Considerações finais

Os estudos sobre as confrarias negras vislumbram pelo menos duas tendências: uma que vê essas associações como uma forma de controle do Branco através da imposição da religião católica ao Africano e seus descendentes. Nesse sentido, elas nada mais eram do que concessões que o Negro aceitava passivamente. A outra vertente percebe-as como alternativa política e social de negociação de espaços na sociedade que as integravam. Ainda que sua finalidade não fosse o confronto ou mesmo a luta contra a escravidão, as irmandades não deixaram de ter um papel ativo no sentido de coibir os abusos inerentes à escravidão e de criar soluções para os problemas da população negra. Foi através das confrarias que esse sujeito pode construir um sentido de existir como coletividade. Por isso não deixou de negociar uma identidade baseada mais no diálogo do que no confronto com os outros segmentos da sociedade. Partilho esta última perspectiva porque, a despeito de qualquer conformismo que as identificasse, as irmandades não deixaram de ser veículo de luta, de visibilidade e de negociação da população negra. Ademais, era o espaço onde essa população exercitava a solidariedade com seus pares e construía uma identidade coletiva.
Aludi esse papel ativo tanto mais à maneira como os materiais culturais eram retrabalhados fossem esses de procedência africana ou européia no interior das sociabilidades festivas e religiosas, como destacado em relação à festa de Nossa Senhora do Rosário e à coroação dos reis Congos. Foi, sobretudo, nessa capacidade que as irmandades negras se diferenciavam das demais, isto é, de fazer junções culturais sem se prender necessariamente a uma única tradição. Diz C. M Borges (2005) que, “as irmandades atuaram como amálgama, reunindo diversas tradições à luz da religião dominante, contribuindo para o enraizamento e consolidação do catolicismo, apropriado e ressignificado em função de seus interesses587”. Assim sendo, foi no âmbito da expressão desse catolicismo que reconstruíram o sentimento de uma pertença coletiva, dimensão veementemente agredida com a escravidão.
Se para Nina Rodrigues, Roger Bastide e outros o importante era reconstruir as similaridades culturais entre as culturas africanas e suas perpetuações no Novo Mundo, para Mariza de Carvalho Soares (2000), o que vai interessar “são as configurações étnicas em permanente processo de redefinição588”. Ao relacionar a noção de grupo de procedência com o conceito de grupos étnicos, a autora identifica que esse é um processo de constituição mais definido no Brasil do que na África589. Essa noção privilegia não tanto uma origem étnica pura e sim os arranjos identitários construídos no Novo Mundo pelos diferentes grupos étnicos africanos, guardando em comum o fato de terem sido embarcados no mesmo porto. Assim, “nos grupos de procedência são valorizados os critérios como portos de embarque, ao lado de alguns componentes como, por exemplo, a língua. Mas mesmo os componentes culturais adotados não são, necessariamente étnicos”590.
Então, do ponto de vista conceitual, a noção grupo de procedência tal como sugerida por Mariza de Carvalho Soares (2000) oferece uma possibilidade de entendimento da irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos de Quixeramobim uma vez que se imputa a sua fundação aos cativos de “nação angola”, atribuição aqui adquirida, não se referindo a um grupo étnico tal como existia na África e sim supostamente a um porto de embarque. Embora esse conteúdo não estivesse tão manifesto ou não fosse trabalhado pelos membros da instituição como nas irmandades do Rio de Janeiro e de Minas Gerais na mesma época, pois aí os negros se reuniam em função de suas filiações étnicas africanas em grande parte criadas no Novo Mundo, essa associação não prescindiu de uma identificação, mobilizando o critério de que os representantes da sua mesa regedora deveriam ser “pretos”.
Para Fredrik Barth (2000) grupos étnicos são “categorias atributivas e identificadoras empregadas pelos próprios atores; conseguintemente, têm como característica organizar as interações entre as pessoas591”. Alguns corolários daí se depreendem. Primeiro a idéia segundo a qual os grupos elaboram “critérios para determinação do pertencimento” e à medida que o fazem partilham critérios de avaliação e de julgamento para a exclusão daqueles que não consideram membros do grupo. Daí resulta também que não é a ausência de contato social entre as diferentes pessoas de um grupo que vai garantir a manutenção das fronteiras do pertencimento étnico. Na verdade, o isolamento seja geográfico ou cultural, se algum deles for possível, em nada contribui para a manutenção das fronteiras étnicas. “A persistência de grupos étnicos em contato implica não apenas a existência de critérios e sinais de identificação, mas também uma estruturação das interações que permita a persistência de diferenças culturais592”, enfatiza F. Barth.
A cultura sofre um deslocamento, mas não deixa de ter importância na definição dos grupos étnicos. Ela passa a ser compreendida como resultado da organização social e não como um fator determinante em si da identidade étnica. Ela adquire outro status, sendo menos encarada como aquilo que define os grupos e mais como um aspecto dentre tantos outros possíveis como a ecologia, que se sobressai no jogo de interação. Por último diz Barth: “Nesse sentido organizacional, quando os atores, tendo como finalidade a interação, usam identidades étnicas para se categorizar e categorizar os outros, passam a formar grupos étnicos”.
Sobretudo esse aspecto me permite questionar se as confrarias negras não tinham esse caráter na medida em que produziam suas interações com base em critérios de diferenciação entre Pretos, Brancos e Pardos. Ainda que fossem diferenciações impostas pelo sistema colonial escravista, os membros das irmandades ou confrarias negras não deixavam de tomar para si essa representação e de organizar suas interações com base nessa identificação, muitas vezes atualizando e salientando alguns sinais diacríticos 593 que marcassem sua diferença. Do ponto de vista da estruturação as associações leigas guardavam algumas similitudes. Já no que diz respeito às suas interações e sociabilidades apresentavam grandes diferenças. Por exemplo, as festas em homenagem ao santo patrono, ocasião de grande performance da identidade, com recuperação de elementos de várias culturas, não seriam a fronteira que delimitava a pertença a um grupo diferenciado?
Essa categoria ainda me parece relevante pelo fato de não tanto considerar as organizações sociais e a cultura no ponto de partida, mas por se concentrar na reorganização dos grupos no ponto de chegada. Aqui não significa esquecer o que foi recriado da cultura africana. O destaque aqui não foi tanto para a transplantação de determinados aspectos culturais tal e qual tinham sido vividos e experimentados na África, mas para o que foi mobilizado e recriado a partir das exigências que o Novo Mundo impunha. Uma vez produzido esse deslocamento é possível perceber a particularidade e a complexidade em que inscrevia cada associação leiga. No caso de novos aprofundamentos teóricos essa categoria poderá trazer grandes contribuições à condição de se observar os arranjos de identificação elaborados pela comunidade negra e a sociedade na qual se integrava. Isso implicará sair da identificação nação de angola, aspecto não muito trabalhado pelas associações leigas cearenses e se concentrar nas noções e valores manifestos nas suas interações. Tomando como exemplo a irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos de Quixeramobim a categoria “preto” era muito engajada.
Essa categorização perpassou ao longo da existência da irmandade ao ponto dela ainda hoje ser recuperada pela memória594. Só que inicialmente ela era a expressão de uma identificação exógena do Africano e de seus descendentes, escravos ou libertos. Essa expressão entra em um segundo momento como a possibilidade de identificação dos membros da irmandade, cujo coletivo é a confraria dos Homens Pretos. Finalmente, o momento em que ela é apropriada no presente pela memória para denominar as famílias que estiveram na condução da devoção à Nossa Senhora do Rosário e de outros rituais relacionados a ela. Se existe algo que vincula esses diferentes momentos é justamente essa expressão, sendo através dela que se constrói uma identificação para o negro em Quixeramobim. Ela é de certo modo a categoria que sintetiza o discurso da identidade dos negros sempre em uma oposição aos não-Negros ou Brancos. Assim é uma categoria de atribuição que delimita a pertença de uns e a exclusão de outros.
Conquanto seja “le maléfice de la couleur595”, na sociedade brasileira, sintetizado no atributo “os pretos”, em Quixeramobim ele é retomado no presente para falar da história de um conjunto de famílias negras que adquiriram notoriedade no lugar pelo fato de terem sido muito devotas e festeiras. Critérios que eram reunidos para a realização da festa de Nossa Senhora do Rosário e somente atribuídos aos “pretos”. Essa visibilidade foi construída também com base no fato dessas mesmas famílias terem se ocupado com a administração dos bens da irmandade durante anos após a abolição da escravidão.
Resta dizer que esse atributo carrega muitas ambigüidades, visto estar associado a uma identidade baseada na característica fenotípica dos sujeitos. No contexto brasileiro a cor jamais deixou de operar nos processos de identificação étnica ou racial e diria que nos debates atuais sobre a identidade essa noção vem ganhando outros contornos. Constatar isso não significa desconsiderar o fato de que a identidade baseada na cor «se nourrit de l’idéologie propre à une societé inégalitaire et contribue à construire des appartenances sociales hiérarchisées596», como enfatizou Jean-Luc Bonniol (1992). O problema é o que fazer com essas velhas identificações. Talvez se engajar no projeto tal qual o autor citado fez, isto é, compreender o processo social de produção das identidades baseadas nos traços biológicos para poder “conjurer le maléfice des apparences physiques et s’ouvrir à un monde résolument non racial597”. É indubitável que a antropologia, ciência atenta à compreensão da diversidade, e uma vez aberta ao diálogo com outras ciências sociais, tem muito a contribuir com esse projeto.

