico. A mãe dele era preta, preta, foi isso que,veio dessa descendência aí, né?’

A mãe “preta” de Conrado Barrozo era a avô de Julião Barrozo (o filho) que parece não tê-la conhecido. E o “preto metido a rico” era irmão de seu pai, que aparece como membro da irmandade de Nossa Senhora do Rosário, em 1896, assumindo o cargo de mesário. Esses parentes parecem estar muito longe da memória do interlocutor, certamente porque quando nasceu aqueles já tinham perecido. O distanciamento do interlocutor desses parentes talvez se explique ainda pelo fato de fazer parte da segunda família de seu pai, que teria falecido no ano de seu nascimento, em 1925. Julião Barrozo de Oliveira teria nascido na localidade de nome Muxure, em Quixeramobim. Em 1886, contraiu casamento com Isabel Maria Gomes também nascida em Quixeramobim. Com ela construiu uma família de cinco filhos. O segundo casamento, provavelmente no princípio do século XX, foi com Maria dos Reis Borges com quem teve seu sexto (e primeiro filho do segundo casamento), Raimundo Barrozo, em 1917, formando com outros três, Francisca, Vitória e Julião, uma prole de dez filhos.
Maria dos Reis Oliveira Borges além de ter sido membro da confraria de Nossa Senhora do Rosário, entre os anos de 1918-1924, ampliou a rede de parentesco de Julião Barrozo. Através dessa relação matrimonial, os Borges e os Barrosos intensificaram suas afinidades em torno das festividades religiosas. O parentesco lembrado nas narrativas de Raimundo Borges do Nascimento (Safira) e de José Borges do Nascimento (Dedim), não é tanto pelo vínculo através de uma tia distante e sim pelo fato de todos terem um dia se reunido em torno de um objetivo comum: festejar Nossa Senhora do Rosário e realizar a coroação dos Reis Congos.
Sem pretender dar conta de todos os arranjos familiais de Julião Barrozo de Oliveira, sua genealogia se apresentaria mais ou menos como o desenho a seguir.

Desenho 01: Genealogia presumida de Julião Barrozo de Oliveira
Desenho 01: Genealogia presumida de Julião Barrozo de Oliveira

Fonte: Construído com base nas informações de Dora Monteiro, Julião Barrozo e Vitória Barrozo e de registros documentais.

Tudo leva a crer que nos anos compreendendo 1910-1919 Julião Barrozo não ocupou cargos na mesa regedora da irmandade, mas permanecia exercendo grande influência na organização e recebendo remuneração para manter a capela em bom estado554. Essa visibilidade que ele alcançou, tendo como palco as sociabilidades religiosas, foi graças ao empenho com que ele e outras organizaram a própria irmandade e as festas a ela associada. Ele é o membro mais destacado da família Barrozo tanto nos documentos como pela memória dos descendentes e de seus contemporâneos. Parece ter tido uma vida de longa dedicação e mesmo quando não estava ocupando cargos na associação, procurava ainda estar presente nela através da prestação de serviços. Um quadro permite perceber não somente a natureza dos trabalhos prestados, mas o zelo que a associação tinha com seu templo e cruzeiro, para isso beneficiando um dos membros da Confraria.

Quadro 18: Serviços prestados por Julião Barrozo à irmandade de Nossa Senhora do Rosário
Serviços Ano Valores
Pela pintura da cruz 1913 2 mil réis
Serviço e tinta para o frontispício 1913 2 mil réis
Pintura do cruzeiro e gradil 1913 20 mil réis
Tirar goteiras na capela e extinguir cupins 1917 6 mil réis
Pela pintura do forro e altar 1918 20 mil réis

Fonte: Livro de Lançamentos de Despesas e Receitas da Confraria de Nossa Senhora do Rosário (1910-1919)