Notes
587.

C. M. Borges, Escravos e libertos nas irmandades do Rosário. Devoção e Solidariedade em Minas Gerais, séculos XVIII e XIX, Juiz de Fora, UFJF, 2005, p. 200.

588.

M. de C. Soares, Os devotos da cor, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2000, p. 117.

589.

M. de C. Soares, op. cit., p. 119.

590.

Ibid, p. 117.

591.

F. Barth, “Os grupos étnicos e suas fronteiras”, in O guru e o iniciador, 2000, p. 11.

592.

F. Barth, “Os grupos étnicos e suas fronteiras”, in O guru e o iniciador, 2000, p. 13.

593.

Os sinais diacríticos são os traços objetivos da cultura normalmente mobilizados pelos membros de um grupo para representar sua diferença em relações aos demais grupos em relação. Esses sinais ou diferenças objetivas, diz Barth, “são apenas aquelas que os próprios atores consideram significativas”. Op. cit., p. 32.

594.

Ao dizer isso se corre o risco de inscrever essa categorização em uma continuidade. Pelo contrário, estou pensando em como ela é retomada em diferentes situações, ainda que não tenha sido possível aprofundar com maior acuidade o sentido assumido nesses momentos.

595.

Para recuperar de forma invertida o título do livro de Jean-Luc Bonniol, 1992, La couleur comme maléfice.

596.

J-L Bonniol, la couleur comme maléfice. Une illustration créole de la généalogie des Blancs et des Noirs, Paris, Albin Michel, 1992, p. 245.

597.

Op. cit., p. 252.