Julião Barrozo de Oliveira, tido como o maior festeiro de Quixeramobim, não media esforços para a concretização das festividades de Nossa Senhora do Rosário. D. Patrício (2006) confirma, com base em depoimento de Raimundo Barrozo, que “em um dos anos que a festa de Nossa Senhora do Rosário estava ameaçada de não se realizar, pelas dificuldades econômicas, aquele tomou um trem até Fortaleza para tentar resolver o problema sensibilizando dirigentes da cúpula da Igreja na capital do Estado555
Dos inscritos na confraria entre os anos de 1896 a 1923556, seguramente dezesseis pertenciam às famílias negras. Da família Barrozo estavam inscritos seis membros: Julião, Maria dos Reis, Conrado, Francisco, Joana e Maria do Carmo, todos trazendo o sobrenome Barrozo de Oliveira. Conrado Barrozo é o único que não aparece no livro de matrícula, certamente porque não vivia mais nos anos aí referidos. Porém, no compromisso de 1896 consta como membro da mesa regedora. Francisco Barrozo era filho do primeiro casamento e na ocasião em que seu pai já se encontrava em idade avançada, por ser o mais velho a responsabilidade de cuidar das terras da Santa lhe foi transmitida. Por outro lado, esse membro da irmandade tinha habilidade com a música e por isso assumia a função de tocar nas missas. É assim que lhe apresenta seu irmão, Julião Barrozo (o filho):

‘Tinha um irmão meu que era instrutor de música. Ele era quem tocava no tempo do Padre Aureliano, assim, no meio dos fiéis. Ele acompanhava as missas, tinha um harmônico, que ele, ele tocava todo instrumento. Acompanhava as missas, realmente era o Francisco, Francisco Barroso. Ele era da primeira famía, por parte de pai. O meu pai foi casado duas vezes. ’

O mesmo vai ocorrer com Raimundo Barrozo, isto é, a transmissão das responsabilidades com a festa de Nossa Senhora do Rosário e com a administração dos bens da mesma. Esse protagonista vai adquirir grande notoriedade, especialmente pelas coroações dos Reis Congos, festividade de que tratamos anteriormente. A qualidade festeira do protagonista é sempre ressaltada, ele “participou das dramatizações ligadas às Congadas, ao Reis Congo, integrou o cordão do Boi de Reisado (…) e desempenhou o papel de ‘rapaz do amo’ (do rei cariongo dramatizado)”557.
Julião Barrozo, filho mais novo do segundo casamento de Julião Barrozo de Oliveira, também teve seu quinhão de responsabilidade só que no tempo em que a irmandade de Nossa Senhora do Rosário não mais existia. Como o desaparecimento da organização confrarial não implicou na dissolução do patrimônio da Santa, este fora mantido nas mãos dos Negros, em especial a propriedade da serra de Santa Maria, de onde tiravam alguns recursos para a igreja local. Deixo a palavra com o narrador:

Julião Barroso: - no terreno de Nossa Senhora do Rosário, foi no tempo do, foi em 1936, 1936 foi que meu irmão, foi tomar conta da, das festas de Nossa Senhora do Rosário.
Ana: - O seu irmão, quem era?
Julião Barroso: - Era o Zé Barroso. Era o irmão mais velho.
Julião Barroso: - Aí, passamos lá nós passamos lá. Eu me lembro, acho que foi bem uns quatro anos, tomando conta dessa capela lá, desse terreno. Ele tem, eu num to me lembrando, se é 300 ou é trezentas e tantas braças que tem de, de frente558. E meia légua de fundo, né?. Eu andei nesse terreno, quase todo lá, foi todo; que lá a gente tirou-se muita madeira aqui para o padre. (...) No tempo do Padre Jaime. Aí quando meu irmão deixou, aí eu fiquei, fiquei lá, ainda trabalhei lá uns dois anos. Foi o tempo que entregou, chegou o padre Edmundo, aí eu fui lá no sobrado, conversei com ele lá sobre esse terreno que tinha aí, que meu irmão tomava conta, mas entregou. Daí passou pra mim, ele disse: ’

Contudo, antes desses entrarem em cena, Julião Barrozo de Oliveira vai engajar a família Matias “nas obrigações com a igreja do Rosário559”. Ora, essa família negra estava bem representada na irmandade do Rosário e a sua história está totalmente imbricada com as festividades religiosas organizadas nesse contexto. Trazer a lume os Barrozos sem destacar os Matias é deixar obscurecida uma parte da história do Negro em Quixeramobim. Embora não podendo reconstruir os liames filiais dos membros dessa família, é possível, pela sua representação na associação, dizer que era uma família importante numericamente e formava com os demais Negros um parentesco extenso via vinculação à irmandade e às festas que essa realizava. É mesmo o sentido de uma grande família que se verifica ao se debruçar sobre a memória e sobre os documentos de que tratam da irmandade de Nossa Senhora do Rosário, por conseguinte das famílias negras. “Era, essa família que eu to falando, todinha, é toda da família dos Pretos. José Matias, tinha o Antônio Matias, Antônio Matias do Carmo, tinha a dona Joana, tinha Alaíde, Alaíde morava nessa mesma rua nossa”560
Essa fala permite recuperar ainda mais o sentido de parentesco que se quer atribuir aos membros da irmandade de Nossa Senhora do Rosário de Quixeramobim. Agora, introduzindo um novo elemento: o fato de todos morarem na mesma rua. Os descendentes dos antigos membros da associação recuperam insistentemente a rua Julião Barrozo como um espaço onde era habitado pelas famílias negras. Rua que recebeu esse nome devido ao destaque que tinha Julião Barrozo nos eventos religiosos da cidade. “E tinha umas casinhas na rua, morava finado Nonato, morava o João Galinha, pai de Chiquinho, morava a família de João Teles. A Luzia de Januário, todo esse pessoal moreno”561.
Como enfatizado anteriormente tanto a família Barrozo quanto a Matias estavam empenhadas na irmandade de Nossa Senhora do Rosário no final do século XIX e princípio do XX. Em termos numéricos os Matias superavam os Barrozo, com sete membros na irmandade nos anos compreendidos entre 1896 e 1923: Antônio, Ana Rosa, Agostinho, Mathias Elias, Carlos, José e João, todos portando o sobrenome Matias do Carmo. É inegável a relevância que esses sujeitos tiveram na construção da associação e nas responsabilidades a ela conferida. Matias Elias do Carmo assumiu em 1896 o cargo de mesário e, a partir de 1918, já não figurava mais como pertencente à instituição. Parece ter tido maior destaque Antônio Matias, homem solteiro, que teria sido sacristão e recebido de Julião Barrozo de Oliveira a incumbência de prosseguir com as obrigações devocionais e festivas da irmandade. Diante desses fatos, a outra conclusão não se pode chegar senão a de que as duas famílias construíam uma sociabilidade familiar que pode ser comparada, sem pressupor nenhum essencialismo reportado à África, às estruturas aldeãs ou comunitárias como aludiu Roger Bastide (1971) ao sincretismo encontrado nas confrarias negras no Brasil562.
Esse parentesco simbólico em função da irmandade de Nossa Senhora do Rosário era muitas vezes reforçado pelas relações de parentesco de fato. Com isso quero dizer que alguns núcleos familiais foram construídos entre os Barrosos e Matias como foi o caso de Mocinha e Carlos Barrozo. Para esclarecer isso ainda é Dora Monteiro que nos auxilia, narrando:

‘Minha mãe era amiguíssima da mãe dele, da segunda mulher, porque seu Julião foi casado duas vezes, viu, teve duas famia. Essa que cantava com nós, pedindo chuva, era da primeira família dele, a Mocinha, era casada com o Carlo Matia, agora eu me lembrei. O Carlo Matia era quem acendia as lamparinazinha e nós achava bom, subia com ele, aí se escondia detrás da, debaixo da escada. Quando o velho passava,... ôôôôôô, corria tudim (risos)563.’

Com essas palavras Dora Monteiro revela como se dava a participação dos membros da família Matias. Note-se que em outro momento era Julião Barrozo que iluminava, ou que colocava as lamparinas na capela. Pela freqüência com que os interlocutores selecionaram esse fato, poder-se-ia dizer que executá-lo implicava em status que somente aos Negros era concedido. Dora Monteiro de algum modo reforça isso ao lembrar que na sua meninice jocosa ela provocava o velho Carlos Matias, dizendo querer substituí-lo na obrigação. “O que ocês querem, menina? - Não, seu Carlo, eu quero acender as lamparina da Mamãe do Céu”564.
Estou identificando como famílias negras um conjunto de indivíduos, “os Pretos”, como comumente se reportam os interlocutores, que estiveram inicialmente vinculados à irmandade de Nossa Senhora do Rosário a partir do final do século XIX e início do século XX. Os núcleos mais importantes desse conjunto eram as famílias Barrozo e Matias, mas como a própria memória oral indica, outras pessoas também eram assim identificadas, incluindo-se aí os Teles e os Paulo. A julgar pelos membros listados no livro de matrícula, 1918-1923 essas duas famílias estavam sub-representadas em relação aos Barrozo e os Matias. Da primeira figuram dois participantes: Antônio Teles e João Teles. Como destacou Julião Barrozo, o último morava na rua que recebeu o nome de seu pai. Já a família Paulo está representada apenas por um membro: Maria Januária. Trata-se da avó da interlocutora Tereza Alves que narrou a sua história, revelando mais uma vez que alguns membros da irmandade tinham vivido a experiência da escravidão. A narrativa por si só oferece uma interpretação sobre esse fato que venho insistindo.

‘A minha avó era de outros lugar. Ela chamava negra d’Angola vendida por Brasil. Ele veio desse canto que o pessoal era vendido. Chamava negra d’Angola e aí foi vendida pra o Brasil. (...) Ela se chamava Maria Januária Alves de Paula. Ela casou e teve filhos, só meu pai de homem (...). Aí ela ficou e construiu essa família, no Brasil (…). Meu pai era músico de Quixeramobim. Ele tocava nas festas. Ele participava de todas as festas de Nossa Senhora do Rosário e Santo Antônio565.’

As famílias negras tiveram grande importância na condução da religiosidade e festividades católicas de Quixeramobim a partir do final do século XIX. Estavam na administração da confraria de Nossa Senhora do Rosário, assumindo postos importantes na sua estruturação e funcionamento. Isso significava responder perante a sociedade e os poderes eclesiásticos pela capacidade de conduzir os festejos da padroeira e de gerir os recursos que a própria organização acumulou aos longo de sua constituição e história. Os Negros, insisto, sem postular uma exclusão radical dos Brancos, pois como já demonstrado estiveram implicados desde o seu surgimento, aí se empenharam para construir uma organização que de algum modo refletisse o desejo de existir como coletividade. Construindo essa possibilidade, elas puderam ser conhecidas e vistas como: os Pretos do Rosário, família dos Pretos ou simplesmente a irmandade. Ainda que um ou outro indivíduo tenha adquirido maior significação, nos momentos de visibilidade como as festas, exemplo, Julião Barrozo e Antônio Matias, o que mais se sobressaía nessa sociabilidade era sua dimensão coletiva e comunitária.
Então, construíram essas famílias negras, com a confraria de Nossa Senhora do Rosário, uma organização social de caráter étnico? Eu diria que sim, pois o que balizava as ações dos membros da associação era a construção de uma diferenciação e de uma identificação. No jogo de diferenciação, era o Branco o alter, o outro, que poderia ser aceito, mas nunca integrado como um da família. Essa diferenciação estava na base da constituição da irmandade e adquiria significação ao ser dramatizada nos festejos de coroação dos reis Congos. Diante dessa constatação, fazem sentido as palavras introdutórias de Raposo Fontenelle (1983) ao livro de Jean Duvignaud Festa e Civilização: “a existência coletiva inspira-se por intermédio do espetáculo e das diversas modalidades de dramatização que encontramos no quotidiano566”. Corroborando esse entendimento Mary Del Priore (2002) completa que:

‘A festa efetivamente possibilitava ao grupo social o confronto de prestígios e rivalidades, a exaltação de posições e valores, de privilégios e poderes. Tudo é reforçado pela ostentação do luxo e distribuição de larguezas. O indivíduo ou o grupo de família afirmavam com a sua participação nas festas públicas seu lugar na cidade e na sociedade política567. ’

A identificação “família de Pretos” é também uma identificação exógena, sendo comumente empregada pelos moradores de Quixeramobim. Penso que o grupo absorveu essa representação de modo que ainda hoje assim se apresentam os descendentes dos Barrozos. “Esses Barroso, eu mesmo não sei nem mais dizer que eu penso. Eu mesmo quase não sei nem, sei dizer e não sei, dizer de quanto, da onde vem essa família. (…) E não foi daqui muito próximo, porque minha família toda era Moreno. (...) Da onde que, da onde partia essa família… Só sei que era, que era a família dos Pretos, né?”568.
A devoção era outra característica para identificar as famílias negras e normalmente essa representação estava associada com o que eles demonstravam no período da festa da padroeira: participação e empenho. Era na manifestação dessa devoção que se ampliava o sentido de família, saindo da inscrição apenas consangüínea para um parentesco associado a uma característica comum a todos: o fato de serem Negros, pois se referindo à família Matias, Julião Barrozo (o filho) sentencia “mas que fosse parente como a gente, né? Parente nosso”569.
O par Negro e devoção adquiriu um sentido tal que é difícil separar o primeiro do símbolo para o qual dirigia suas crenças religiosas: Nossa Senhora do Rosário. Na verdade, a identificação era tão estreita que impossível é dizer se os “Homens Pretos” eram fascinados pelo símbolo ou se o símbolo era influenciado por eles. Essa simbiose me foi revelada por Julião Barrozo quando indagado sobre conflitos que porventura tivessem ocorrido entre os Negros e as autoridades religiosas em torno da realização dos festejos. Para ele sobre esse assunto sempre havia um acordo “mesmo porque ele sabia (padre), sabia da influência que os Pretos tinham realmente sobre a Santa”570.

Notes
553.

Apesar existir relatos que a matriz de Santo Antônio tinha um escravo, a impressão aqui é que trata-se de uma pessoa de fato e não Nosso Senhor do Bonfim.

554.

Julião Barrozo de Oliveira aparece no livro Lançamentos de Despesas e Receitas da Confraria de Nossa Senhora do Rosário (1910-1919)

555.

D. Almeida Patrício, Sertão-de-dentro (e) dos cantos - Veredas entre palcos e memórias no folguedo Boi de Reisado, Quixeramobim-Ceará (1940-2005), Fortaleza: UFC, 2006, p. 65.

556.

Conferir Listas dos irmãos da Confraria de 1918-1923, quando se deixa de pagar as anuidades e compromisso de 1896. Esta é uma identificação apenas aproximada, pois como foram considerados apenas os sobrenomes, é provável que outras pessoas pertençam aos núcleos familiares Negros. Dei-me conta disso quando comecei a identificar algumas pessoas inscritas no livro de matrícula auxiliada pela memória de alguns interlocutores que não portavam os sobrenomes atribuídos aos Negros.

557.

D. Almeida Patrício, op. cit.,p. 61.

558.

Essa medida se aproxima da que fornece os documentos sobre o patrimônio de Nossa Senhora do Rosário no século XVIII.

559.

Palavras de Raimundo Barrozo, Quixeramobim, 2007.

560.

Julião Barrozo (o filho), Quixeramobim, Junho de 2007.

561.

Ainda é Julião Barrozo (o filho) que fala. Note-se que o narrador está fazendo uso constante dos termos pretos e morenos para se referir às famílias negras.

562.

R. Bastide, op. cit., pp. 78-79.

563.

Dora Monteiro, Quixeramobim, Junho de 2007.

564.

Idem.

565.

Tereza Alves, Quixeramobim, 2008.

566.

L. F. Raposo Fontenele, “Notas introdutórias”, in J. Duvignaud, Festas e civilização, Fortaleza, Tempo Brasileiro, 1983, p. 9.

567.

M. Del Priore, Festas e Utopias no Brasil Colonial, São Paulo: Brasiliense, 2002, p. 33.

568.

Julião Barrozo (o filho), Quixeramobim, Junho de 2007.

569.

Idem.

570.

Trecho da narrativa de Julião Barrozo (o filho), Quixeramobim, 2007.